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O genocídio palestino é operado por um nó de poder hegemônico de uma envergadura nunca antes vista na história da humanidade (Foto: Abd Elhkeem Abo Riash, em @Timesofgaza / X)

Genocídio palestino: entre a cruel impotência humana e o colapso do sistema internacional

Para além de expressar a falência civilizatória do Ocidente e das retóricas liberais, o genocídio em Gaza exige dos povos uma tarefa decisiva: partir da solidariedade aos palestinos à luta contra o poder hegemônico e seu projeto colonial

Aldo Bombardiere Castro
El Ciudadano
Santiago

Tradução:

Ana Corbisier

As cenas são insuportáveis. Ainda que nos encontremos a uma considerável distância, não apenas geográfica como também vital, em relação aos palestinos martirizados dia após dia por Israel, a sobrecarga de crueldade, sofrimento e indignação que circula principalmente pelas redes sociais desperta em nós uma sensação de abatimento indefinível. Como se fosse uma mistura entre um impulso de raiva incontrolável e uma melancolia quase devastada pela desesperança, a impotência e a sede de justiça nos golpeiam, nos movem e, ao mesmo tempo, nos paralisam. Mas a Palestina continua resistindo ao jugo colonial do sionismo. E enquanto isso acontecer, os povos do mundo resistiremos com ela e nela.

Na madrugada de 18 de março, as Forças de Defesa de Israel (nome eufemístico, como a maioria dos termos glorificados pelo sionismo) bombardearam brutalmente as barracas de campanha que estavam instaladas nos diversos campos de refugiados de Gaza. Em jargão militar, tratou-se de um “bombardeio tapete”, ou seja, uma operação aérea que se espalha horizontalmente sobre uma vasta extensão de superfície. Isso refuta, mais uma vez, o discurso sionista — reafirmado fielmente pelos EUA e respaldado pelas diplomacias europeias — que afirma direcionar seus ataques contra alvos específicos de membros do Hamas, alegando que os civis assassinados seriam apenas efeitos colaterais, supostamente “não desejados”, em relação a esses alvos.

Conforme diversas investigações conduzidas por departamentos vinculados às Nações Unidas — que vão desde as agências do Conselho de Direitos Humanos até instâncias penais como a Corte Internacional de Justiça e o Tribunal Penal Internacional, passando pela contribuição de dados de diversos organismos como a Unesco (que destacou a usurpação, apropriação e deturpação de vestígios arqueológicos palestinos por parte do Estado israelense), a Unicef e a UNRWA — Israel perpetra crimes de guerra e crimes contra a humanidade de forma massiva, reiterada, sistemática e intencional, sendo que sua atuação sustentada e sofisticada configura um verdadeiro genocídio contra o povo palestino.

Ou seja, Israel, aliado estreito dos interesses de um Ocidente que durante grande parte do século 20 pregou com orgulho seu compromisso com a defesa dos direitos humanos, hoje desfruta de uma impunidade sem limites, amparada por esse mesmo Ocidente, apesar de continuar executando um genocídio em Gaza — o crime de maior gravidade existente no marco jurídico do Direito Humanitário Internacional.

Paralelamente a essas investigações, resoluções e sentenças emitidas por organismos da ONU, é preciso acrescentar os diversos e reiterados relatórios produzidos por ONGs de relevância mundial, como a Human Rights Watch e, sobretudo, a Anistia Internacional, cujas conclusões apontam na mesma direção: Israel está realizando um genocídio em Gaza. Em suma, apesar do bloqueio imposto pelos grandes meios de comunicação hegemônicos para tentar blindá-lo, hoje uma parte significativa do mundo sabe que Israel viola de forma massiva, reiterada, sistemática e intencional (para não dizer deliberada e cruel) os direitos humanos do povo palestino — tudo dentro de uma matriz de colonialismo de assentamento, caracterizada por um plano de limpeza étnica e pela ocupação da Palestina histórica, subdividindo-a no prolongado apartheid da Cisjordânia e no atual genocídio em Gaza.

Leia mais notícias sobre Gaza na seção Genocídio Palestino.

