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ToggleCriado em 1990 por uma jovem do Canadá conhecida como Alana, o termo “incel” é uma abreviação para “involuntary celibate” (“celibatário involuntário”, em tradução literal). O objetivo inicial da canadense com seu Projeto de Celibato Involuntário era criar um espaço de apoio para pessoas solitárias que enfrentavam dificuldades em estabelecer relacionamentos.
Nas décadas seguintes, no entanto, a terminologia foi apropriada por homens heterossexuais que culpam mulheres e a sociedade pela própria falta de sucesso romântico, adotando discursos misóginos e violentos. Não por acaso, hoje, ser um incel é pertencer a uma subcultura online marcada pelas seguintes ideias:
- Hierarquia baseada em aparência: a genética determinaria o valor social;
- Hipergamia feminina: mulheres privilegiariam homens “superiores” e desprezariam os “inferiores”;
- Misoginia radical: mulheres seriam manipuladoras e interesseiras;
- Apologia à violência: ataques como os de Elliot Rodger (2014) e Alek Minassian (2018) são celebrados como “rebeliões”.
Longe de existir isoladamente, a subcultura incel integra o que pode ser chamado de “machosfera“, uma espécie de ecossistema em rede formado por comunidades online que disseminam visões hiper masculinas e antifeministas. Esses grupos compartilham espaços com movimentos de extrema-direita, incluindo supremacistas brancos e adeptos de figuras como Olavo de Carvalho, e se amparam ainda em narrativas como:
- Opressão masculina: os direitos das mulheres ameaçariam a “ordem natural”;
- Nacionalismo e racismo: em fóruns, discute-se a “superioridade genética” de homens brancos;
- Antifeminismo: o feminismo é visto como uma conspiração para marginalizar homens.
Plataformas como 4chan, Reddit e Telegram funcionam como catalisadoras desse processo de radicalização, que desenvolveu até mesmo arquétipos e um vocabulário que servem para reforçar sua visão de mundo. São exemplos:
- Chad: homem atraente e sexualmente ativo, invejado pelos incels e visto como “inimigo” pelos redpills.
- Stacy: mulher considerada superficial e promíscua, alvo comum de ódio.
- Beta male: homem submissivo, ridicularizado por não aderir à hierarquia masculina defendida por ambos os grupos.
- Regra 80/20: teoria da conspiração, também usada para justificar a frustração romântica, segundo a qual 80% das mulheres desejam apenas 20% dos homens (os ricos, bonitos e populares).
Escola, vulnerabilidade e exposição à subcultura incel na série “Adolescência”
O bullying escolar direcionado a traços considerados “não masculinos” (timidez, interesses alternativos ou inadequação a padrões estéticos) pode funcionar como um catalisador para a adesão a comunidades incels na internet.
Esses espaços online convertem a dor da rejeição em um discurso de ódio sistêmico: as mulheres são transformadas em vilãs abstratas, responsabilizadas coletivamente pela exclusão afetiva e sexual dos membros.
É o que mostra a série “Adolescência”, lançada em 2025 pela Netflix, na qual o protagonista, Jamie, é exposto a conteúdos misóginos online após sofrer bullying e isolamento social.
A produção, assim, retrata de maneira assertiva como jovens vulneráveis emocionalmente podem buscar validação em fóruns tóxicos, acabam cooptados pela ideologia incel e absorvem discursos que justificam a violência como “vingança”.
Outro ponto fundamental da trama é a crítica à falta de supervisão parental e escolar, fatores que permitem a exposição de crianças e adolescentes a símbolos de masculinidade tóxica como Andrew Tate, influenciador misógino e réu por estupro.
Assim, compreender o fenômeno incel requer abordar o machismo escolar, o apoio psicológico às vítimas de bullying e as políticas públicas de combate ao discurso de ódio online.
Entre estigmas e reacionarismos: a diferença do incel para nerd, CDF e nerdola
Há uma série de termos e grupos associados à subcultura incel, mas nem todos possuem pontos ideológicos em comum. É o caso dos “nerds” e “CDFs”, perfis ligados a interesses intelectuais ou culturais (como tecnologia, ciência ou quadrinhos).
