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Arte presente em “Histórias de Alexandre”, por Marcelo Guimarães Lima.

“Histórias de Alexandre”, edição comemorativa | Pt. 3: Literatura e mundo sertanejo

Útima parte da “Introdução” da nova edição comemorativa – completa, corrigida e ilustrada – do clássico sertanejo de Graciliano Ramos (Edit. Práxis Literária/ Anita Garibaldi)*

Edilson Dias de Moura, Yuri Martins-Fontes L.
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

Este é o terceiro texto de uma coleção de três publicações sobre a edição comemorativa de “Histórias de Alexandre”. Leia também:

“Histórias de Alexandre”, edição comemorativa | Pt. 1: Vida e obra de Graciliano Ramos

“Histórias de Alexandre”, edição comemorativa | Pt. 2: Aspectos históricos da obra

Alexandre: uma novela

Havíamos dito que Histórias de Alexandre e pertence ao gênero novela. Antes de continuarmos, é preciso entender as diferenças mínimas entre narrativa e gênero literário. A melhor opção para isso é partir de noções básicas, como “contar” e “mostrar”. Narrar é o ato de contar ou mostrar algo que inclui pessoas ou personagens, ação, tempo e espaço. Portanto, o processo de “contar” ou “mostrar” configura o que se define por narração invariavelmente. 

O gênero, por sua vez, compreende um conjunto variável de aspectos que qualificam a narrativa. Por exemplo, narrar algo que se passa em um planeta distante a milhões de quilômetros, num tempo futuro indefinido, costuma-se classificar como narrativa do gênero ficção científica. Se por um lado a narrativa é marcada por elementos fixos (narrador, tempo, espaço, cenário, ação, personagens etc.), já o gênero é marcado por um conjunto variável de características intercambiáveis entre si que qualifica o modo narrativo, por exemplo: ficção científica, conto maravilhoso, fábula infantil, romance realista etc. Note-se que em Histórias de Alexandre encontramos a mescla de características da fábula (bichos que falam), do realismo (a menção à abolição do trabalho escravo), do realismo mágico (no marquesão de jaqueira), entre outros.

Dentre os gêneros, o romance – de modo simplificado – é uma narrativa longa, contendo uma história de vida completa ou várias histórias divididas em partes ou capítulos. Quanto à novela, trata-se de um gênero intermediário, narrativa média, um pouco menor que o romance; além disso, ela apresenta capítulos, interligados pelo enredo, que não formam sozinhos uma unidade de sentido completo. Já o conto corresponde a uma narrativa curta, com unidade de sentido completo – podendo receber subclassificações como “miniconto”, “microconto” ou “nanoconto”.

Isto exposto, consideramos aqui, pela interdependência dos capítulos, que Histórias de Alexandre é uma novela, e não um conjunto de contos, embora sua leitura também possa ser realizada de modo autônomo. Porém, nesse caso, seria preciso considerarem-se pontas soltas no processo narrativo, isto é, indícios sem correspondências explícitas ou implícitas. Vejamos o seguinte caso no trecho do capítulo “O olho torto de Alexandre”:

Um dia destes apareceu um veado ali no monte…
O cego preto Firmino interrompeu-o:
— E a onça? Que fim levou a onça […]?
Alexandre enxugou a testa suada na varanda da rede e explicou-se:
— É verdade, seu Firmino, falta a onça. Ia-me esquecendo dela. Ocupado com um caso mais importante, larguei a pobre. 

Arte presente em “Histórias de Alexandre”, por Marcelo Guimarães Lima.

A interrupção de seu Firmino é pertinente, já que naquele ponto a expectativa do ouvinte (ou leitor) é a amarração da história da onça, dando unidade ao tecido no capítulo. No entanto, a aparição do veado compõe o enredo do livro, e Alexandre dá a entender que, para ele, trata-se de “um caso mais importante” que o da onça. Qual seria a importância do veado? Sua antecipação significa que essa linha do enredo atravessa a novela por inteiro. Assim, caso esse capítulo fosse lido autonomamente como conto, sem a leitura do livro, a aparição do veado se tornaria uma ponta solta na amarra narrativa. 

Ocorre que, no gênero novela, os capítulos se entrelaçam, dando unidade ao todo. Nesse caso, “O olho torto de Alexandre”, segundo capítulo, vai ser enlaçado a “A espingarda de Alexandre”, reatando o fio narrativo abandonado vários episódios antes:

— Os senhores querem saber como se deu esse caso do veado, uma história que apontei outro dia? perguntou Alexandre às visitas, um domingo, no copiar. Ora muito bem. Olhem aquele monte ali na frente. É longe, não é?

