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Hesse, Mann e Saramago: as origens históricas do conceito de direita e esquerda na literatura

O passado é terrível e o presente é poderoso só por estar aí diante de todos. “Maior, porém, mais santo, é o futuro, grande e consolador para o coração oprimido”
Carlos Russo Jr
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

“É muito fundo o poço do passado. Não deveríamos antes dizer que é sem fundo esse poço? Sim, sem fundo se o passado a que nos referimos é meramente o passado da espécie humana, essa essência enigmática da qual nossas existências normalmente insatisfeitas e muito anormalmente míseras formam uma parte; o mistério dessa essência enigmática inclui por certo o nosso próprio mistério e é o alfa e o ômega de todas as nossas questões, emprestando um imediatismo candente a tudo o que dizemos e um significado a todo o nosso esforço. Pois, quanto mais fundo sondamos o mundo inferior do passado, tanto mais comprovamos que as bases mais remotas da humanidade, sua história e cultura revelam-se inescrutáveis” (Thomas Mann, “José e seus irmãos”).

Os relatos bíblicos são histórias e mitos; cada autor que versa sobre eles empresta-lhes a cor e o calor literário que lhe é próprio. De todas as maneiras, trabalhar com mitos é inerente à aceitabilidade de seu retorno, da sua atemporalidade e de sua onipresença, o que sem dúvida veremos serem reproduzidos nos conceitos de direita e esquerda, que possuem origem bíblica e se expandem nos tempos modernos a partir da revolução francesa de 1789, e no pós-modernismo.

Dentro dessa perspectiva, debruçamo-nos em alguns autores, principalmente naqueles que realizaram sua busca no poço profundo da história e desde lá realizaram, com urdidura própria, a tessitura de duas das principais antípodas que marcam a História da humanidade: 

  • Direita,      representada pela estirpe dos Eleitos, daqueles que detêm o poder político      e econômico real, e

  • Esquerda,      outra estirpe, aquela que traz em si a marca de Caim, da exclusão, da revolta e do      poder dionisíaco da cor vermelha, a cor da alegria e de revolta.

Herman Hesse é um dos autores que refletem sobre a oposição mítico-histórica entre às duas espécimes antagônicas. Em “Demian”, ele narra a história de um jovem, Sinclair, criado por pais religiosos e ortodoxos que, de repente, se vê num mundo muito diferente daquele pregado pelos mesmos. Atormentado pela falta de respostas às perguntas que se faz, procura-as na introspecção. 

Acontece que a introspecção pode ser uma senda perigosa para o conservadorismo e ela o conduz até um colega de classe precoce e envolvente, Demian, que para Sinclair encarnará a árvore do saber, do bem e do mal. Com ele o personagem provará do crime, da amizade e das incertezas. Irá também se rebelar contra as convenções sociais e, na revolta, Sinclair descobrirá não apenas o doce sabor da independência, mas também o poder que cada um de nós possui de praticar ou o bem, ou o mal. 

Demian, então, recruta Sinclair para sua própria estirpe, a amaldiçoada pela Divindade: a de Caim, composta por pessoas que possuem a capacidade de exercer e diferenciar o bem do mal. 

Do outro lado permanecerão os piedosos, tanto os pais do jovem Demian, quanto os de Sinclair. Eles incorporam o protótipo do outro extremo bíblico, simbolizando Abel, o Eleito, o sedentário, o abatedor de ovelhas, o cumpridor dos deveres exigidos pelo Altíssimo.

Demian e Sinclair, Caim e o Vermelho são errantes e pela vida seguirão descuidados e desobrigados de obrigações religiosas, mas obrigados e centrados na fraternidade que os une.

O passado é terrível e o presente é poderoso só por estar aí diante de todos. “Maior, porém, mais santo, é o futuro, grande e consolador para o coração oprimido”

Pirentest
Caim e o Vermelho são errantes e pela vida seguirão descuidados e desobrigados de obrigações

Voltando ao “Livro dos Livros”, a Bíblia, não nos esqueçamos de que foi Deus quem desencadeou no irmão desgraçado o aguilhão da inveja. Ao assassinar Abel, Caim foi amaldiçoado pela divindade e condenado à peregrinação sem quartel, sem Pátria e sem lar. Ao inocular-lhe na testa um sinal, Deus o marcou e aos seus descendentes como a estirpe bastarda, que, sempre que puder, tratará de “prejudicar a raça eleita” por Ele, o Deus de Moisés, como a única legítima. 

