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Leo Lins e MC Poze do Rodo (Montagem: Diálogos do Sul Global*)

Leo Lins, MC Poze: quem merece empatia e quem merece punição

A diferença no tratamento dispensado a Leo Lins e a MC Poze mostra que a liberdade de expressão é um luxo reservado a corpos específicos: os não racializados

Verbena Córdula
Diálogos do Sul Global
Ilhéus

Tradução:

Quando Leo Lins foi condenado por fazer piadas com pessoas com deficiência, indígenas, negras, mulheres e vítimas de tragédias, muitos correram para defendê-lo em nome da liberdade de expressão. Mas quando MC Poze foi condenado por apologia ao Comando Vermelho, esses mesmos defensores se calaram. O que explica esse silêncio? Não é só hipocrisia — é racismo. Leo Lins é branco, homem, fala como a elite, circula entre os seus. MC Poze é preto, cria de favela, e canta o que viveu. A liberdade de expressão, no Brasil, é um direito com CEP e cor da pele. Quando vem de corpos periféricos, ela não é tratada como direito — mas vista como ameaça.

É, no mínimo, curioso — para não dizer revelador — observar os julgamentos públicos quando dois corpos distintos se encontram no banco dos réus da opinião social. De um lado, Leo Lins, humorista branco, de classe média, defensor de uma liberdade de expressão autodeclarada “sem limites”, condenado por fazer piada com populações historicamente marginalizadas. Do outro, MC Poze do Rodo, preto, funkeiro, oriundo da periferia do Rio de Janeiro, condenado por apologia ao Comando Vermelho. Sobre Lins surgiram defensores inflamados da liberdade de expressão, sobre Poze só restou o silêncio — e, em muitos casos, o repúdio.

A diferença entre os dois casos não está apenas na natureza dos crimes, mas naquilo que eles representam simbolicamente para a sociedade brasileira. Quando Leo Lins é condenado, vemos surgir uma legião de vozes — jornalistas, juristas, acadêmicos, humoristas e internautas em geral — erguerem a bandeira da liberdade artística. Ressaltam que o humor deve ter carta-branca, que a censura não pode se disfarçar de justiça, e que todo discurso, por mais cruel que seja, merece o manto protetor da legalidade. Porém, quando MC Poze é condenado, essas mesmas vozes, tão veementes na defesa do direito ao riso cruel, tornam-se mudas. Nenhuma defesa da liberdade de manifestação cultural. Nenhuma reflexão sobre o peso do contexto. Nenhuma ponderação sobre seletividade penal. O silêncio, nesse caso, é emblemático. Essa assimetria é mais do que uma mera distração: denuncia os critérios que regem a moral pública. A liberdade de expressão, ao que parece, é um luxo reservado a certos corpos: aqueles não racializados

Leo Lins pode, sob o pretexto do humor, zombar de quem já sofre. E aqueles que criticam sua condenação o fazem sob a bandeira da racionalidade democrática. Mas MC Poze, quando canta sobre uma realidade que o atravessa — marcada por várias violências —, é imediatamente reduzido a delinquente. Sua arte é descartada como prova de criminalidade; sua voz é silenciada com a conivência geral. Aqui, a liberdade não tem o mesmo valor: o beco da favela não é digno dela.

Esse contraste se sustenta, em grande medida, pelo racismo estrutural que atravessa o modo como enxergamos quem tem direito à fala, à arte, ao erro e à redenção. Leo Lins, branco e integrado a uma lógica midiática hegemônica, é visto como “provocador” — alguém que desafia limites, um artista “ousado”. Já MC Poze, por ser preto, favelado, com estética popular e linguajar periférico, não recebe o mesmo tratamento. Sua voz incomoda não por aquilo que ele diz, mas por quem ele é. O problema, no fundo, não é a apologia — mas a pele, o ritmo, o sotaque. 

O racismo se manifesta, também, na forma como se interpreta a violência. Quando vem da boca de um branco, é “crítica ácida”; quando vem de um preto, é “ameaça à ordem”. Leo Lins, zombando de indígenas e crianças vítimas de tragédias, de judeus, de negros, entre outros, é blindado pela retórica jurídica da liberdade. Já Poze, ao cantar a realidade de um território onde o tráfico de drogas é parte do cotidiano — e não da escolha —, é imediatamente condenado. Não se pergunta o que ele viveu. Apenas se pune o que ele expressa.