Essa aparição do veado enlaça o primeiro capítulo – e é mesmo um meio de qualificá-la enquanto gênero literário. Desde a “Apresentação de Alexandre e Cesaria”, isso estava dado como ponto ou nó importante, ligado ao olho torto do protagonista como um modo não linear de ver as coisas. Sabemos ali que ele “falava bonito” e que “guardava muitas coisas no espírito e sucedia misturá-las”. A mistura corresponde à estratégia do personagem, contador de causos, que cria o suspense, cuja finalidade é manter a atenção dos ouvintes e leitores ao longo dos episódios. Daí a importância do veado, repetidamente, desde o início do livro, destacadas pelo escritor-narrador e pelo próprio Alexandre. Só após a leitura do capítulo “A espingarda de Alexandre” é que vamos entender suas implicações para a novela. O protagonista muda então sua percepção do “olho torto” como defeito, descobrindo que seu desvio constituía uma dádiva. Cesária também participa disso reforçando:

Não se lembrava do veado que estava no monte? Pois é. Um homem de olhos comuns não teria percebido o veado com aquela distância. Alexandre ficou satisfeito e começou a referir-se ao olho enviesado com orgulho. O defeito desapareceu […]

Esse capítulo descreve o momento da transformação da vida de Alexandre, explicando seu entusiasmo pela contação de suas histórias em função de sua percepção do veado a uma distância considerável. Desde então, as distorções da realidade provocadas por esse olho deixam de ser defeitos e passam a integrar a narrativa como efeito estético, suas distorções abrilhantam suas histórias, ele passa a falar bonito. O protagonista deixa de ser um vaqueiro simples para se tornar um cavaleiro nobre nas histórias, apesar de suas visões não passarem de moinhos de vento.

O direito ao estatuto literário: causos complexos

É preciso considerar que os causos contados em primeira pessoa por Alexandre configuram suas características íntimas e exteriores, assim como as do grupo humano a que pertence. Suas histórias diferem da narrativa efetivada na escrita pela terceira pessoa: no caso, os causos contados por Alexandre diferem do que é escrito por Graciliano. Há dois níveis de enunciação nessa novela: o do contador de histórias Alexandre, e o do escritor-narrador, que as escreve. Estes dois narradores, um em terceira pessoa, o escritor, outro em primeira pessoa, o protagonista, mantêm suas características pessoais. 

Isto é, embora o narrador-escritor conheça o grupo a que pertence o protagonista, ele não assume a autoria das histórias como suas, comunicando inclusive que elas podem até mesmo já terem sido escritas, pois que são patrimônio cultural do povo sertanejo. A narrativa de Graciliano corresponde à tradição literária, a outra, de Alexandre, à tradição popular, estando as duas realizadas na novela em simetria: por exemplo, os dois narradores concordam que o episódio do veado é um ponto de virada para o protagonista.

Sendo a narração de Alexandre simétrica à do narrador-escritor, temos que os causos narrados pelo “eu”/Alexandre estão embutidos na narrativa literária. O que se pretende aqui chamar atenção é para o fato de que ambas são expressões artísticas que estão em um mesmo nível: uma da ordem da narrativa de transmissão oral, outra da narrativa escrita literária. Tratam-se de produções de ordens distintas, mas que se completam como literatura no universo humano.

Ambos os narradores – um marcado pela terceira pessoa e Alexandre, na primeira pessoa –, fazem literatura. Os causos narrados assumem estatuto de literatura – em termos ético e estético. O escritor-narrador respeita a oralidade do contador, não busca impor uma hierarquização de valor literário entre as narrativas. Não há desprezo à narrativa da personagem, que é apresentada em sua originalidade e não sofre adaptações de fala nem distorções fonéticas. Ambas têm igual direito não só de serem contadas como lidas – e têm valor como são.

Antonio Candido em seu ensaio “O direito à literatura”, escrito em 1988, define a literatura como: “criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações” (2012). E diz ainda que:

Vista deste modo a literatura aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado.

Arte presente em “Histórias de Alexandre”, por Marcelo Guimarães Lima.

Nesse sentido, podemos também dizer, com Alberto Manguel, que “ler nos ajuda a manter a coerência no caos” (2000), assim como a contação e audição das histórias de Alexandre, por parte dele, seus familiares e amigos em sua modesta casa, correspondem a uma necessidade humana “que deve ser satisfeita” – tendo em vista que, ainda segundo Candido, sua não satisfação pode “mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza” (ibidem, 2012). 