Porém, quando o assunto são os “nerdolas”, tem-se uma conotação mais complexa: além da excentricidade social, parte dessa comunidade manifesta resistência ideológica a mudanças na cultura pop que incluam, por exemplo, protagonistas mulheres, personagens negros ou discussões sobre identidade de gênero.
Não por acaso, o nerdola é frequentemente associado a setores da extrema-direita que instrumentalizam uma espécie de “purismo geek” para criticar o que chamam de “lacração” ou “agenda woke” e exigir que adaptações cinematográficas de histórias em quadrinhos, por exemplo, sigam exatamente as características dos gibs. Ainda que nem todo nerdola seja misógino ou reacionário, essa vertente usa a defesa de uma “cultura tradicional” para camuflar discursos antifeministas e anti-inclusão — uma ponte sutil, porém relevante, com a machosfera.
SUPERGIRL FEIA? 👩🏼 Sou fã do Linhagem Geek e acompanho o canal diariamente, mas chamar essa Supergirl de feia já é uma forçação ABSURDA.
E continuam chamando de feia… O primeiro vídeo é recente, já o segundo é um pouco mais antigo. pic.twitter.com/PlquFZqHGK
— Geek Sem Medo (@geeksemmedo) December 18, 2024
Redpill, incel e a violência como solução
Também parte da machosesfera e próxima à subcultura incel, há filosofia “redpill” (pípula vermelha, em tradução literal), que propõe um “despertar” para uma suposta guerra de gênero onde homens seriam vítimas de um sistema “feminizado”.
O nome dessa “doutrina” deturpa um conceito da trilogia “Matrix”, na qual o protagonista Neo compreende viver em uma realidade manipulada, a Matrix, após ingerir uma pílula vermelha.
eu tenho que a culpada de tornar o Calvo do Campari um repelente de mulheres foi a aquela loira bonita que não quis beijar ele no reality da Netflix pic.twitter.com/T5aDbDS79H
— karol ✨ (@akarolk_) March 6, 2025
A promessa dos redpills é reconquistar poder por meio de técnicas de manipulação, como “game” emocional ou reforço de estereótipos de gênero. Vende-se ainda uma agenda tóxica segundo a qual “se você falha com mulheres, é porque não seguiu as regras”. Nesse sentido, a redpill opera como portal ideológico, atraindo homens frustrados com promessas de controle.
Os incels, por sua vez, vão além, representando o estágio terminal da desesperança. Em certa medida, eles absorvem a lógica redpill, mas quando as “táticas” falham, mergulham na “blackpill”: um fatalismo niilista baseado na crença de que a hierarquia sexual é imutável — “nada adianta, você está condenado pela genética”.

Aqui, a solidão não é mais um problema individual, mas um sistema a ser combatido com retribuição coletiva, e a violência se torna uma “resposta à opressão feminina”. Justamente por isso, os incels estão radicalmente distantes de subculturas como a nerd, onde a identidade se constrói sobre paixões (como games ou ciência), não sobre ódio. Dissociar esses grupos reforça que o problema não é a solidão, mas sim o discurso misógino que precisa ser confrontado na origem.
Machosfera: o ecossistema de radicalização complementar
Redpills, incels e setores reacionários da comunidade nerdola coexistem na rede de influência da machosfera, que em suma funciona da seguinte forma:
- A redpill recruta com discursos de “autoajuda masculina”, normalizando a desconfiança contra mulheres;
- Os incels amplificam o pânico moral da redpill, transformando frustrações em apologia à violência;
- O nerdola reacionário atua na retaguarda cultural, atacando representações progressistas em filmes, games e HQs, o que retroalimenta a narrativa da “degeneração feminista” propagada pela machosfera.
A diferença crucial é que, enquanto incels e redpills têm a misoginia como motor explícito, o nerdola muitas vezes mascara seu conservadorismo sob o discurso de “preservação artística”, ainda que ambos os grupos compartilhem aversão a pautas identitárias.
Edição: Guilherme Ribeiro