Diante disso, torna-se relevante enfatizar que nenhuma das entidades mencionadas — sejam elas vinculadas à ONU ou independentes — pode ser rotulada como extremista ou defensora do terrorismo. Ao contrário, todas elas têm uma tradição e uma declaração de valores estreitamente vinculadas ao marco liberal e universalista com o qual foram concebidos os direitos humanos em sua Carta Fundamental. Portanto, é justamente esse marco liberal e universalista que deve ser analisado se quisermos compreender sua ineficácia.

Modernidade liberal, história e progresso

Ainda que a crueldade não seja suscetível de ser comparada nem dividida em graus, provavelmente hoje assistimos ao mais indignante, sanguinário, extensivo, grave e decisivo genocídio que a humanidade já enfrentou. Por quê? Porque nele se evidencia de maneira privilegiada o colapso do sistema normativo internacional, assim como a derrocada dos princípios liberais, progressistas e burgueses que caracterizaram a modernidade em seu conjunto e, mais especificamente, que fundamentaram o sentido histórico-político da — assim chamada — comunidade internacional desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Com efeito, ainda que em tempos de Guerra Fria o panorama mundial parecesse estar cindido em dois polos bastante diferenciados entre si — o dos países capitalistas e o daqueles defensores dos socialismos reais —, havendo ainda um movimento emergente de nações em processo de descolonização político-institucional que foram capazes de se agrupar na qualidade de países não alinhados (isto é, não alinhados a nenhum dos dois grandes blocos anteriormente mencionados), isso não impediu que existisse um consenso internacional, ainda que mínimo, acerca da relevância — quase sempre estrutural e essencial ao mundo moderno — dos Direitos Humanos. Assim, em sua Carta Fundamental, a maioria dos países via, embora não um regulamento normativo de aplicação inexorável, ao menos uma espécie de ética mínima e uma rota cujo propósito seria orientar o desenvolvimento das faculdades humanas, enquanto sedimentadas nos Estados, com vistas a um horizonte mais digno para todos e cada um dos indivíduos, em prol da liberdade da espécie humana.

Nesse sentido, até o começo do século 21, os princípios de autonomia (epistêmica e racional), liberdade (de pensamento e de ação) e dignidade (moral e política), inerentes ao projeto moderno explicitado no Iluminismo e elaborado filosoficamente por Kant, ainda mantinham uma certa — ainda que decrescente — relevância perante a opinião pública (essa outra enteléquia tardo-moderna, cunhada por Habermas). Todos esses princípios, por sua vez, repousavam sobre uma base de marcado tom liberal, pois não apenas eram pensados a partir do núcleo subjetivo-individual estruturante da sociedade burguesa, como também contavam, segundo a concepção moderna, com um estatuto ontológico universalista e apodítico: seriam valores que a espécie humana, ao chegar a determinado ponto de seu trânsito histórico, teria descoberto como transcendentais, essenciais, inerentes e inalienáveis ao ser humano e, portanto, mesmo não legitimados pela contingência histórica, devem ser exigidos das nações para se aplicarem a tal contingência — eis aí sua apoditicidade. Ao mesmo tempo, dada sua legitimidade transcendental, esses valores haveriam de vigorar em todo tempo e espaço, em toda época e geografia, constituindo, portanto, valores universais. Assim — para dizê-lo de forma breve e com um exemplo simples —, a globalização econômica, comunicacional e tecnológica desenvolvida desde o final do século passado corresponderia, segundo essa concepção moderna, a um movimento histórico cuja função consistiria na geração das condições materiais necessárias para favorecer o desenvolvimento das disposições racionais de cada ser humano, primordialmente em chave cosmopolita e orientadas à realização de sua autonomia e dignidade no exercício de plena liberdade, garantida pelo cosmopolitismo confederado e interestatal.

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Em suma, o projeto moderno compreendeu a dignidade do sujeito a partir do conceito de individualidade pessoal, isto é, baseada na preeminência de uma universalidade imutável e pura, sustentada em uma constituição subjetivista de índole absoluta e, ao mesmo tempo, abstraída das (para ser imune às) categorias de raça, gênero e classe. Essa concepção iluminista do indivíduo, enquanto sujeito absoluto, haveria de se estender, consequentemente, ao modo como a modernidade compreendeu tanto a formação do Estado quanto a relação entre os Estados.