Mais do que duas figuras públicas, Leo Lins e MC Poze encarnam dois projetos distintos de Brasil. Um é aceito mesmo quando fala atrocidades, porque representa a continuidade do “poder branco” que naturalizamos como neutro. O outro, no entanto, é punido até quando canta a sua verdade, porque carrega nos ombros a marca da subalternidade. A diferença de tratamento revela que o racismo à brasileira não está apenas na brutalidade policial — ele mora na forma como escolhemos quem merece empatia e quem merece punição.

A seletividade não é só penal — é afetiva, simbólica e ideológica. O crime que Leo Lins cometeu é de outra ordem: é o crime contra a empatia. Suas piadas desumanizam, zombam da dor, da tragédia, da diferença. Mas essa violência é encoberta por um verniz de “liberdade de expressão”. Já MC Poze, é penalizado por aquilo que representa: a voz de um Brasil que não cabe nas molduras dos salões brancos da elite. Sua música, sua estética, sua origem — tudo nele é tido como “perigoso”.

A moral pública brasileira tem olhos que veem com mais generosidade os desvios de quem se parece com ela. E essa semelhança não é apenas de classe, mas de cor, de bairro, de padrão de linguagem. Quando um homem branco e bem articulado é julgado por piadas que ferem, há um esforço coletivo para entender “o contexto”. Mas quando um jovem preto canta uma realidade que é sua, ninguém se importa em saber o que ele viu, viveu ou sentiu. O primeiro é entendido como artista; o segundo, como ameaça.

Há, nesse contraste, uma pedagogia perversa: dizer quem pode falar e quem deve calar. Quem pode errar e ser compreendido — e quem será punido por existir. Quando se defende Leo Lins com tanta veemência e se ignora ou se condena MC Poze com a mesma intensidade, o que está sendo afirmado é que há vozes autorizadas e vozes criminalizadas. É o Brasil das liberdades seletivas, onde o direito é moldado ao gosto das conveniências morais de quem tem poder.

Por isso, não se trata aqui de defender que ninguém seja responsabilizado. Trata-se de exigir coerência. Se é para defender a liberdade artística, então que se defenda com honestidade — e universalmente. Se é para criticar discursos de ódio, então que se critique em todas as suas formas, inclusive quando estão disfarçados de piada. Caso contrário, o que temos é uma moral hipócrita, que protege os seus e condena os outros.

A reação desproporcional — ou melhor, a reação desigual — entre os casos de Leo Lins e MC Poze expõe mais do que visões distintas sobre crime e arte: revela a face racista e classista da moral pública brasileira. Mostra que há uma espécie de hierarquia tácita do direito de expressão, em que o artista branco pode chocar e o artista preto deve ser discreto. Na qual o humorista que debocha de tragédias é exaltado como rebelde, mas o funkeiro que narra o cotidiano da favela é acusado de glorificar o crime. É preciso romper com essa lógica. E não se trata de inocentar ninguém, repito. Se trata de fazer perguntas que não se quer fazer: por que alguns discursos, mesmo ofensivos, são protegidos, e outros, ainda que reflexos da realidade, são criminalizados? Por que o incômodo causado por um humorista é defendido como arte, e o incômodo causado por um funkeiro é tratado como ameaça? 

Se a sociedade deseja ser justa, precisa começar por reconhecer seus próprios privilégios de escuta. Precisa admitir que há sim uma diferença brutal na forma como julga e condena seus artistas. E, sobretudo, precisa parar de usar o argumento da liberdade de expressão como escudo para defender apenas os que se parecem com ela.

* Imagens na capa:
– Leo Lins: showaindaecedo / Wikimedia Commons
– MC Poze do Rodo: Rio 189 / Wikimedia Commons


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Verbena Córdula Graduada em História, Doutora em História e Comunicação no Mundo Contemporânea pela Universidad Complutense de Madrid e Professora Titular da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Ilhéus, BA.

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