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ToggleNos Estados Unidos, vai-se embora o desejo de dançar e cantar. Mas isso é, de propósito, parte da estratégia da direita no país. Para eles, como para todos os seus antepassados no mundo, a música, a dança, o teatro e a palavra escrita que não se subordinam a eles são perigosos.
As notícias políticas neste país não deixam de oscilar entre o horrendo e o ridículo. há vários exemplos. Juízes que decidem contra Trump e suas políticas enfrentam abusos e ameaças do próprio presidente e de seus seguidores. O Departamento de Segurança Interna está avaliando uma proposta para um programa de televisão em que imigrantes possam competir entre si para obter o prêmio da cidadania. A procuradora-geral do país, Pam Bondi, determinou que não seria um suborno se o governo do Catar desejasse presentear o presidente com um avião Boeing 747 de ultraluxo — mas não revelou que, antes de ser procuradora, havia sido lobista do governo do Catar (recebendo cerca de 115 mil dólares mensais por seus serviços). E está sendo promovido um projeto de lei do orçamento federal que implica a maior transferência de riqueza dos mais pobres para os mais ricos na história do país (incluindo um imposto de 5% sobre as remessas enviadas por imigrantes indocumentados).
Entre essas notícias, está o ataque incessante contra artistas, organizações culturais, museus e universidades, enquanto se alongam as listas de livros “censurados” e os ataques contra jornalistas. O bufão perigoso e sua turma sabem que é necessário calar a cultura e apagar a memória coletiva para impor seu projeto de poder.
Bruce Springsteen e Taylor Swift
Trump regressou de sua turnê da corrupção pelo Oriente Médio enviando uma mensagem contra duas superestrelas estadunidenses da música: Bruce Springsteen e Taylor Swift. Irritado porque “O Chefe” o criticou durante um show, o comandante em chefe do país mais poderoso do planeta declarou, em uma mensagem pelas redes sociais, que Springsteen é da “esquerda radical”, que “não é um cara talentoso” e que “essa ameixa seca de roqueiro… deveria manter a boca fechada até voltar ao país… e então veremos como se sai!”
Em Manchester, Inglaterra, o cantor disse ao iniciar seu concerto: “Invocamos o poder justo da arte, da música, do rock and roll, nestes tempos perigosos. Minha casa, a América que amo… está atualmente nas mãos de um governo corrupto, incompetente e traiçoeiro. Esta noite pedimos a todos que acreditam na democracia… que se levantem conosco, se declarem contra o autoritarismo e façam soar a liberdade…”
Não se sabe por quê, mas Trump também decidiu atacar Taylor Swift, perguntando: “Vocês notaram que, desde que eu disse ‘odeio a Taylor Swift’, ela já não é mais ‘hot’”? O sindicato nacional de músicos AFM denunciou que esses dois de seus membros foram atacados pessoalmente pelo presidente dos Estados Unidos.
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Outra voz, a de Robert De Niro, em Cannes, ao receber uma Palma de Ouro por sua carreira, declarou: “Nos Estados Unidos estamos lutando como o inferno pela democracia.” E sublinhou: “a arte é inclusiva, une as pessoas… busca a liberdade, inclui a diversidade… Por isso somos uma ameaça para os autocratas e fascistas deste mundo”.
São apenas algumas das vozes do mundo cultural que continuam se recusando a calar. Mas às vezes só é necessária a expressão, sem a declaração.
Recentemente, caminhando encharcado de más notícias, apareceu na Rua Oito com a Sexta Avenida de Nova York um enorme desfile de dança, que seguia com contingentes de hip hop, outro de mulheres da terceira idade dançando disco dos anos 1970, um de dança coreana, outro de dançarinas do ventre, de salsa, de dança moderna. Alguns dançarinos convidavam os espectadores nas ruas a se moverem, e vários aceitaram entrar em um diálogo de ritmos. Ali se mostrou que este mundo poderia não só conviver, mas dançar junto e, com isso, nos rostos de todos, se comprovou, por um instante, a esperança.
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Talvez não seja suficiente, mas é essencial: hoje, urgem os convites ao canto, à dança e à palavra andante — em todos os idiomas.
