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ToggleRecentemente acompanhamos a invasão das forças de segurança pública do Estado de São Paulo na favela do moinho, a última do centro da capital paulista. Apesar de não participar das ações de remoção de moradores, a Polícia Militar aumentou sua atuação no local desde que o governo do estado decidiu avançar com o processo de reassentamento das famílias moradoras da região, tendo em vista o projeto de mudança da sede administrativa do governo estadual para a região central.
Moradores ouvidos afirmam que uma base da Polícia Militar foi instalada na rua que dá acesso à favela desde o dia 15 de abril, data em que a população do local fez um protesto contra o projeto de desocupação do terreno. A manifestação daquele dia terminou com o grupo sendo dispersado por policiais, que usaram bombas de efeito moral contra os moradores. Na mesma data, policiais das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) fizeram uma grande operação na região.
No dia 18 do mesmo mês, feriado de Sexta-feira Santa, novamente a polícia invadiu o terreno, dessa vez com a utilização de bombas e spray de pimenta. Moradores relataram que foram pegos de surpresa com a operação que cercou a comunidade. De acordo com a versão contada, a operação policial foi motivada como parte de uma reintegração de posse.
Em todos os relatos de moradores, bem como nos vídeos divulgados nas redes sociais desde o início da série de operações em abril, chama a atenção, como de costume, a violência por parte dos agentes da segurança pública. Nenhuma novidade.
Violência de Estado: um padrão internacional
Em fevereiro deste ano, um artigo do jornal britânico The Sun caracterizava a Polícia Militar paulistana como a “mais perigosa do mundo” devido às altas taxas de mortalidade e brutalidade relacionadas às suas operações. Além disso, o artigo também dava nome aos bois ao enfatizar a correlação entre o aumento exponencial do número de assassinatos e o início da gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e seu ministro da segurança pública, Guilherme Derrite.
Vale apontar, porém, que mesmo representando um caso emblemático da violência de Estado, e antes mesmo de ser uma infeliz exceção à regra, a conduta da PM em São Paulo não se distancia, em essência, da atuação de outras forças policiais no Brasil e no mundo.
Seja em governos declaradamente conservadores e autoritários, como o do então governador Tarcísio de Freitas, seja em administrações ditas progressistas, como a de Jerônimo Rodrigues (PT), na Bahia, esse padrão de truculência relembra cotidianamente os efeitos da neoliberalização. Em um momento onde o aparato público se retira da economia e desmantela as políticas de seguridade social, o endurecimento de medidas de segurança se torna meio para a reafirmação da autoridade estatal.
Israel: “exemplo” a ser seguido
Esse panorama é sustentado pela noção de que o encarceramento em massa e a morte são as únicas soluções possíveis, uma ideologia cada vez mais aceita e empregada no âmbito da segurança pública e cujo marketing tem Israel como figura central. Seja através da exportação de material bélico ou de seu treinamento militar, o Estado sionista posiciona-se como o mais importante influenciador dessa posição atualmente.
Nesse cenário, o Brasil se estabelece como o quinto maior importador de armamento e treinamento militar israelense, fortalecendo e expandindo a atuação de seus agentes de segurança, que atuam como perpetuadores da política genocida exportada pelas empresas israelenses. Através disso, a atuação da polícia nas periferias brasileiras, material e ideologicamente, são formuladas e disseminadas pela nação sionista.
Em âmbito federal, apesar de declarações contra a colonização e o apartheid promovido pelo sionismo contra a Palestina, o governo brasileiro segue mantendo seus acordos militares, comerciais e acadêmicos com Israel, representando não uma contrapartida ao governo estadual de Tarcísio, mas o mesmo projeto que dizima as periferias paulistanas.
No centro disso, colocando em prática e expandindo os ensinamentos de seu padrinho político, os Estados Unidos, Tal Aviv segue fazendo de Gaza o laboratório e o marketing de sua indústria militar, escancarando a gênese capitalista e colonialista da ocupação na Palestina.
A indústria bélica de Israel e o Laboratório Palestina
Em seu livro recém-lançado no Brasil, Laboratório Palestina, o jornalista Anthony Loewenstein documenta historicamente como se desenvolveu a indústria bélica de Israel e como essa construção foi calcada na utilização da Palestina enquanto laboratório prático para testes de novas armas e ferramentas de vigilância em massa.
Na obra, é trazido por Loewenstein que a história do militarismo sionista e a construção de um setor de defesa local começaram antes mesmo da fundação de Israel. Durante a Segunda Guerra Mundial, dezenas de milhares de judeus receberam treinamento militar dos britânicos, fator que se mostrou inestimável quando eles quiseram estabelecer sua própria nação.