Mas a estirpe de Caim sempre aumentará. Nela se engajará Ismael, o filho renegado de Abraão, fruto que fora do sexo praticado com a escrava egípcia Agar. O Eleito será Isaac, o filho da esposa preferida, de boa raça, aquele que Javé substituirá por um cordeiro na hora da imolação. 

Isaac, o Eleito, por sua vez, terá dois filhos com Rebeca. Esaú, o primeiro a nascer e que deveria herdar a primogenia e a bênção, e Jacob, o segundo. Mas Jacob com o engodo preparado por ele e pela própria mãe, irá se sobrepujar ao irmão, o peludo, o Vermelho Esaú e será abençoado em seu lugar, o que significa herdar a herança paterna e a identidade do mesmo para com a Divindade.

Depois do grande feito, Jacob, acossado por Esaú em fúria, fugirá com muito medo, pois a Direita, mão a mão é covarde, para as terras de Labão. E na fuga Jacob, em sonho, lutará com um anjo. Ele, intitulando-se vencedor se tornara cocho e passará a ser chamado de Israel, que em hebraico significa “o guerreiro do Senhor”. Receberá, então, de Javé a responsabilidade de fundar a partir de seus filhos, a raça dos israelitas. 

Labão, o “demônio vermelho”, o tio de Jacob, é quem permitirá que ele se esconda pelo tempo necessário para a fúria do seu irmão Esaú abrandar, permitindo que o Eleito, Jacob, crie fortuna própria através do engano e do roubo ao próprio sogro. 

Sob o teto do tio Labão ele trabalhará por duas vezes sete anos e dele receberá duas esposas: primeiro Lia, a loira de olhos remelentos, depois, sua irmã, destinada a ser a esposa de eleição de Jacob: Raquel, a favorita. 

Lia será a mãe de seis dos filhos de Jacob, os israelitas de olhos também inflamados que, no futuro, deverão se curvar ante o Eleito, José, filho de Raquel.

De todo modo, a estirpe de Caim será para todo o sempre uma autêntica sombra da Estirpe Eleita, às vezes existindo tão somente para configurar legalidade àquela, como um negativo que contenha a inversão dos traços especiais dos Eleitos, tornando possível sua própria existência.

Essa origem mítico-bíblica do dualismo da direita e da esquerda é narrada com precisão por Thomas Mann em “José e seus Irmãos”. Um dualismo que atravessa toda a obra, sendo mesmo o seu “leitmotiv”, refletindo a dualidade em que o próprio Mann se encontrava num momento de transição ideológica. 

O mito bíblico fala de uma dualidade direcional, de dois caminhos e comportamentos a assumir perante a vida, por onde descendem parentescos e filiação de almas. No fundo, são duas árvores que se entrecruzam e que para o observador desatento podem se confundir com apenas um único nascedouro. Mesmo assim, vistas através do “poço insondável que é o passado da humanidade”, a eternidade humana nos conduz à própria criação das árvores do bem e do mal, em que o ser, o nada, a verdade, a mentira, a justiça, a injustiça, formam um só tronco, uma só raiz. 

Mas quando vistas de perto, olhadas através de lentes humanas, elas se bifurcam na justa medida do que é duplo: árvore e caminho da direita; árvore e caminho da esquerda! Isso não exclui que se entrelacem, que se permutem, e que ocorra a dialética: aquilo que ontem tenha sido esquerda, hoje se transforme em direita (possuidora do poder) e vice-versa.

Em Mann pululam existências que remontam à estirpe sombria e reprovada pela ordem reinante, aquela que carrega a marca da esquerda imposta pela Divindade. Seus personagens saltam aos olhos, pois a cor que deles emana é vibrante, alegre, vermelha, que também é a expressão do contestador, o símbolo dionisíaco. 

Pelo menos é esse o modo como a Ordem, a Direita, os Eleitos enxergam a questionadora e sempre espoliada, a Esquerda.