Ambas as dimensões — a do macroestatal e a do microindividual — manifestavam, sempre no plano discursivo, uma relação de coerência. Assim, por um lado, a visão de um mundo organizado em Estados (suposta expressão da vontade soberana de seus respectivos cidadãos), integrantes do sistema das Nações Unidas, e, por outro, a primazia dos valores liberais e universalistas dos Direitos Humanos, fundamentados na dignidade humana de cada indivíduo, convergiam entre si: ambos conferiam ao mundo tardo-moderno uma narrativa — ou melhor, um metarrelato — doador de um aceitável horizonte de sentido em nível histórico. Essa “aceitabilidade”, por sua vez, também era acolhida pela maioria dos seres humanos: a realidade contingente das crenças humanas costumava coincidir, ainda que frouxamente, com o dever-ser postulado pelos valores racionais. Daí que, até há muito poucos anos, o peso dos discursos promotores dos Direitos Humanos dentro da esfera pública — assim como o próprio peso da esfera pública e dos debates que nela ocorriam — ainda conferiam aos cidadãos um otimismo fundamentado na consecução desse projeto de progresso moderno. De fato, talvez a própria natureza conceitual inerente à ideia de progresso — por si só indefinida e inconcretizável, mas motivada por um entusiasmo voltado ao ascenso moral e cultural da história humana — contribua para manter, até hoje, um otimismo cego (já não mais um otimismo fundamentado) nela mesma entre um grande número de pessoas, em particular entre os habitantes dos países ocidentais.

O que se disse também poderia ajudar a explicar como, na crescente onda neofascista que atravessamos em nível mundial, ainda exista um amplo número de pessoas que não consideram a gravidade da situação, apelando ao seu caráter passageiro. De fato, fenômenos tais como a cada vez mais grosseira desigualdade econômica, a expansão da xenofobia, um autoritarismo cada vez menos necessitado de justificação discursiva, uma crise climática cujas medidas de atenuação (o famoso Acordo de Paris) fracassaram rotundamente, os dispositivos de controle cibernético que proliferam sob o feitiço da imediata promessa do entretenimento, o extrativismo devastador da natureza e de uma multiplicidade de formas de vida, a escassez energética e hídrica em escala mundial, as ondas migratórias já produzidas e por produzir-se, o militarismo com sua aniquilação do pensamento, a exploração cotidiana do trabalho com a fadiga existencial que ela gera, a reivindicação da dominação patriarcal inclusive entre suas vítimas, o genocídio atual (e os muitos por vir) que Israel perpetra em Gaza com a mais absoluta impunidade… Enfim, todos esses fenômenos que encontram, senão sua origem, ao menos um forte elemento catalisador na catastrófica mutação neofascista sofrida pelas democracias liberais e pelo capitalismo burguês-neoliberal, costumam ser avaliados por muitas pessoas bem-pensantes como eventos isolados, ciclos passageiros, males menores ou retrocessos necessários destinados — a longo prazo e em última instância — a consolidar a ascensão da espiral com que progrediria a história universal da civilização humana.

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Neofascismos e genocídio

Voltemos ao nosso problema; isto é, à apocalíptica verdade que revela o genocídio de Israel contra o povo palestino aos olhos do mundo. Com o genocídio israelense contra o povo palestino e, sobretudo, com a vergonhosamente simplista, moralmente miserável e, em termos de atitude, irreflexiva justificativa argumentativa com que os poderes hegemônicos globais apoiam tal genocídio sionista — sob a suposta defesa da civilização e da luta contra o terrorismo —, assistimos ao prelúdio de um iminente instante de verdade: aquele em que, aguçadas as contradições sociais até o ponto do irreconciliável, haverá de desencadear-se uma guerra civil, de características múltiplas e rizomáticas, em nível planetário. De fato, a debacle do sistema liberal, cujo processo de degradação se acelerou dramaticamente nas últimas décadas, parece não escandalizar como deveria, enquanto, no entanto, seguimos à beira do precipício. As democracias liberais, que majoritariamente entregaram suas instituições, valores e promessas à exacerbada tirania do capital transnacional, hoje atuam como guardiãs dessa tirania hipercapitalista — seja em sua versão corporativo-protecionista (Trump), seja em termos de neoliberalismo selvagem (Milei). Diante das promessas e compromissos não cumpridos, e diante do descontentamento, da frustração, do cansaço, da depressão e do abuso que a democracia liberal gerou ou permitiu, não surpreende que boa parte da cidadania de nações “democráticas” reaja com um profundo mal-estar diante da ordem burguesa, reformista e progressista. Esse mal-estar, quando repetido constantemente e atiçado pelos meios de desinformação — tão forjadores de subjetividades precárias —, costuma derivar em ódio: o fascismo representa, ou melhor, encarna, um perigosíssimo antidepressivo contra o entorpecimento e as vexações causadas pelo não-progresso do progressismo.

