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Jovens vulneráveis emocionalmente cabam cooptados pela ideologia incel e absorvem discursos que justificam a violência como "vingança" (Arte: gerada por IA)

Incel: como “grupo de ajuda” online se tornou subcultura misógina e violenta

Adotada por homens heterossexuais que culpam mulheres pelo próprio fracasso afetivo, a ideologia incel está intimamente ligada à extrema-direita e a outros grupos como nerdolas e redpills

George Ricardo Guariento
Diálogos do Sul Global
Taboão da Serra

Tradução:

Criado em 1990 por uma jovem do Canadá conhecida como Alana, o termo “incel” é uma abreviação para “involuntary celibate” (“celibatário involuntário”, em tradução literal). O objetivo inicial da canadense com seu Projeto de Celibato Involuntário era criar um espaço de apoio para pessoas solitárias que enfrentavam dificuldades em estabelecer relacionamentos.

Nas décadas seguintes, no entanto, a terminologia foi apropriada por homens heterossexuais que culpam mulheres e a sociedade pela própria falta de sucesso romântico, adotando discursos misóginos e violentos. Não por acaso, hoje, ser um incel é pertencer a uma subcultura online marcada pelas seguintes ideias:

  • Hierarquia baseada em aparência: a genética determinaria o valor social;
  • Hipergamia feminina: mulheres privilegiariam homens “superiores” e desprezariam os “inferiores”;
  • Misoginia radical: mulheres seriam manipuladoras e interesseiras; 
  • Apologia à violência: ataques como os de Elliot Rodger (2014) e Alek Minassian (2018) são celebrados como “rebeliões”.

Longe de existir isoladamente, a subcultura incel integra o que pode ser chamado de “machosfera“, uma espécie de ecossistema em rede formado por comunidades online que disseminam visões hiper masculinas e antifeministas. Esses grupos compartilham espaços com movimentos de extrema-direita, incluindo supremacistas brancos e adeptos de figuras como Olavo de Carvalho, e se amparam ainda em narrativas como:

  • Opressão masculina: os direitos das mulheres ameaçariam a “ordem natural”; 
  • Nacionalismo e racismo: em fóruns, discute-se a “superioridade genética” de homens brancos;
  • Antifeminismo: o feminismo é visto como uma conspiração para marginalizar homens.

Plataformas como 4chan, Reddit e Telegram funcionam como catalisadoras desse processo de radicalização, que desenvolveu até mesmo arquétipos e um vocabulário que servem para reforçar sua visão de mundo. São exemplos:

  • Chad: homem atraente e sexualmente ativo, invejado pelos incels e visto como “inimigo” pelos redpills.
  • Stacy: mulher considerada superficial e promíscua, alvo comum de ódio.
  • Beta male: homem submissivo, ridicularizado por não aderir à hierarquia masculina defendida por ambos os grupos.
  • Regra 80/20: teoria da conspiração, também usada para justificar a frustração romântica, segundo a qual 80% das mulheres desejam apenas 20% dos homens (os ricos, bonitos e populares).

Escola, vulnerabilidade e exposição à subcultura incel na série “Adolescência”

O bullying escolar direcionado a traços considerados “não masculinos” (timidez, interesses alternativos ou inadequação a padrões estéticos) pode funcionar como um catalisador para a adesão a comunidades incels na internet. 

Esses espaços online convertem a dor da rejeição em um discurso de ódio sistêmico: as mulheres são transformadas em vilãs abstratas, responsabilizadas coletivamente pela exclusão afetiva e sexual dos membros.

É o que mostra a série “Adolescência”, lançada em 2025 pela Netflix, na qual o protagonista, Jamie, é exposto a conteúdos misóginos online após sofrer bullying e isolamento social.

A produção, assim, retrata de maneira assertiva como jovens vulneráveis emocionalmente podem buscar validação em fóruns tóxicos, acabam cooptados pela ideologia incel e absorvem discursos que justificam a violência como “vingança”. 

Outro ponto fundamental da trama é a crítica à falta de supervisão parental e escolar, fatores que permitem a exposição de crianças e adolescentes a símbolos de masculinidade tóxica como Andrew Tate, influenciador misógino e réu por estupro.