Quando em disputa, é a Direita quem vence e acaba por apossar-se do poder, da bênção e das heranças, empregando a astúcia e o engano, quando não a violência.

Jacob que em sonhos luta com um anjo (ou seria um demônio?) e como fruto da luta onírica se afigurará coxo e dará a si mesmo o título de Israel, o guerreiro de Deus. Raquel, a beleza frágil, mas que gera José, o décimo primeiro varão do patriarca. Varão que será o Eleito pelo pai como seu primogênito. Ora, o ódio dos irmãos preteridos desembocará em ódio contra José, que será vendido aos medianitas do deserto, aqueles da estirpe dos vermelhos.

Judá, o quarto filho de Jacob, uma vez José dado como morto ganhará os direitos de primogenitude e de integrar-se à Estirpe dos Eleitos graças às artimanhas de moça Tamar. Ela inicialmente se insinua junto ao velho Jacob até que o patriarca lhe conceda o casamento com os dois filhos de Judá. O primeiro não resiste ao acasalamento e morre; o outro, Onan, é punido por Deus por negar-se a depositar seu sêmen no interior do sexo da mulher. Tamar, então, age como prostituta, e por meio desse engodo, logra desposar Judá e garantir-lhe o status de Eleito por Jacob e, por decorrência, junto ao Deus de seus ancestrais. 

Assim agem os da estirpe dos Eleitos. E assim atuam, por trazerem em si a inteligência das coisas Divinas que advêm de sua condição de eleição, não ocultando sua forte inclinação pela sabedoria mundana. Desta forma, os Eleitos não se privam de nada, nem mesmo de relacionarem-se com os Vermelhos, desde que isso lhes traga benefícios. 

Simone de Beauvoir dizia que a Direita “agia”, enquanto a Esquerda era a portadora da “inteligência”. A origem mítico-bíblica de ambas prova exatamente o contrário. Os Vermelhos trabalham, são espoliados, enganados. A Direita é inteligente, ambiciona e consegue o poder e vive a “meditar” em como conservá-lo, custe o que custar.

Para Mann, a Direita, os Eleitos como Isaac, Jacob e José, é sempre mais inteligente que os Vermelhos, os descendentes de Caim. Entretanto, ao mesmo tempo, ela é mais canalha, sua espiritualidade tem a sagacidade daquele que traz em si a maldade, a maldade de quem não se importa com os demais, pois já se sabe absolvido pelo seu Deus! 

Para concluir nosso ensaio, visitemos José Saramago que em seu “Caim”. Ele descreve o momento de espanto em que o Vermelho, o amaldiçoado, mal podia crer no que seus olhos insistiam em lhe revelar. Trata-se do povo de Israel quando de sua fuga da escravidão do Egito, sob o comando de Moisés: 

“Não bastavam Sodoma e Gomorra arrasadas pelo fogo, pois justamente ali, no sopé do monte Sinai, ficara patente a maldade do Senhor”. Sob o comando de Josué (a mão armada de Moisés) os homens da tribo de Levi, os Eleitos, haviam matado homens mulheres e crianças a ponta de espada, “três mil mortos só porque o Senhor havia ficado irritado com a invenção de um suposto rival na figura de um bezerro”. 

Pela boca de um Caim redivivo, Saramago conclui a respeito do Deus de Abraão e de Moisés: “Não há dúvida de que esse Senhor um dia irá chamar-se o Deus dos Exércitos dos Eleitos, aliás, não lhe vejo outra utilidade”. 

O passado é terrível e o presente é poderoso só por estar aí diante de todos. “Maior, porém, mais santo, é o futuro, grande e consolador para o coração oprimido”. 

E assim é, foi e será tanto no mito quanto na História!

Carlos Russo Jr é colaborador da Diálogos do Sul


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Carlos Russo Jr Carlos Russo Jr., coordenador e editor do Espaço Literário Marcel Proust, é ensaísta e escritor. Pertence à geração de 1968, quando cursou pela primeira vez a Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades, com Monografia sobre “Helenismo e Religiosidade Grega”, foi discípulo de Jean-Pierre Vernant.

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