Pesquisar
Pesquisar
USAID Staff

Golpes, espionagem e guerra híbrida: o verdadeiro papel da USAID na América Latina

Parte da esquerda defende a agência de desenvolvimento estadunidense, apesar de ter sido colaboradora da CIA na desestabilização de governos de esquerda na América Latina
Andy Robinson
CTXT
Londres

Tradução:

Ana Corbisier

Quem poderia discordar das duas jovens estrelas da ala progressista do Partido Democrata dos Estados Unidos, Alexandria Ocasio-Cortez (AOC) e Ilhan Omar, ao lamentarem o desmantelamento da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) pelas mãos de Elon Musk e Donald Trump?

“Eu vivi em um campo de refugiados e os programas essenciais da USAID foram os que salvaram minha família da fome”, disse Omar, nascida na Somália, em um protesto contra o plano de encerramento diante da sede da USAID em Washington, horas antes de dois funcionários colocarem uma faixa adesiva negra para tapar o letreiro da enorme agência de ajuda ao desenvolvimento, com 10 mil empregados e 50 bilhões de dólares anuais de orçamento. “USAID é nosso soft power”, elogiou a deputada muçulmana por Minnesota.

Quando surgiram as primeiras notícias sobre o impacto da suspensão dos programas humanitários da USAID na África – como a distribuição de vacinas essenciais para crianças na Ásia, a demissão de milhares de especialistas em saúde e a redução da ajuda alimentar –, quem poderia se opor aos apelos da ala progressista do Partido Democrata em defesa da agência? Ainda mais quando Elon Musk a qualificou como “um ninho de cobras de ideias marxistas da esquerda radical”.

Nada é simples neste momento politicamente complexo, em que o horror diante da ascensão da direita populista ofusca a percepção sobre o restante do cenário. Além de suas atividades humanitárias, a USAID tem sido um instrumento da política externa neoconservadora dos Estados Unidos: ao longo de décadas, participou ativamente de tentativas de golpe na América Latina e pavimentou o caminho para a guerra na Ucrânia.

Colaboração com a CIA e golpes de Estado

A Usaid tem uma longa história de colaboração com a CIA por meio da promoção de supostos grupos pró-democracia, o que serviu como ponto de partida para todas as estratégias golpistas dos Estados Unidos na América Latina. Isso ocorreu desde a Guatemala, em 1954, e o Chile, em 1973, até a Venezuela, a Bolívia e o Brasil neste século. A USAID foi a parceira ideal da chamada National Endowment for Democracy (NED), uma organização criada em 1983 para supostamente promover a democracia, mas que esteve envolvida em diversos golpes e tentativas de golpe na América Latina. Sua atuação começou na América Central, como parte das sangrentas políticas contra insurgentes na Nicarágua, nos anos 1980, e se estendeu ao Haiti e à Venezuela neste século.

A agência de ajuda ao desenvolvimento também foi utilizada para fortalecer forças antirrussas na Ucrânia, onde 80% da mídia supostamente independente dependia do financiamento da USAID para sobreviver. Na Romênia, a USAID também apoiou grupos contrários ao candidato pró-Rússia.

Fim da Usaid | Pt. 1: Sob Trump, agência pode “voltar às origens”

A agência de ajuda ao desenvolvimento também foi utilizada para fortalecer forças antirrussas na Ucrânia, onde 80% da mídia supostamente independente dependia do financiamento da USAID para sobreviver. Na Romênia, a USAID também apoiou grupos contrários ao candidato pró-Rússia. 

Incrivelmente, segundo foi possível averiguar nesta semana, após a auditoria relâmpago de Musk, 700 veículos de comunicação em escala mundial – entre eles a BBC e o portal Politico – haviam recebido financiamento da USAID, seja por subvenção direta ou por contratos de assinatura de seus serviços.

Ação da USAID com mulheres na Tanzânia/ Foto: Megan Johnson/USAID

Segundo o WikiLeaks, a USAID canalizou mais de meio milhão de dólares para a ONG estadunidense Internews Network, que “treinou” mais de 7 mil jornalistas na África, Ásia e Europa para que compreendessem claramente quais são os “valores ocidentais”. Esse é o soft power elogiado por Omar, essencial para pavimentar o caminho do hard power do golpe.

Imperialismo woke

A apropriação neoconservadora, nos programas da USAID, de pautas como feminismo, antirracismo, solidariedade com indígenas e defesa dos direitos LGBTQ fez parte do plano. Exemplo disso são os surpreendentes programas da agência de financiamento a grupos trans e rappers afro em Bangladesh e Cuba, além de projetos como o ensino de finanças para mulheres no Afeganistão. Não há melhor exemplo do que alguns qualificam como imperialismo woke.