Assim, compreender o fenômeno incel requer abordar o machismo escolar, o apoio psicológico às vítimas de bullying e as políticas públicas de combate ao discurso de ódio online.

Entre estigmas e reacionarismos: a diferença do incel para nerd, CDF e nerdola

Há uma série de termos e grupos associados à subcultura incel, mas nem todos possuem pontos ideológicos em comum. É o caso dos “nerds” e “CDFs”, perfis ligados a interesses intelectuais ou culturais (como tecnologia, ciência ou quadrinhos).

Porém, quando o assunto são os “nerdolas”, tem-se uma conotação mais complexa: além da excentricidade social, parte dessa comunidade manifesta resistência ideológica a mudanças na cultura pop que incluam, por exemplo, protagonistas mulheres, personagens negros ou discussões sobre identidade de gênero. 

Não por acaso, o nerdola é frequentemente associado a setores da extrema-direita que instrumentalizam uma espécie de “purismo geek” para criticar o que chamam de “lacração” ou “agenda woke” e exigir que adaptações cinematográficas de histórias em quadrinhos, por exemplo, sigam exatamente as características dos gibs. Ainda que nem todo nerdola seja misógino ou reacionário, essa vertente usa a defesa de uma “cultura tradicional” para camuflar discursos antifeministas e anti-inclusão — uma ponte sutil, porém relevante, com a machosfera.

Redpill, incel e a violência como solução

Também parte da machosesfera e próxima à subcultura incel, há filosofia “redpill” (pípula vermelha, em tradução literal), que propõe um “despertar” para uma suposta guerra de gênero onde homens seriam vítimas de um sistema “feminizado”.

O nome dessa “doutrina” deturpa um conceito da trilogia “Matrix”, na qual o protagonista Neo compreende viver em uma realidade manipulada, a Matrix, após ingerir uma pílula vermelha.

A promessa dos redpills é reconquistar poder por meio de técnicas de manipulação, como “game” emocional ou reforço de estereótipos de gênero. Vende-se ainda uma agenda tóxica segundo a qual “se você falha com mulheres, é porque não seguiu as regras”. Nesse sentido, a redpill opera como portal ideológico, atraindo homens frustrados com promessas de controle.

Os incels, por sua vez, vão além, representando o estágio terminal da desesperança. Em certa medida, eles absorvem a lógica redpill, mas quando as “táticas” falham, mergulham na “blackpill”: um fatalismo niilista baseado na crença de que a hierarquia sexual é imutável — “nada adianta, você está condenado pela genética”.

Enquanto incels e redpills têm a misoginia como motor explícito, o nerdola muitas vezes mascara seu conservadorismo sob o discurso de “preservação artística” (Arte: gerada por IA)

Aqui, a solidão não é mais um problema individual, mas um sistema a ser combatido com retribuição coletiva, e a violência se torna uma “resposta à opressão feminina”. Justamente por isso, os incels estão radicalmente distantes de subculturas como a nerd, onde a identidade se constrói sobre paixões (como games ou ciência), não sobre ódio. Dissociar esses grupos reforça que o problema não é a solidão, mas sim o discurso misógino que precisa ser confrontado na origem.

Machosfera: o ecossistema de radicalização complementar

Redpills, incels e setores reacionários da comunidade nerdola coexistem na rede de influência da machosfera, que em suma funciona da seguinte forma:

  • A redpill recruta com discursos de “autoajuda masculina”, normalizando a desconfiança contra mulheres;
  • Os incels amplificam o pânico moral da redpill, transformando frustrações em apologia à violência;
  • O nerdola reacionário atua na retaguarda cultural, atacando representações progressistas em filmes, games e HQs, o que retroalimenta a narrativa da “degeneração feminista” propagada pela machosfera.

A diferença crucial é que, enquanto incels e redpills têm a misoginia como motor explícito, o nerdola muitas vezes mascara seu conservadorismo sob o discurso de “preservação artística”, ainda que ambos os grupos compartilhem aversão a pautas identitárias.

Edição: Guilherme Ribeiro


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

George Ricardo Guariento Graduado em jornalismo com especialização em locução radiofônica e experiência na gestão de redes sociais para a revista Diálogos do Sul Global. Apresentador do Podcast Conexão Geek, apaixonado por contar histórias e conectar com o público através do mundo da cultura pop e tecnologia.

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