Assim, os momentos “literários” vividos pelos personagens na casa de Alexandre, por si só, já compreendem uma etapa dos eventos mais complexos da constituição da personalidade humana, da compreensão ética e estética do mundo. O que se passa durante as contações de histórias dessa obra revela um dos mais importantes direitos humanos: o direito à arte literária, seja ela escrita ou não, como um momento de inspiração, de participação coletiva e possibilidade de transformação da realidade. 

Nas histórias de Alexandre, por isso mesmo, o sonho, o sobrenatural, a fabulação e o real apresentam-se simultaneamente, desaguando em cascata pelo suadouro no final da narrativa. Alexandre diz que precisa desabafar: “dizer o que vi naqueles sonhos agoniados de quem está de viagem para a terra dos pés juntos”. Então, nesse último episódio, tudo se une no delírio:

Primeiro foi um bode. Montei-me nele, e o bicho cresceu, passou as nuvens […] Caí escanchado numa onça-pintada, que se atirou pelo mundo correndo […] meteu-se num mato cheio de marquesões cobertos de jacas maduras, parou na beira de um rio […] notei que estava com a perna metida na goela de uma jiboia […].

Note-se que a necessidade de Alexandre se liga à sua fantasia – propiciada pela fábula e pela criatividade. A contação de feitos extraordinários desafia as carências do presente, embora não as elimine, confirmando a capacidade humana de persistir nos sonhos, ainda que de olhos abertos. 

Os feitos extraordinários do passado, nesse sentido, se confirmam no presente – nas duas pontas da vida dos protagonistas da obra. As histórias de Alexandre constituem um modo de narrar que representa um verdadeiro patrimônio humano – desde o início indicado pelo autor como característica pertencente ao mundo sertanejo.

* Conheça o livro: https://praxisliteraria.com.br/

Referências bibliográficas (partes I, II e III)

AMADO, Jorge. “Mestre Graça”. In: RAMOS, Graciliano. Viagem. Rio de Janeiro/ São Paulo: Record/ Martins, 1977.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2015.

CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. 

CANDIDO, Antonio. “O direito à literatura”. In: LIMA, Aldo (org.). O direito à literatura. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012.

LINS, Osman. “O mundo recusado, o mundo aceito e o mundo enfrentado”. In: RAMOS, Graciliano. Alexandre e outros heróis. Rio de Janeiro: Record, 1982.

MANGUEL, Alberto. No bosque do espelho: ensaios sobre as palavras e o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

MENDONÇA, Wellington Pascoal de. “Graciliano Ramos na belle époque carioca: um projeto frustrado”. In: Sociologia e Antropologia, v. 12, n. 3, 2022.

MONTEIRO FILHO, Edmar. O major esquecido: Histórias de Alexandre, de Graciliano Ramos. Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp [Dissertação], 2013.

OLIVEIRA, Amanda de Andrade. Mirada em Histórias de Alexandre, de Graciliano Ramos. Programa de Pós-Graduação em Letras da UFSE [Dissertação], 2017.

RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. Rio de Janeiro: Record, 2005.

SALLA, Thiago Mio. Graciliano Ramos e a cultura política. São Paulo: Edusp, 2016.

SODRÉ, Nelson Werneck. “Memórias do cárcere” [Prefácio] (1954). In: RAMOS, Graciliano. Memórias do Cárcere. Rio de Janeiro/ São Paulo: Record, 1978.

VIEIRA, José Geraldo. “A dioptria de Alexandre” [Prefácio]. In: RAMOS, Graciliano. Alexandre e outros heróis. São Paulo: Martins, 1973.

Leia também:

“Histórias de Alexandre”, de Graciliano Ramos, ganha versão revista e ilustrada; edição é limitada


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Edilson Dias de Moura Professor, editor, revisor e autor de material didático e crítica literária; doutor em Letras (USP), é cofundador da revista Opiniães (USP) e autor de Graciliano: romancista, homem público, antirracista (Edições Sesc-SP, 2023).
Yuri Martins-Fontes L. Professor, escritor, editor e tradutor; membro da coordenação do Núcleo Práxis-USP e da Editorial Práxis Literária, é autor de Marx na América (2018), Cantos dos infernos (2021) e História e lutas sociais (2019), entre outras obras.

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