- Atualizado em 09/04/2025, às 10h23.
Pela norma suprema da separação de poderes no Estado, o Poder Judiciário deve ser apolítico, absolutamente apolítico, o que significa que, nos casos que julga, deve aplicar apenas a lei pertinente aos fatos provados e, em primeiro lugar, as normas supremas aprovadas pelo conjunto de cidadãos, como titulares do poder originário de mando na sociedade, reunidas na Constituição do Estado.
Uma sentença em primeira instância, expedida em Paris no último 31 de março por uma juíza, afastou-se dessa noção em um processo penal movido contra Marine Le Pen e outros dirigentes do partido político Concentração Nacional (Rassemblement National). Por essa sentença, Marine Le Pen foi condenada a quatro anos de prisão — dos quais dois com privação de liberdade —, ao pagamento de 100 mil euros de multa e — o mais importante neste caso — a cinco anos de impedimento para se candidatar a eleições, como medida de execução imediata.
Marine Le Pen foi candidata presidencial em 2002, 2017 e 2022. Nas eleições de 2017 e 2022, Emmanuel Macron venceu, e ela ficou em segundo lugar. Nas eleições de 30 de junho de 2024, para a composição da Assembleia Nacional ou Câmara de Deputados, seu partido obteve a primeira votação numérica, com 33%. Em seguida, vieram a Nova Frente Popular, liderada por Jean-Luc Mélenchon, com 27,9%, e o Juntos pela República, do presidente Macron, com 20,9%. Para as eleições presidenciais de 2027, Marine Le Pen está em primeiro lugar nas pesquisas.
Portanto, a finalidade dessa condenação seria impedir que Marine Le Pen chegue à Presidência da República, visto que ela e seu partido têm sido estigmatizados, por seus adversários e pela imprensa alinhada a eles, como de extrema-direita, segundo a nomenclatura política europeia.
Os temas fundamentais inerentes a essa sentença são a causa do processo e a execução imediata da inabilitação política.
1) A Procuradoria acusou Marine Le Pen de ter desviado certa quantidade de recursos da União Europeia, pagando-os a alguns de seus assistentes parlamentares enquanto ela era representante no parlamento dessa entidade, de 2004 a 2016, assistentes que, segundo a acusação, trabalhavam para o partido Concentração Nacional. Essa causa vai contra o que dispõe a Constituição Francesa de 1958, em vigor, que afirma: “A soberania nacional pertence ao povo, que a exerce por meio de seus representantes…” (art. 3º). Mas, para esse exercício, reconhece-se a existência de partidos ou grupos políticos que “concorrem para a expressão do sufrágio (e) se formam e exercem sua atividade livremente.” (art. 4º).
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Isso quer dizer que os cidadãos atuam na administração do Estado por meio dos partidos ou grupos políticos representados pelos parlamentares e pelos titulares eleitos do governo. Portanto, se os representantes desses partidos e grupos destinam parte ou todos os recursos que lhes são atribuídos para pagar assistentes que os ajudam — formando a opinião de seus membros, explicando seus propósitos à opinião pública, emitindo conselhos ou elaborando projetos de intervenções ou de normas legais — fazem o que devem fazer, conforme os artigos citados da Constituição.
Se alguma lei disser o contrário ou algo distinto dessas regras constitucionais, os juízes não deveriam aplicá-la, mas sim aplicar as normas da Constituição. É evidente que essa prioridade também se impõe em relação à União Europeia, cujas normas não podem se sobrepor à Constituição Francesa. É por isso que, nesse aspecto, a condenação de Marine Le Pen é inconstitucional.
2) Mas, além disso, a inabilitação política imposta a Marine Le Pen infringe também a Constituição, que, neste caso, é a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de agosto de 1789, integrada a ela (Preâmbulo). De fato, esta Declaração dispõe:
“Presume-se a inocência de todo homem até que seja declarado culpado; caso se julgue indispensável detê-lo, todo rigor que não seja necessário para assegurar sua captura deve ser severamente punido pela lei.” (art. 9).
É um preceito geral do Direito que a declaração de culpabilidade deve ser firme, ou seja, deve ser proferida por um tribunal da mais alta instância, e não apenas por um juiz ou tribunal de primeira instância, cuja decisão pode ser revogada. Por isso, a “condenação provisória”, ou seja, a inabilitação imposta a Marine Le Pen, é inconstitucional.

O defensor jurídico de Marine Le Pen apelou da sentença proferida contra ela. Mas… essa apelação só será analisada na segunda metade de 2026. (Como dizem os policiais linha-dura: se não tem razão, vai preso; e, se tem, também).
Estariam os juízes franceses obrigados a aplicar a Constituição em detrimento de leis que não estejam de acordo com ela? Ao que parece, na prática, não. E, então, onde ficam o Estado de Direito e — sua base — o pacto social que difundiram, para o bem da humanidade, os intelectuais do Iluminismo e os revolucionários de 1789?
É evidente que, se a Assembleia Francesa aprovasse uma lei que colocasse as coisas em ordem, em conformidade com a Constituição nos pontos citados, poderia, enfim, fazer-se justiça. Mas será que os representantes do grupo França Insubmissa, do ex-socialista Jean-Luc Mélenchon, e os demais grupos classificados como de esquerda — que, juntamente com a Reunião Nacional, à qual pertence Marine Le Pen, formam a maioria — compreenderão dessa forma?
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Uma apreciação final. Na França e, de modo geral, na Europa Ocidental, os meios de comunicação — impressos, televisivos e radiofônicos — que lhes são favoráveis impuseram, como um dogma absoluto e quase religioso, a divisão dos grupos e opiniões políticas em dois blocos principais: direita e esquerda, desde o final do século 19.
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No início, à direita foram associados os partidários dos reis e nobres, e depois os defensores do capitalismo; à esquerda, aqueles que defendiam o governo do povo e, posteriormente, os que apoiavam os trabalhadores. Mas, atualmente, essa divisão se estabelece com base em outros critérios, alheios às diferenças de opinião por classes sociais. Aqueles que são contrários à imigração indiscriminada — sobretudo muçulmana — são considerados de extrema-direita; e os que a apoiam, de esquerda. Marine Le Pen e seu partido são colocados, por esses meios, na extrema-direita — não importa que defendam o capitalismo nacional, se oponham à privatização dos serviços públicos e da seguridade social, critiquem a União Europeia por ter se tornado um superpoder e contestem a intenção do governo Macron de alistar a França numa guerra contra a Rússia.