Assim, este decisivo assunto fica expresso no seguinte: não é que os povos do mundo, diante da crueza do genocídio, não tenham simpatizado com a Palestina; o problema reside, antes, no fato de que, mesmo simpatizando com a Palestina, até o momento não podem fazer mais do que isso: não podem fazer mais porque se encontram atados à culposa dívida, material e moral, com que a ordem liberal e a economia neoliberal atormentam suas almas e retiram a potência de seus corpos. Em uma palavra, quem simpatiza com a Palestina sabe que estamos assistindo a um genocídio transmitido ao vivo, mas não dispõe da força necessária para passar dessa simpatia a uma solidariedade — com toda a carga de organização, imaginação, pensamento e rebeldia que esse passo implica. Nesse cenário, os povos do mundo deixam de ser povos: longe de qualquer substancialização, só há povo onde os corpos se congregam, se abraçam, se cuidam e se preparam para enfrentar o poder institucionalizado, a falácia da ordem que exige ordem, a captura dos afetos e a monotonia das práticas, a anemia tecnocrática do pensamento e o entorpecimento da imaginação exercidos, como fera ferida, pela máquina neofascista. Só existe povo onde os corpos sonham, desejam e lutam, onde mostram o rosto e põem o corpo, onde perdem e se desgastam, em invencível felicidade, pela transformação vital do porvir. Nesse contexto, a mera simpatia com a Palestina, que acompanha no plano subjetivo o colapso do sistema internacional, também expõe outra verdade: que, cansados de tantas injustiças, indignados pela raiz de um sistema cuja exploração nos deixou exaustos, já contamos apenas com uma mínima energia — energia que mal nos permite ser arrastados pelo vício do ódio neofascista, cuja aparente e visceral oposição ao progressismo concede, no próprio instante da fúria, o cumprimento de sua promessa: o cumprimento do desejo de destruição. Nesse sentido, a passagem de uma simples simpatia com a Palestina a uma solidariedade com ela e nela demanda, ao contrário do irascível vício neofascista, um tipo de atitude vital mais exigente, profunda, consciente — e, sobretudo, diferente dos imaginários hegemônicos — do que a impulsiva sedução de um neofascismo supostamente oposto ao decadente progressismo.

Dispensa dizer que, pela enésima vez, Israel violou e continua violando, de forma reiterada, escandalosa e impiedosa, o Direito Humanitário Internacional sem receber qualquer sanção concreta (Foto: Abd Elhkeem Abo Riash, em @Timesofgaza / X)

Geopolítica

O genocídio sionista contra o povo palestino está sendo contemplado, permitido, atenuado e alentado por um nó de poder hegemônico (de caráter militar, securitário, econômico, financeiro, extrativo, político e midiático) de uma envergadura nunca antes vista na história da humanidade. Por certo, tal nó de poder está integrado por uma somatória de poderes dispostos em cada frente (a diplomacia, as comunicações, a política, a economia etc.) e que, em seu conjunto, resulta incontrastável. Incontrastável? Sim, incontrastável; mas apenas incontrastável se o poder for visto com os mesmos olhos do poder: como se o único modo de combater o poder fosse por meio de outro poder, de um poder oposto, de um contrapoder. O que, por certo, não é assim. Tal raciocínio naturalizado reproduz o paradigma — relevante, mas não determinante — da geopolítica. A geopolítica, assim, representa uma cartografia cujos múltiplos marcos e critérios sempre acabam remetendo aos distintos nós de micropoder que conformam um único macropoder global em tensão consigo mesmo. Por quê? Porque, ainda que existam contrapesos relativos ou regionais, a matriz epistêmica da geopolítica está estruturada segundo a mesma dinâmica abstrata e omniabrangente do capital global.

