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Histórico: Porto Alegre elege primeira bancada negra na capital mais segregada do Brasil

Na pesquisa de índice de desenvolvimento humano (IDH) PA é considerada a capital mais racista do país e isso tem a ver com dados reais
Murilo Matias
Jornalistas Livres
São Paulo (SP)

Tradução:

Karen Santos e Matheus Gomes do Psol, Laura Sito do PT, Bruna Rodrigues e Daiana Santos do PCdoB produzem a grande novidade política da cidade ao enegrecerem a Câmara Municipal elegendo-se entre os mais votados e formam uma bancada negra.

Na sexta-feira anterior à eleição a professora e vereadora Karen Santos (Psol) completava mais um aniversário, mas o presente viria dois dias depois com a abertura das urnas e o apoio de mais de 15 mil votos. A campanha do “povo que batalha” como é reconhecido o grupo da parlamentar reeleita abriu as portas para a grande notícia do primeiro turno da eleição de Porto Alegre ao posicioná-la como a mais votada da cidade junto das destacadas votações de Matheus Gomes, Bruna Rodrigues, Laura Sito, os quatro situados entre os 11 mais bem votados, e Daiana Santos que garantiram a consolidação da primeira bancada negra de esquerda da capital gaúcha, a mais segregada racialmente do Brasil.

O reconhecimento conquistado por Karen junto à população veio à base de muito trabalho no centro, nos terminais de ônibus e sobretudo nas periferias com a articulação de frentes do movimento social negro como Coletivo Alicerce e a Frente Quilombola RS. “Percorremos a Lomba do Pinheiro, Restinga, Rubem Berta. É desses lugares que nos alimentamos para encarar a elite que quer impor seu projeto de cidade em detrimento do sufoco do nosso povo. Estamos enfrentando aumento do desemprego e as pessoas têm cada vez mais dificuldade para colocar a comida na mesa. Precisamos de crítica e mobilização, a despolitização é reflexo do processo  do bolsonarismo “.

Apesar da vitória nas urnas Karen preocupa-se com o que classifica de apatia de parte da cidadania e com a falta de participação popular nas decisões. “A Câmara é estruturada para afastar o povo e nós precisamos aproximar, uma maneira é com nosso modo de vida, quando pegamos um ônibus a gente se reconhece no cobrador, entrega um panfleto, conversa. Precisamos dessa comunicação do cotidiano”, alerta.

Na pesquisa de índice de desenvolvimento humano (IDH) PA é considerada a capital mais racista do país e isso tem a ver com dados reais

Jornalistas Livres
Karen Santos e Matheus Gomes do Psol, Laura Sito do PT, Bruna Rodrigues e Daiana Santos do PCdoB produzem a novidade política da cidade.

Apostando no amplo diálogo Matheus Gomes, o quinto preferido entre os eleitos com 9.869 votos articulou sete frentes temáticas e 200 ativistas para elaborar suas propostas cuja centralidade está no embate antiracista. O agora vereador trabalhou por três anos com a pesquisa de amostra por domicílio do IBGE, principal estudo feito instituto no intervalo entre os censos, vivência que lhe permitiu aprofundar seu conhecimento sobre a cidade.

“Nosso vínculo sempre foi com os territórios, o IBGE me fez compreender essa relação de maneira mais completa, inclusive sobre a desigualdade racial. Na pesquisa de índice de desenvolvimento humano (IDH) Porto Alegre é considerada a capital mais racista do país e isso tem a ver com dados reais sobre escolaridade, expectativa de vida, acesso a saneamento, saúde, vários direitos que não conseguimos acessar. Queremos construir um mandato que seja uma ponte pra um novo tipo de representação articulando essas diferentes causas”, expressa.

O historiador formado pela UFRGS ressalta dados pouco conhecidos sobre Porto Alegre como o fato de abrigar a maior proporção de terreiros de matriz africana do país, ter sido pioneira  no reconhecimento do primeiro quilombo urbano nacional e ser o local onde surgiu a ideia do 20 de novembro a partir de encontros entre lideranças do movimento negro Oliveira Silveira, Ilmo da Silva, Vilmar Nunes e Antônio Cortês na famosa esquina democrática em plena ditadura militar na década de 1970.

“O mandato pode ajudar muito nesse sentido. Temos meios de expressar cada vez mais nossa negritude aqui no sul. As pessoas de fora se impactam quando vêm pra cá, conhecem uma comunidade ou o centro e percebem o quão preta é nossa cidade e cultura. Viajando pelo país conheci diferentes expressões da desigualdade racial, mas aqui há uma intensidade diferente pela tentativa de apagamento histórico e pela discrepância nos dados concretos que mencionei anteriormente”.