Democracia em crise existencial
O presidente, que recentemente declarou “não sei” ao ser questionado se é obrigado a cumprir a Constituição, levou quase todos os que não fazem parte de seu movimento, incluindo conservadores, ao consenso de que este é um momento existencial sem precedentes da democracia estadunidense. Uma seleção limitada das notícias recentes oferece indicadores destes tempos de crueldade, repressão, corrupção e absurdo dentro do superpoder.
No início do mês, o governo de Trump prendeu o prefeito de Newark, Nova Jersey, Ras Baraka, e, há algumas semanas, a juíza Hannah Dugan, de Milwaukee, que se opunham à caça de imigrantes promovida pelo governo federal. Esse governo, liderado por um criminoso condenado que enfrentava dezenas de acusações criminais federais — anuladas ao chegar à Casa Branca — justificou as prisões afirmando que “ninguém está acima da lei”.
Para que não digam que Trump é anti-imigrante, um grupo de 39 agora refugiados, aos quais foi oferecido asilo expresso por Trump — segundo ele, por serem “vítimas de discriminação racial injusta” em seu país — recentemente chegaram aos EUA. Essas pessoas, que teriam sido “muito maltratadas” pelo governo de seu país, são sul-africanos brancos, em sua maioria africâneres. Desde o fim do apartheid, que pôs fim ao governo branco minoritário há 30 anos, essa minoria branca conseguiu manter quase toda a riqueza que possuía antes da chegada de Nelson Mandela à presidência (três quartos das terras privadas do país, e 20 vezes mais riqueza do que a maioria negra), segundo a Reuters.
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O avião do Catar
Trump está prestes a aceitar um presente da família real do Catar: nada menos que um Boeing 747 para possível uso como avião presidencial, e que, ao final de seu mandato, será transferido para uma fundação privada do mandatário. Segundo uma cláusula constitucional, é proibido que qualquer funcionário do governo aceite presentes de um Estado estrangeiro, de um rei ou de príncipe sem aprovação do Congresso. No entanto, a Casa Branca já preparou um argumento alegando que o presente não é um presente e que não viola nenhuma lei.
Mais de 300 organizações não governamentais, entre elas PEN America, Public Citizen, MALDEF, Oxfam e outras que atuam em múltiplas áreas, assinaram uma carta aberta denunciando o ataque do presidente contra organizações civis sem fins lucrativos, apenas por discordarem do fato de o governo estar ameaçando universidades, centros de pesquisa e todo tipo de ONG.

O governo de Trump pretende anular um direito constitucional fundamental, o chamado habeas corpus — que obriga as autoridades a apresentarem um acusado perante um juiz para justificar sua detenção — a todo imigrante indocumentado, argumentando que a Carta Magna permite suspender esse direito em casos de “invasão”, já que o país estaria hoje enfrentando uma “invasão” de imigrantes indocumentados.
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“Trump governou com crueldade e semeou o caos, criando uma emergência de direitos humanos que afetou milhões de pessoas ao reprimir a dissidência, minar o Estado de direito e erodir normas e instituições essenciais para a proteção dos direitos humanos”, resumiu Paul O’Brien, diretor-executivo da Anistia Internacional dos Estados Unidos.
Diante dessa realidade em seu país, Percival Everett, o romancista estadunidense que acaba de ganhar o Prêmio Pulitzer por seu romance James, comentou ao Times de Londres: “se você observa os paralelos entre os Estados Unidos e a Alemanha de 1933, é aterrador… estamos falando de uma população à qual não apenas se priva cada vez mais de educação, mas onde se desencoraja o pensamento crítico sobre a história”. Ao mesmo tempo, comenta que o governo estadunidense é tão estranho que derrota a sátira. “É tão absurdo que não deixa muito espaço para o trabalho de um romancista. Como alguém poderia imaginar algo mais insano do que isso?”.
Resta saber se será permitido avançar nos paralelos com 1933 ou se ainda existe, como indicam os crescentes surtos de resistência, um “basta” suficientemente grande para, ao menos, devolver o trabalho a humoristas satíricos e romancistas.
Letra de Chimes of Freedom.
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