Pesquisar
Pesquisar
Foto: Wikimedia Commons

Grito de resistência: há 70 anos, Getúlio Vargas escrevia sua carta testamento

No documento, Getúlio Vargas oferece sua vida como um holocausto, uma forma de resistir à exploração e às injustiças que ele via sendo perpetuadas contra a nação
Redação Diálogos do Sul Global
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

Em 23 de agosto de 1954, Getúlio Vargas publicou sua carta-testamento, um dia antes de sua morte. O documento emblemático expõe a profunda angústia e o sentimento de traição que o líder enfrentava.

No documento, Vargas expressa ainda a pressão implacável das “forças e interesses contra o povo” e lamenta as calúnias e a falta de defesa a que foi submetido, além de destacar sua luta pela libertação social e pela criação de empresas nacionais como a Petrobras, resistindo às pressões internas e internacionais que buscavam enfraquecer o seu governo e a soberania do país.

Seu sacrifício pessoal como uma última tentativa de manter-se ao lado do povo brasileiro também é abordada por Vargas. Ele oferece sua vida como um holocausto, uma forma de resistir à exploração e às injustiças que ele via sendo perpetuadas contra a nação.

Suas palavras finais ecoam como um grito de resistência, afirmando que seu sacrifício não será em vão, mas sim uma inspiração eterna para a luta pela independência e dignidade do povo brasileiro.

Confira o texto na íntegra a seguir:

Carta Testamento

Getúlio Vargas

Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se novamente e se desencadeiam sobre mim.

Não me acusam, me insultam; não me combatem, caluniam e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.

Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social.

Tive que renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a Justiça da revisão do salário-mínimo se desencadearam os ódios.

Quis criar a liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente.

Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia a ponto de sermos obrigados a ceder.

Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.

Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação.

Meu sacrifício nos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória.

Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue terá o preço do seu resgate.

Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia, não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história.

Rio de Janeiro, 23/08/54 – Getúlio Vargas


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Redação Diálogos do Sul Global

LEIA tAMBÉM

Jovem Pan
Rede Jovem Pan: tendenciosidade, desserviço e desinformação
G20 em quadrinhos - n
G20 em quadrinhos | nº 15: Escudo
Yousef Saif - Palestina
Yousef Saif, refugiado palestino no Brasil: “Palestinos viram estatística, mas têm vidas, histórias”
Flávio Tavares - Nossa independência no abismo 2
Flávio Tavares | Nossa independência no abismo?