PT E PCdoB renovados

O PCdoB volta a conquistar cadeira na Câmara com a eleição de Bruna Rodrigues, décima primeira mais votada e cuja trajetória se confunde com a vida de milhares de mulheres e homens das vilas, como são conhecidas as áreas periféricas de Porto Alegre. Bruna que começou trabalhar desde os sete anos varrendo a feira da Vila Cruzeiro sabe de perto quais são as necessidades dos moradores onde obteve massiva votação.

“Fui removida pela obra da Avenida Tronco e sei que não há desespero maior para uma família do que a ameaça de perder seu teto. A permanência do povo nessa terra é fruto de muita luta, por isso tenho compromisso com a regularização fundiária”, assegura. Outra carência comum entre as mulheres do local a falta de vaga em creche foi situação enfrentada por Bruna ao ser mãe e razão que a fez procurar e conhecer a então vereadora Manuela Dávila (PCdoB), hoje candidata à prefeita disputando o segundo turno contra o emedebista Sebastião Melo.

A reabilitação de espaços públicos na comunidade e a reabertura da escola de Ensino Médio estão entre as prioridades da vereadora escolhida por 5.366 portoalegrenses.”Não temos escola de ensino médio, nem técnica na Cruzeiro. Vou brigar pela reabertura da unidade educacional na qual eu estudei, me formei e que pode ensinar muitos jovens como eu. Se hoje sou estudante da universidade federal é porque aquela escola me fez comprometida com a educação”, garante.

Já o PT vem renovado pela expressiva votação da jornalista Laura Sito, a décima mais votada entre todos os candidatos do pleito com 5.390 votos. Ao conceito apresentado nos materiais de campanha de “eleger uma de nós” agregou-se a bagagem de Laura,que mesmo com apenas 28 anos já acompanhou na qualidade de diretora de direitos humanos da União Nacional dos Estudantes (UNE) a implementação da lei de cotas a nível nacional nas universidade públicas e estabeleceu-se como liderança do partido ao ocupar a vice-presidência municipal.

“Orientada por Sonia Saraí (ex-vereadora) e o senador Paulo Paim compreendi a importância de disputar  o instrumento partidário e a ocupação dos espaço institucionais como ferramenta de transformação. Sabemos que chegou a nossa hora, teremos voz para decidir os rumos da cidade”, reforça.

Laura, que fez a campanha grávida, apostava desde então na eleição de uma bancada negra e representativa. “Acredito que em 2020 o espaço do debate político pode trazer um novo desenho para a Câmara . Me toca muito saber que ao longo desses anos somente uma mulher negra foi eleita e não sendo de esquerda. Todas que assumimos por maior ou menor período foi como suplente, mas acredito que o conjunto de lutas nos coloca a possibilidade de fazer história e alterar isso. Ter uma bancada negra comprometida com uma agenda de combate ao racismo pode ser fundamental para alterar a condição de cidadã de parcela significativa da sociedade”, projeta.

Cabe sublinhar também a importante votação de mais de quatro mil votos atingida pela candidatura coletiva de cinco mulheres negras com Reginete Bispo e as covereadoras  a Iyalorixá Nara de Oxalá, Thayna Brasil, Josiane França e Karina Elias, que ficaram de fora da lista das eleitas somente pelo coeficiente eleitoral partidário. “A nossa política é a do acolhimento e seguiremos fazendo isso dentro ou fora da Câmara com toda a certeza”, assegura Mãe Nara. Por sua vez, Daiana Santos (PCdoB) com 3.715 votos obteve uma das cadeiras ao ser a segunda mais votada de seu partido e além de reforçar o bloco antiracista trará sua experiência como sanitarista, educadora social e promotora em Saúde da População Negra.

“Nós começamos todo esse processo dizendo eleja uma mulher negra. Agradeço a todas as mulheres negras e não negras que se somaram compreendendo que a luta antiracista pra muito além do que se diz é o que se faz”, pontua Daiana.

Superando a abstenção recorde do eleitorado local e as estruturas racistas, o protagonismo e organização do povo negro em sua diversidade aliado ao engajamento dos setores antiracistas e a um financiamento de campanha menos desigual fizeram com que a história dessa eleição fosse completamente diferente das anteriores quando esses mesmo candidatos concorreram sem conseguir tornarem-se vereadores e vereadoras. O mais positivo resultado saído das urnas de Porto Alegre traz a certeza de uma nova estética política e a perspectiva de um novo tempo que chegará com toda força à Câmara Municipal a partir de 2021.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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