Durante esse período, paralelamente, judeus recém-chegados da Alemanha e da Áustria ajudaram a industrializar as cidades da Palestina a partir, em grande medida, da indústria bélica. As armas fabricadas em linhas de produção locais compuseram parte fundamental do arsenal que os sionistas construíram ou roubaram para o conflito vindouro com o mandato britânico da Palestina.
A partir de meados da década de 1950, Israel, já tendo fundado seu Estado e viabilizado seu setor de defesa, começou a exportar suas mercadorias bélicas. Na década de 1950, houve o desenvolvimento de empresas estatais de defesa. Nos anos 1960, diversas entidades privadas prosperaram, incluindo a Elbit Systems, maior empresa privada israelense de defesa na atualidade.
Em 1952, o montante pago pela Alemanha Ocidental a Israel como reparação pelo Holocausto forneceu recursos que foram destinados, sobretudo, ao setor de defesa. Secretamente, Israel investiu grande parte do montante no desenvolvimento de armas, além de financiar a pesquisa para a obtenção de um artefato nuclear operacional. Uma ajuda gigantesca da França e dos Estados Unidos, combinada com as reparações alemãs, fizeram da defesa o principal setor exportador do país.
Nesse processo, um ponto nevrálgico da construção de um setor de defesa globalizado foi durante a Guerra Fria. Nesse período, Israel se estabelece como um dos principais países a apoiar e fornecer materiais para as ditaduras na América Latina e para o Estado sul-africano durante o apartheid.
Atuando nos locais onde os Estados Unidos não podiam estabelecer relações diretas, Israel infiltra-se como fornecedor de armamentos, mas sobretudo enquanto propagador de uma ideologia militar repressiva, que não só permitiu a continuidade desses regimes, como também estabeleceu a maneira como uma série de países, entre eles o Brasil, construíram suas políticas de segurança.
Em 1986, um artigo publicado no New York Times pelo jornalista Thomas Friedman, intitulado Como a economia israelense tornou-se dependente da exportação de armas, já sublinhava que Israel, com apenas quatro milhões de habitantes, tornou-se um dos dez maiores exportadores de armas do mundo, e os empresários israelenses, os principais comerciantes de armas globalmente. Friedman cita números que sugerem que, já naquela época, cerca de 140 mil pessoas – 10% da força de trabalho israelense – estavam envolvidas no comércio de armas.
O ponto nuclear do artigo é, contudo, a frase de David Ivry, então diretor-geral do Ministério de Defesa de Israel, declarando que a indústria israelense de armas e segurança poderia competir em um mercado global contra nações maiores porque a “tecnologia de ponta” foi testada em batalha pelo exército israelense.
Assim, a utilização da Palestina como laboratório tem sido uma política de Estado de Israel há tanto tempo quanto a própria ocupação sionista no território. Nesse contexto, o militarismo se tornou, e assim segue até hoje, o princípio orientador do país, fazendo com que o fim do apartheid e da ocupação na Palestina não seja apenas ruim para os negócios, mas uma lacuna irremediável na ideologia fundadora da nação.
Importação de treinamento e armamento
Como mencionado acima, os vínculos entre Brasil e Israel não são recentes, tendo raízes durante o período empresarial-militar brasileiro. Porém, essa relação se intensificou durante os megaeventos realizados no país desde a década de 2010, como os Jogos Pan-americanos em 2007, a Jornada Mundial da Juventude em 2013, a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas de 2016.
A aproximação, dessa forma, se aprofunda durante o segundo governo do presidente Lula (PT). Não por acaso, segundo analistas, essa intensificação durante o mandato petista acontece porque, ainda que o partido se coloque como alinhado à causa palestina, também buscou se aproximar dos israelenses a fim de atuar como “um mediador do Terceiro Mundo”, em contraposição ao quadrilátero formado por Estados Unidos, Organização das Nações Unidas (ONU), União Europeia (UE) e Rússia.
Durante o ano de 2007, primeiro do segundo mandato do então presidente Lula, foi firmado o acordo de livre comércio entre o Mercosul e Israel, acordo este que previa a diminuição das taxas de produtos justamente nas áreas de segurança militar, armas e tecnologia.
A partir daí, passa a haver entre os dois países uma progressiva troca comercial. Em 2013, o governo brasileiro destinou 1,13% do Produto Interno Bruto (PIB) do país para modernizar as forças armadas com equipamentos israelenses. Nesse contexto, destaca-se a empresa israelense International Security & Defense Systems (ISDS), que faz treinamentos para as polícias brasileiras em favelas. No site da companhia, já na página inicial, consta o slogan “fornecedora oficial dos jogos olímpicos Rio 2016”. Já no rodapé, a conexão com Israel é abertamente marcada: “A ISDS é uma empresa registrada e certificada pelo Ministro de Defesa de Israel e opera de acordo com suas regulações e diretrizes”.