Daí a diferença de reação entre democratas – inclusive os da ala progressista, como AOC e Omar –, outros setores progressistas pró-USAID na Europa e os líderes latino-americanos de governos de esquerda. Estes enxergam além da fachada da ajuda ao desenvolvimento promovida pela potência hegemônica. “A USAID tem tantas coisas que, na verdade, é melhor que a fechem”, disse Claudia Sheinbaum, presidenta do México.

Fim da Usaid | Pt. 2: Agência treinou torturadores e fechou os olhos para abuso sexual infantil

Sheinbaum sabe que a agência tentou desestabilizar o governo de Andrés Manuel López Obrador por meio do financiamento de ONGs, como a chamada Mexicanos Contra a Corrupção e a Impunidade (MCCI), criada pelo empresário milionário Claudio X. González, ligado à direita mexicana. Ele orquestrou uma campanha implacável contra López Obrador e Sheinbaum.

Em Cuba, a USAID apoiou a oposição ao governo socialista. Em 2010, tentou criar uma plataforma digital no estilo da rede social X (ex-Twitter) para fomentar uma “primavera cubana”, similar à Primavera Árabe. A agência também financiou diversos rappers cubanos com o objetivo de desestabilizar o governo, mais um exemplo da apropriação cultural pelo golpismo de Washington.

Golpes na América Latina

No Haiti, o segundo país que mais recebe recursos da USAID, depois da Colômbia, a agência financiou, no início desta década, ONGs que tiveram um papel fundamental no golpe contra Jean-Bertrand Aristide, em 2004.

Omar tem toda razão ao destacar a importância do soft power da USAID. Justamente por isso, a esquerda deveria denunciar com firmeza as atividades encobertas da agência. Esse poder brando foi utilizado, por exemplo, para treinar uma nova geração de ativistas antichavistas na Venezuela – entre eles Juan Guaidó e Leopoldo López –, que participaram das violentas manifestações guarimbas contra os governos democraticamente eleitos de Hugo Chávez na primeira década deste século. A oposição venezuelana foi uma das principais beneficiárias do financiamento da USAID, recebendo mais de 200 milhões de dólares em 2023.

Soft power: como EUA usam USAID para guerra cultural contra Cuba e Venezuela

Trump, com suas ameaças de invasão ao Panamá, Groenlândia, México e Canadá, só compreende o poder duro. Mas tudo indica que, pelo papel dos democratas em sucessivas guerras e genocídios, o poder brando é um complemento necessário ao poder duro.

Pude testemunhar pessoalmente o endurecimento do poder brando da USAID na cidade colombiana de Cúcuta, em fevereiro de 2019, quando a agência coordenou uma tentativa de golpe contra o governo de Nicolás Maduro, em um plano conhecido como “cerco humanitário”. Após a realização do infame concerto Venezuela Aid, organizado pela USAID e por Richard Branson, tentou-se, sem sucesso, cruzar a fronteira à força com caminhões carregados de ajuda da agência estadunidense. Os milhões de dólares transferidos da USAID para o governo interino do autoproclamado presidente Juan Guaidó foram desperdiçados e desviados, segundo denúncias de outros segmentos da oposição.

Assine nossa newsletter e receba este e outros conteúdos direto no seu e-mail.

Segundo uma revelação do WikiLeaks, atribuída ao então embaixador dos Estados Unidos em Caracas, William Brownfield, os objetivos da USAID na Venezuela durante aqueles anos eram “penetrar a base do chavismo” e “dividir os chavistas”. A agência canalizava apoio para ONGs, grupos da sociedade civil e determinados partidos políticos.

O verdadeiro papel da USAID

Para compreender melhor o papel da USAID na conversão do poder brando em poder duro, conversei om Tim Gill, da Universidade do Tennessee, que realizou centenas de entrevistas com funcionários da agência na Venezuela para investigar sua atuação na desestabilização do ex-presidente venezuelano Hugo Chávez.

“Fazia parte de um mosaico de estratégias de ajuda ao desenvolvimento iniciadas após a Segunda Guerra Mundial”, explicou-me. “A ideia que orientava essas ações na época era que, se os países pudessem emular os Estados Unidos por meio do desenvolvimento econômico, seriam capazes de resistir à atração do socialismo. Afinal, a União Soviética oferecia seu próprio modelo de desenvolvimento, e Washington queria combatê-lo.”

