A eleição de Javier Milei representa uma derrota histórica para a democracia argentina, exatos quarenta anos após o fim da ditadura militar (1976-83). Para as camadas populares é a combinação de ilusão e tragédia. E trata-se de revés estratégico para os setores progressistas da América Latina. A avaliação mais abrangente da nova situação demandará tempo e esforço político coletivo.
De imediato, vale a pena tirar decorrências para o Brasil. O Mercosul, que enfrenta profundas divergências internas – como a perspectiva do acordo com a União Europeia capitaneado pelo Brasil e as tratativas isoladas entre o Uruguai e a China – corre o risco de ser interrompido. Além disso, a extrema-direita global volta a ter uma base institucional forte no continente.
NO ENTANTO, É PRECISO EXAMINAR mais detidamente a situação objetiva da sociedade argentina que gerou condições para a ascensão do fascismo pop. O país vive uma carência estrutural de dólares que impacta fortemente o câmbio. A consequência imediata é uma alta inflacionária de 140% ao ano. Some-se a isso a precarização do mercado de trabalho que leva 40% da população a viver abaixo da linha de pobreza, apesar do crescimento do PIB e de baixos índices de desemprego. Não é algo trivial: a resolução desses problemas exige enfrentamentos políticos internos e externos sérios. Mas a frustração popular com o governo Alberto Fernández, que tem no ajuste fiscal e na negativa a confrontos com os de cima suas pedras de toque, criam terreno fértil para pregadores do caos e suas soluções mágicas por fora da política.
Para saber mais sobre a disputa eleitoral no país, confira nossa editoria especial: Eleições na Argentina.
SERIA IMPORTANTE que o resultado das urnas no país vizinho acendesse uma luz amarela no governo Lula. Eleito numa jornada memorável contra a extrema-direita, o governo empossado a 1º de janeiro último decidiu tocar burocraticamente a vida, como se não vivêssemos em tempos excepcionais interna e externamente. Políticas de contemporização em todas as áreas e a adoção de um inexplicável arcabouço fiscal de redução do investimento público, com planos de cortes nos pisos constitucionais de saúde e educação, privatizações a granel via PPPS e contração fiscal que periga provocar uma recessão em 2024 parecem ter saído da cabeça de quem deseja inviabilizar a gestão da frente capitaneada pelo PT. Como é possível termos um ministro da Fazenda que não se cansa de fazer juras aos mercados e agir como um tecnocrata demodê, egresso dos anos 1990?
Luz amarela é alerta a ser notado. Tomara que resulte em cuidadosa alteração de rota, para longe dos arautos do financismo disfarçados de bons moços.
Gilberto Maringoni | Professor de Relações Internacionais da UFABC e diretor da Fundação Lauro Campos. Foi candidato do PSOL ao governo de São Paulo (2014).
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Foto: Ricardo Stuckert / PR