Neste período, tanto o treinamento quanto a renovação bélica da Polícia Militar e do Exército brasileiro para os megaeventos esportivos entre 2014 e 2016 foram importados das Forças Armadas israelenses.
Posteriormente, em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, a primeira viagem presidencial realizada foi justamente para Israel, quando foram firmados vários instrumentos bilaterais de cooperação, nos campos da ciência e tecnologia, defesa, segurança pública, aviação civil, segurança cibernética e saúde, marcando não só a continuidade desse relacionamento, como sua proliferação para outras áreas.
No cenário estadual vemos o mesmo beabá. Em 2015, ano das grandes mobilizações no âmbito da educação com as ocupações de escolas secundaristas em São Paulo, sob a gestão do hoje vice-presidente Geraldo Alckmin, foram adquiridos seis blindados por R$ 30 milhões com a alegação de combater “atos violentos”.
Já sob a gestão de Tarcísio, em 2023, durante o aniversário de 53 anos da Rota, um dos destaques do evento comemorativo foi a apresentação de “novos armamentos” pelo batalhão. Entre as armas apresentadas destaca-se o uso de fuzis FN Scar calibre 7.62, da empresa belga FN Herstal, e as metralhadoras Leves Negev de calibre 7.62, da Israel Weapon Industries Ltda (IWI).
As armas foram adquiridas em 2020, ainda sob a gestão João Dória (PSDB). Na época, custaram R$ 526.332,90 e foram alvo de campanha do Movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) Brasil e de uma ação judicial contra o governo israelense, ambas na tentativa de barrar a compra, mas que terminaram sem sucesso.
No mesmo sentido, em maio deste ano, Derrite demonstrou aproximação a Israel ao participar de evento para discutir um acordo de cooperação para o treinamento de forças policiais e uso da tecnologia no combate ao crime.
É perceptível que a importação de armas é também e sobretudo a importação de uma ideologia. Tendo em vista, como já citado, que grande parte da lógica seguida pelas políticas de segurança pública no país foram iniciadas durante o período ditatorial no país, não só podemos falar de uma influência de Israel, mas também de uma relação direta. Os exemplos recentes mostram como essa lógica é especialmente empregada em períodos de grande mobilização política, como durante os protestos pré-Copa do Mundo e nas ocupações de escolas em São Paulo. O que importa destacar nesse processo é, portanto, a infiltração de uma ideologia na estrutura de segurança pública do Estado brasileiro que tem servido não para a segurança da população, mas justamente para a repressão de mobilizações sociais e a perseguição a grupos específicos.
A Palestina é no mundo todo
De volta à Favela do Moinho, vale destacar que toda essa digressão se centra no mesmo ponto: o que vivenciamos e observamos ocorrer na Palestina há 77 anos não acontece apenas ali. A esta altura do campeonato, quem lê esta matéria já leu pelo menos outras cinco falando sobre algo parecido. Mesmo que de maneira difusa, sabemos que o Brasil, seus governos estaduais e prefeituras precisam romper relações com Israel. Todavia, o ponto é justamente que, ainda que rompamos com Israel, Israel já está aqui.
São Paulo e a Favela do Moinho são apenas exemplos entre vários outros que ilustram a proliferação e a infiltração não só de uma indústria bélica, mas sobretudo de uma ideologia calcada no genocídio e no apartheid, possível de ser replicada para a remoção de cada e todos os grupos sociais indesejados em uma dada localidade. Vemos isso na atuação da PM na baixada santista durante as Operações Escudo e Verão, no desaparecimento da cracolândia, em São Paulo, na remoção dos moradores da Favela do Moinho e no avanço das políticas de encarceramento em massa em todo o Brasil.
Contudo, sabemos também que Israel não iniciou esse processo sozinho e nem deu cabo a essa tarefa de maneira solitária. Antes de existir o Estado isralense, ideologias como essa já eram implementadas e propagadas por potências mundiais. Israel, hoje em dia, se transformou apenas no Estado mais abertamente propagador dessa ideologia, militar e comercialmente.
Nesse contexto, é preciso romper com Israel a fim de que o principal influenciador de uma linha política mortífera seja responsabilizado e, mais do que isso, impedido. O rompimento de relações comerciais se torna peça-chave para a quebra do ciclo que dizima tanto a população palestina quanto a brasileira. Ainda, o rompimento de relações também fornece o exemplo. Se permitimos e seguimos patrocinando Israel, enviamos uma mensagem clara de que políticas como as empregadas pelo Estado sionista não são apenas permitidas, mas corroboradas. O rompimento, nesse sentido, é a única resposta possível dentro do contexto do escancaramento das limitações da justiça internacional. Em última análise, deixar de financiar a indústria israelense e comprar suas mercadorias é romper, justamente, com sua ideologia genocida.