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Toggle“Isso é o que os golpistas queriam? Tiveram o que mereciam”, conversavam alegres e orgulhosas duas senhoras bolivianas com seus aguayos (panos de trabalho), no minibus, na manhã desta terça-feira (20), aniversário de La Paz. Não cabendo em si de felicidade, comemoravam a vitória de Luis Arce Catacora e David Choquehuanca, à presidência e vice pelo Movimento Ao Socialismo – Instrumento Político pela Soberania dos Povos (MAS-IPSP) com mais de 54%.
Diante da contundente e irrefutável manifestação popular, a autoproclamada presidente Jeanine Áñez jogou a toalha e reconheceu o triunfo do binômio masista. Com o apoio das Forças Armadas e da Polícia, Áñez tomou o poder de assalto em novembro de 2019, promovendo os massacres de Sacaba e Senkata, entre outros abusos e violações de direitos. Fruto do descalabro do atual governo, nesta quarta-feira (21), os trabalhadores da administração e serviços aeroviários entraram em greve após três meses sem salário, deixando-nos sem voo de volta para casa. Outras categorias estão em situação similar ou até pior, como a dos Laboratórios Vita, na cidade de El Alto, que se encontram há cinco meses sem receber.
Até o presente momento, o MAS conquistou o governo de seis dos nove departamentos (estados), 21 dos 36 senadores e 73 dos 130 deputados (70 que são territoriais, 53 plurinacionais – vinculados à lista do presidente – e sete indígenas, escolhidos por suas próprias normas e procedimentos). Em Cochabamba, por exemplo, já elegeu três dos quatro senadores, num reconhecimento do heroico trabalho desenvolvido por dirigentes e militantes do partido e dos movimentos sociais contra a campanha da extrema-direita e de sua mídia, que vinculava os cocaleiros ao narcotráfico. Na tentativa de intimidar, inclusive militarizaram a região, distribuíram armas, munições e instruções, recebendo polpudas verbas do Departamento de Estado americano.
A resposta popular não se fez intimidar: Leonardo Loza e Andrónico Rodriguez, lideranças cocaleiras do trópico cochabambino, e Patricia Arce – prefeita de Vinto que havia sido torturada em outubro de 2019 pelas milícias -, foram eleitos para o Senado e há ainda uma quarta vaga em disputa.
Leonardo Wexell Severo
Comício
Perseguição e agressão
Recordando “aqueles momentos tristes de perseguição e agressão”, a senadora recém-eleita comemorou: “tua luta é minha luta, é nossa luta. Apesar da tempestade virão dias melhores. Vamos seguir em frente”.
“Após quatro datas propostas, de mortos, feridos e encarcerados, da dignidade golpeada pelo racismo oficial e a discriminação reinante; dos medos inscritos no coração pelo terror estatal e a enfermidade invisível, a realidade nos disse que o mundo que tínhamos nunca mais será o mesmo”, declarou o sociólogo Juan Carlos Pinto Quintanilla. Ex-coordenador da Representação Presidencial para a Assembleia Constituinte da Bolívia e ex-diretor geral de Fortalecimento Cidadão da Vice-presidência do Estado Plurinacional, Quintanilla ressaltou que, “após séculos, muito do que nos dava a tranquilidade do encontro intercultural na realidade segue sendo uma ilusão, pois os poucos que acreditam ostentar o direito racial de mandar nunca deixaram de pensar assim. Somente a força mobilizada da maioria os pôde conter”.
Para Dolores Arce, chefe das Rádios dos Povos Originários (RPOS) do Ministério da Comunicação do governo de Evo Morales, “este triunfo representa a vitória sobre as sombras de um ano de sofrimento, humilhações, morte, luto e fome”. “Recuperamos a democracia e também a dignidade, a soberania, a esperança e a alegria”, frisou.
Ex-diretora executiva do Centro de Educação e Produção Radiofônica da Bolívia (Cepra), Dolores ressaltou que o triunfo masista se deu apesar da intensa campanha dos grandes meios de comunicação e das redes sociais, “que fizeram uma guerra suja prolongada, manipulando ao extremo e promovendo a polarização e o ódio, satanizando a opção popular pelo MAS”.
Conforme Dolores, houve uma tentativa desesperada de afetar o crescente respaldo por Lucho – como é chamado Luis Arce popularmente – e David, com a estratégia de uma “exclusão irregular premeditada e localizada” dos seus bolsões de voto, como as áreas rurais e no exterior.
Voto contra o retrocesso
“Apesar dos candidatos de JUNTOS, Libre21 e ADN terem abandonado a disputa para facilitar a unificação da direita, não conseguiram enganar o povo. Foi um voto contra o retrocesso, contra o retorno do neoliberalismo e a submissão aos EUA e aos organismos internacionais”, assinalou Dolores. “Foi mais forte a memória e o povo expressou isso com sabedoria nas urnas, alcançando uma participação de 88%, apesar da pandemia”.
Houve também uma manipulação do voto dos “indecisos” nas pesquisas eleitorais, diante da repressão e da estigmatização do apoio ao MAS.
O cientista social Porfirio Cochi relatou que “houve um forte controle social, com as redes cheias de fotos de atas para evitar uma falsa, mentirosa e criminosa interpretação como a realizada no ano passado pela Organização dos Estados Americanos (OEA)”. “Diferente daquela farsa”, destacou Porfirio, “neste ano houve um acompanhamento solidário de várias organizações locais, como de moradores, estudantes, trabalhadores e de mulheres, além de observadores internacionais”.
Duplo desafio
“Por isso, o desafio de Lucho e David é o dobro do de 2005 quando Evo Morales assumiu o poder”, sublinhou Porfírio, pois este novo ciclo deve estar acompanhado de um profundo e intenso diálogo, como o que antecedeu a Assembleia Constituinte em 2007. “O debate político deve ser rico e autocrítico para que seja inovador, contribuído para a construção de novas propostas, a nível dos governos, mas, sobretudo, das organizações sociais. O trabalho político e ideológico deve ser fortalecido, ampliado e enraizado”, esclareceu.
No começo da semana, ações desesperadas de milícias, sobretudo em Cochabamba e Santa Cruz, demonstravam a existência de grupos minoritários. Isolados, suas provocações não deram em nada. Sabidamente, são grupos fascistas que tentam desconhecer o voto majoritário do eleitorado – uma vez que o MAS abriu mais de 25% de vantagem sobre o segundo colocado, Carlos Mesa, do Comunidade Cidadã, que não chegou aos 30%. O terceiro, o ultradireitista Camacho, chegou apenas a 14%.
“Lamentamos os fatos de violência que uns poucos estão querendo gerar. Esperamos que não ocorram e que a força pública cumpra com seu trabalho, estamos tranquilos”, declarou Lucho. Segundo o presidente eleito, “o povo boliviano fez conhecer sua voz e recuperou a democracia, que era um tema pendente nestes 11 meses”.
Lucho e David reiteraram que “o caminho da reconstrução da Pátria passa pela retomada das empresas estatais estratégicas, como base para garantir a industrialização, a reconstrução da economia e do Estado Plurinacional”. “A recondução do modelo econômico-social-comunitário e produtivo”, apontou Lucho, é “a chave para a nova Bolívia que vamos construir juntos”.
Leonardo Wexell Severo é colaborador da Diálogos do Sul
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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