Com efeito, que hoje, geopoliticamente falando, a Palestina esteja menos respaldada do que nunca, é algo inegável e, ao mesmo tempo, desalentador. Mas, em nenhum caso, trata-se de uma condição determinante. É certo que, do sul do Líbano, o Hezbollah foi debilitado e neutralizado pelas forças de ocupação sionistas, tendo, além disso, sido interrompido o fornecimento de armas provenientes do Irã, como resultado do golpe de Estado executado pelo grupo criminoso e fundamentalista tafkari Hayat Tahrir al Sham (organização hipocritamente apoiada pelo Ocidente, Israel e Turquia contra a ditadura de Al-Assad). Também é verdade que o próprio Irã se mostrou cauteloso ao deixar de intervir diretamente na defesa do povo palestino, mediando sua participação por meio do Iêmen, onde, graças à nobreza dos huthis e apesar dos bombardeios estadunidenses e britânicos, continua bloqueando a passagem marítima pelo estreito de Bab-el-Mandeb, especialmente de embarcações com relação militar ou comercial com Israel, bem como realizando ataques limitados ao território palestino ocupado pela entidade sionista. Por sua vez, também é real que as conversas entre Trump e Putin para pôr fim à guerra da Ucrânia — a partir do reconhecimento da derrota de Zelensky e da consequente consagração oficial do ganho territorial da região russófona do Donbass a favor da Rússia — em nada ajudam a resistência palestina: não tanto pela contribuição escassa e timidamente diplomática verbalizada pela Rússia, mas porque os EUA concentrarão sua política internacional prioritariamente no rearmamento de Israel, alinhando-se com Netanyahu e suas pretensões de expulsar forçadamente os moradores de Gaza da região para transferi-los ao Sinai ou à Jordânia. Com isso, o plano sionista de limpeza étnica para apropriar-se de Gaza cumpre a ambição do capital imperial estadunidense, tanto para blindar Israel sob o pretexto securitário da “guerra contra o terrorismo”, como para levar adiante seu poderio “civilizatório” centrado na extração de recursos fundamentais e na construção de complexos econômicos. À custa da destruição de outras formas de vida.

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No entanto, se de algo entende o povo palestino, é de resistência: lutar contra o poder a partir do im-poder. Tal como já indicamos, os povos do mundo, ainda que em sua maioria anestesiados em seus afetos e pouco conhecedores da história, simpatizam cada vez mais e mais profundamente com a Palestina. Eis que, se tal simpatia conseguir extrair seu potencial destituinte — isto é, se conseguir plasmar sua potência em uma organização de base, em um transbordamento de criatividade vital, assim como no espírito de sublevação e de combatividade ético-política dos corpos — talvez, pela primeira vez, não apenas recobraremos a esperança consistente em tender para um mundo de vida, imaginação e justiça, capaz de desacelerar a primazia do capital, como também assistiremos aos albores de um enfrentamento em escala mundial, enquanto instante de verdade: a intensificação hiperbólica de uma (ou desta incipiente) guerra civil planetária.

Ritornelo

Voltemos aos horrores. E vamos lembrá-los para enfrentá-los.

Na madrugada de 18 de março, Israel, com armas de destruição principalmente fabricadas nos Estados Unidos e na Alemanha, assassinou mais de 400 pessoas que se encontravam em barracas de campanha em Gaza. Quase a metade (178 na contagem daquela data) eram crianças. Para agravar ainda mais, esse bombardeio foi realizado em um contexto de fome e emergência sanitária, provocado por Israel (e assim reconhecido por inúmeras organizações em nível mundial, começando pela ONU).

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Efetivamente, desde 2 de março, enquanto o futuro de Gaza era desenhado, paralelamente, por dois grupos diametralmente opostos (de um lado, o sionista com os Estados Unidos à frente e, de outro, o “arabista” com o Egito e alguns outros países árabes como impulsionadores), Israel intensificou suas práticas de bloqueio, impedindo totalmente o ingresso de insumos médicos, alimentos e ajuda humanitária na Faixa de Gaza. Adicionalmente, também proibiu o fornecimento de insumos energéticos com o objetivo de impedir o funcionamento das infraestruturas palestinas responsáveis pela dessalinização da água.

