A nomeação do novo Ministro da Saúde, Nelson Teich, na última quinta-feira, 16, fez circular amplamente pelas redes sociais uma parte editada de um vídeo gravado por ele cerca de um ano atrás em que afirmava ser necessário escolher entre um jovem e um velho qual deles vai ser deixado morrer diante da inexistência de recursos financeiros para salvar os dois.
No dia seguinte em nota à imprensa a assessoria do ministro disse que o vídeo seria uma manipulação e que a afirmação foi retirada do seu contexto, prática diga-se de passagem, comum na mídia brasileira.
Diante disso, Assisti o vídeo integral, com menos de 8 minutos, que está disponível no Youtube (link acima), a fim de verificar se realmente foi manipulado.
Reprodução: Twitter
Vídeo do novo ministro da saúde vei atona na ultima quinta feira (16)
Na peça, o médico oncologista Nelson Teich, resume sua participação numa mesa da qual havia participado há instantes em um fórum de debates promovido por empresas da área médica.
Ele esclarece que está falando do sistema público de saúde brasileiro, o qual seria sempre sustentável, pois nunca vai acabar, mas que entrega o que consegue entregar. A base de tudo, continua, é o quanto se tem para gastar e como se gasta, ou seja: a eficiência! Seguindo o raciocínio, ele identifica os problemas do sistema público de saúde no Brasil: poucos recursos financeiros, má gestão e corrupção. Até aqui nada novo.
Façamos uma pequena pausa para analisar melhor o conteúdo do que foi dito até aqui.
Podemos dizer que a má gestão é fruto da corrupção crônica e secular no Estado brasileiro, mas o contrário também pode ser dito. Quando comecei a pensar sobre o mundo ao redor, lá por 1970, em plena ditadura militar e mesmo com censura oficial aos meios de comunicação, até adolescentes como eu era na época sabiam pelas ruas da corrupção nas compras públicas, nas empreiteiras, nas obras faraônicas superfaturadas como a Rodovia Transamazônica que nunca ficou pronta, a Ponte Rio-Niterói, que custou quase quatro vezes o previsto, etc. Poderia ir adiante, mas este não é o objeto agora.
O novo Ministro afirma que é difícil fazer uma boa gestão com poucos recursos, o que parece óbvio, e o resultado é que trocam os governos, mas continuam fazendo mais do mesmo o que não resolve o problema. Ele sustenta que uma questão polêmica hoje é “o valor” pois antigamente se pagava por performance, o que não deu certo, então hoje se paga por valor. Note-se que o valor a que se refere aqui não é valor moral, é valor financeiro. O exemplo meio confuso usado é que os fornecedores de medicamentos e equipamentos usam a referência do “valor”para cobrar mais enquanto o pagador usa para tentar pagar menos, e o beneficiário fica na expectativa de um bom atendimento.
Finalmente o expert chega ao clímax de sua reflexão: o que fazer para tornar o sistema de saúde brasileiro eficiente? A primeira coisa apontada é saber exatamente a necessidade da população e a segunda quanto dinheiro se tem para atendê-la. Para isso, novamente, segundo o ministro, precisamos outras duas coisas. A primeira é prover o sistema de equipamentos, conhecimento científico e pessoal qualificado e a segunda, como o dinheiro é limitado, é fazer escolhas. Note-se que ele está falando de gestão permanente do sistema de saúde pública, não de gestão de crises pontuais como uma catástrofe imprevisível de proporções nacionais. Nesse ponto chegamos à parte recortada divulgada pelas redes, em que ele mostra exatamente quais escolhas são essas que o gestor terá em suas mãos e cita o exemplo de que, diante da escassez de recursos, é preferível salvar um adolescente que tem a vida pela frente do que um idoso no fim da vida. Na verdade ele, fala em “investir”, no jovem e não no velho e, ao fazê-lo, assume que o valor a ser considerado não é mesmo o valor moral. Considerar valor moral seria questionarmos quanto vale uma vida ou se é possível medir em dinheiro o valor de uma vida?
O valor a que se refere o ministro não é dessa natureza. Ele se refere ao valor econômico daí a expressão “investimento”. Como estamos falando de sistema público, estamos falando do “investimento” a ser feito pelo Estado na preservação da saúde dos seus cidadãos.
Essa é a essência do que pensa o ministro da saúde recém-nomeado, sobre o sistema de saúde pública brasileiro. É importante registrar que, embora o ponto de partida de sua análise seja o tratamento do câncer, ele deixa claro, durante toda sua falação, que está se referindo ao sistema como um todo. Na dúvida assista o vídeo.
Agora examinemos as ideias do ministro, dentro do contexto em que foram apresentadas, e verifiquemos se concordamos ou não tanto com o diagnóstico quanto com a solução proposta.
Primeiramente o diagnóstico que ele faz logo no início é de que os problemas do sistema público de saúde são: 1-recursos escassos; 2- má gestão; 3- corrupção. Ele não explica por que razão, mas a solução proposta envolve apenas os dois primeiros problemas, deixando de fora a corrupção. Lembram que um dos pontos polêmicos levantados foi a questão dos valores financeiros dos quais na hora de repartir todos querem seu quinhão? Todos no caso são os fornecedores de medicamentos e equipamentos e os prestadores de serviço de um lado e de outro o comprador. Lembram? Quem personifica esses entes abstratos? Simples: os empresários do ramo da saúde ou seja, fabricantes de medicamentos, equipamentos e insumos e os laboratórios prestadores de serviços de um lado, e de outro, as autoridades públicas, ministros, secretários, superintendentes, diretores, enfim os responsáveis pelas licitações, aditivos de contratos e pelo recebimento de produtos e serviços, em especial.