Que tal acompanhar nossos conteúdos direto no WhatsApp? Participe da nossa lista de transmissão.

Mas, após a queda da União Soviética, nos anos 1990, começaram as críticas de senadores conservadores, entre eles Jesse Helms e Mitch McConnell, como ocorre atualmente. Eles atacaram a burocracia governamental superdimensionada. Esses grupos conservadores exigiram que fosse incorporado um critério mais político, a fim de forçar a USAID a apoiar governos aliados e desestabilizar aqueles considerados inimigos.

Eliminar lideranças latino-americanas

No caso da Venezuela e da Bolívia, por exemplo, estabeleceu-se o objetivo de eliminar Chávez e, posteriormente, Evo Morales. Houve dirigentes do Departamento de Estado que deixaram claro que o trabalho da USAID ia além do desenvolvimento econômico e buscava resultados políticos. “No caso da Venezuela, tratava-se de remover Chávez da presidência”, afirmou Gill.

sso gerou atritos com economistas do setor de desenvolvimento que ainda acreditavam que a agência era um veículo de ajuda. “Conversei com pessoas na USAID que, naquela época, estavam furiosas porque se sentiam comprometidas com o desenvolvimento econômico. Eram movidas pelo desejo de melhorar a vida das pessoas em campo, não pela espionagem política. Houve muita guerra interna.”

A USAID já era o principal órgão dos Estados Unidos responsável por desestabilizar Chávez e acabar com seu projeto de democracia participativa. “A USAID trabalhava com grupos de estudantes e opositores – entre eles, Leopoldo López e Juan Guaidó –, que estavam envolvidos nos protestos das guarimbas por volta de 2007 e 2008. Organizavam seminários para eles, criavam grupos comunitários artificiais nos bairros da Venezuela, redigiam todos os materiais e tentavam convencer a população a abandonar Chávez”, afirma Gill. O mesmo ocorreu com Evo Morales, que acabou expulsando a agência do país em 2013.

Estamos no Telegram! Inscreva-se em nosso canal.

Além da América Latina, a USAID também se dedicou a atuar no Oriente Médio, na Ásia e na Ucrânia, aplicando a mesma estratégia usada na Venezuela: financiar veículos de comunicação e think tanks alinhados para questionar a legitimidade democrática de governos que não apoiavam os Estados Unidos. A agência também ofereceu cursos de treinamento para estudantes da oposição e financiou grupos autodenominados pró-democracia. “São estratégias de longo prazo; não esperam resultados imediatos”, explica Gill. No entanto, o resultado foi a concretização de golpes de Estado ou tentativas de golpe contra governos, de Kiev a La Paz.

Já na primeira administração de Trump, com o ultraconservador John Bolton no comando da política externa, decidiu-se transformar a USAID em um instrumento golpista, como ocorreu em Cúcuta, em 2019. A conclusão mais evidente dos últimos acontecimentos é que a aparência de poder brando já não é considerada necessária. “Trump enxerga tudo como poder duro”, afirma Gill. “Ele está usando um discurso descarado: vamos invadir a Groenlândia, tomar o Canal do Panamá, anexar o Canadá. Ele não se preocupa com o poder brando.”

Que tal acompanhar nossos conteúdos direto no WhatsApp? Participe do nosso canal.

O que a esquerda democrata e seus aliados na Europa precisam compreender é que, seja brando ou duro, o poder da superpotência sempre tem os mesmos objetivos. Uma maneira rápida de entender isso é ler O Americano Tranquilo, de Graham Greene, cujo protagonista, Pyle, trabalha em Saigon para a American Aid Commission, uma fachada da CIA na guerra contra o comunismo na Indochina.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Andy Robinson Correspondente aéreo do La Vanguardia e colaborador do Ctxt desde sua fundação, onde também compõe o Conselho Editorial. Seu último livro é "Ouro, Petróleo e Abacates: As Novas Veias Abertas da América Latina" (Arpa 2020).

LEIA tAMBÉM

Trump fecha Departamento de Educação para implodir autonomia das universidades
EUA: Trump fecha Departamento de Educação para implodir autonomia das universidades
Guerra na Ucrânia trégua mediada por Trump exclui pontos cruciais para paz
Guerra na Ucrânia: trégua mediada por Trump exclui pontos cruciais para paz
China vai além de robôs e DeepSeek e busca liderança global em IA até 2030 (1)
China vai além de robôs e DeepSeek e busca liderança global em IA até 2030
Trump, passado e futuro do inferno que vivem as pessoas trans nos Estados Unidos
Embora minoria, população trans vira grande alvo da cruzada reacionária de Trump