Tudo isso, por certo, depois de quase um ano e meio de genocídio — isto é, após ter assassinado impunemente jornalistas de distintas nacionalidades, equipes médicas e de resgate, funcionários da UNRWA e da ONU, ativistas de diversas origens; após ter martirizado mais de 60 mil palestinos oficialmente (embora a estimativa de mortos, segundo a prestigiada revista científica britânica The Lancet, ronde os 200 mil), dos quais dois terços eram mulheres e crianças; assim como após ter bombardeado mais de uma dezena de hospitais, dezenas de escolas e inúmeras barracas de refugiados.

Dispensa dizer que, pela enésima vez, Israel violou e continua violando, de forma reiterada, escandalosa e impiedosa, o Direito Humanitário Internacional sem receber qualquer sanção concreta. No dia seguinte a esse “bombardeio carpetado”, Israel assassinou mais de 70 palestinos; em 20 de março, retomou a invasão terrestre de Gaza e assassinou pelo menos outros 80 palestinos; hoje, 21 de março, voltou a tomar o controle dos corredores que fragmentam a Faixa.

Ao mesmo tempo, e há meses (ainda que, na realidade, devesse dizer-se desde 1948, e até antes), o sionismo perpetra na Cisjordânia seus crimes de Apartheid, assassinatos seletivos e em massa, devastação de terras cultiváveis, destruição de propriedades, apropriação de casas, controle de estradas e uma longa série de outras violações, que hoje intensificou macabramente sob o amparo de uma comunidade internacional que oscila entre a cumplicidade (EUA e Europa), a indiferença (as monarquias árabes) e a impotência (um grande grupo de países do Sul Global).

Segundo o discurso predominante na imprensa ocidental, Israel, indignado porque o Hamas não entrega os colonos sionistas detidos, “abriu as portas do inferno” (palavras de Netanyahu) como represália. Isso, evidentemente, além de banalizar uma estupidez absoluta, não guarda nenhuma correspondência com a realidade. Ao contrário, foi Israel quem, após múltiplas e explícitas declarações do Hamas a favor de cumprir o pactuado, acabou rompendo o acordo de cessar-fogo, mesmo sem completar a primeira das três fases que o compunham. Isso demonstra que, aos olhos de Israel, o objetivo nunca foi salvar a vida de seus colonos sionistas detidos pelo Hamas, mas sim aproveitar taticamente a ocasião para avançar qualitativamente em sua estratégia de longo prazo: consumar a colonização e a limpeza étnica da Palestina e de seu povo, com vistas à construção do Grande Israel (Heretz Israel).

Ao mesmo tempo, isso se vê reforçado pelos interesses ocidentais, especificamente dos Estados Unidos, voltados tanto ao controle e à exploração dos recursos de gás descobertos no Mediterrâneo oriental, diante das costas de Gaza, como ao multimilionário negócio imobiliário baseado na construção de zonas turísticas em Gaza, uma vez alcançada a expulsão forçada dos palestinos.

Em suma, o genocídio que hoje presenciamos na Palestina não é apenas motivado pelo projeto histórico do sionismo supremacista-religioso, que arrastou consigo o sionismo colonial-secular, voltado à construção do Grande Israel (cuja extensão territorial chegaria até Damasco) após a concretização da limpeza étnica dos palestinos e de outros povos árabes da região.

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O genocídio também mantém vivo o projeto da modernidade eurocêntrica justamente onde se acreditava que estivesse superado: o ideário colonial e supremacista. Por isso, longe de se tratar de um evento isolado, o genocídio atual expressa o mais profundo colapso da arquitetura internacional, sepultando de vez as retóricas liberais, para, em seu lugar, acelerar a chegada do momento mais decisivo que os povos do mundo enfrentarão: passar da resistência ao império do capital em sua atual fase neofascista à sublevação contra ele.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Aldo Bombardiere Castro Licenciado e Mestre em Filosofia pela Universidade Alberto Hurtado.

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