É justamente aí que se encontra o ambiente da corrupção na área da saúde. As autoridades públicas que tomam decisões, podem até raramente ser algum funcionário de carreira, mas são todas de nomeação política. A decisão de qual medicamento comprar e o eventual direcionamento criminoso da licitação para uma determinada marca que pode ser feito pela inclusão de um mínimo detalhe que, mesmo irrelevante só esteja contido na bula do medicamento da marca previamente escolhida, é uma decisão política. O habitual aditivo de contrato de prestação continuada durante sua vigência, pelas mais variadas justificativas como uma imprevista “alteração de condição econômica” (que pode ser qualquer coisa) é uma decisão política. O atestado de recebimento de um produto que não condiz com a licitação é uma decisão política. Não estamos falando aqui da compra de um pacote de gaze na farmácia da esquina. Estamos falando de compras de bilhões de reais para todo o sistema público de saúde brasileiro.
Como funciona a corrupção? Para os que a tem como referência, até a Operação Lavajato demonstrou. O empresário privado, maravilhoso, competente, empreendedor, eficiente e honesto paga propina à autoridade pública, para em troca, ter sua empresa favorecida na licitação, burlando assim o tido como sagrado princípio da livre concorrência. Depois, o mesmo empresário paga mais propina por um aditivo de contrato, ou simplesmente para que seja aceito um medicamento cujo prazo de validade vai vencer em dois meses ou um equipamento defasado e fora de linha.
Isso é corrupção. Ela só existe porque um bandido desarmado, vestido de paletó e gravata, paga propina a uma autoridade pública para lucrar mais do que deveria, desviando dinheiro do orçamento público. Na área da saúde o desvio é ainda mais criminoso pois fazem parte da moeda de troca a saúde e a vida das pessoas que ficam em risco enquanto os recursos são desviados para os grandes bandidos, todos eles empresários privados. A autoridade que recebe propina é o peixe pequeno nesse negócio. Ele fica com 10% do roubo ou pouco mais a depender da negociação. O empresário fica sempre com a parte do leão.
A corrupção, que o ministro tem plena consciência da existência como afirma no vídeo, é uma das causas da escassez de recursos e decorrência direta da má gestão. Impossível, pois, resolver os dois primeiros problemas apontados pelo gestor, sem atacar o terceiro.
Quando Teich fala na dramática escolha de quem vai morrer entre o jovem e o velho, que no campo de batalha sangrento de uma guerra convencional, até se justificaria, ele está omitindo que antes disso houve outra escolha menos dramática do ponto de vista humano que poderia evitar a chegada naquele ponto. Houve antes a escolha política de não combater a corrupção o que poderia resguardar os recursos salvando jovens e velhos. Antes ainda, houve a escolha política de não garantir recursos adequados para a saúde pública.
No Brasil, tais recursos sofreram violenta redução durante o governo Temer com a aprovação do pacote de congelamento de gastos públicos por 20 anos, incluindo a proibição de novas nomeações de servidores como médicos, enfermeiros, atendentes, professores e pesquisadores que hoje estão fazendo falta nos hospitais e universidades públicas, as únicas instituições capazes de atender em massa a população que mais precisa. Não tivemos notícia ainda de nenhum hospital empresarial privado oferecendo vagas gratuitas para pessoas carentes, ou alguma instituição de ensino superior privada realizando pesquisas sobre o vírus, embora se beneficiem de isenções fiscais e outras benesses com dinheiro público o tempo todo.
Os partidos que apoiam o atual governo e até alguns como o PSDB que hoje se diz oposição, votaram a favor do pacote de Temer, defendido ardentemente pelo ministro da Economia Paulo Guedes e pelo Presidente da República. Nada pois de culpar o governo anterior pelos problemas de hoje.
O vídeo em que o ministro expõe seu diagnóstico do sistema público de saúde e propõe solução foi gravado por ele há exatamente um ano. Não havia pandemia de coronavírus ainda, mas os problemas do sistema público de saúde já eram os mesmos, hoje agravados pelos cortes orçamentários e pela política de redução de pessoal, mantidos e defendidos pelo atual governo.
O Presidente da República acredita que o Brasil é o único país do mundo em que o coronavírus vai ser inofensivo sem medidas de contenção e quarentena e com um sistema de saúde que vem sendo sucateado há anos. Ele acabou de trocar o Ministro da Saúde pois o anterior não compartilhava de sua crença. O enfrentamento da crise epidemiológica requer necessariamente pesada e imediata injeção de recursos no sistema público ou ele vai colapsar. O governo diz que não está disposto a fazer isso em nome de salvar a “Economia”. O novo Ministro da Saúde tem sua opinião sobre o que fazer diante da escassez de recursos que vai continuar e que é aceita por ele, do contrário não teria aceitado o cargo. Ele já mostrou qual é o seu critério para as escolhas que vai forçosamente fazer.
Então, se nada for feito para mudar estas escolhas e crenças, resta ao povo aproveitar a quarentena para se despedir de pais, avós, tios, irmãos e amigos mais velhos, pois eles já estão com as primeiras fichas na lista da morte.
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