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Contrabando de combustível na Líbia tornou-se particularmente preocupante devido à sua escala e “dimensão industrial” (Foto: Companhia Nacional de Petróleo da Líbia)

Líbia: sistema de troca petróleo x combustível sustenta contrabando e alimenta crise política

Sem capacidade de refino, a Líbia troca petróleo bruto por combustíveis refinados; boa parte, porém, acaba desviada por grupos armados para o exterior

Nina Kozlowski
Resumen LatinoAmericano
Dijon (França)

Tradução:

Ana Corbisier

Em um país dividido em duas partes desde 2011, chefiado por governos separados, o tráfico de petróleo alimenta os cofres de facções rivais em detrimento da busca por uma solução. Uma investigação revela o funcionamento interno de um sistema em que o ouro negro alimenta a corrupção, o contrabando e o estancamento político.

Na Líbia, um país mergulhado no caos desde a derrubada de Muammar Gaddafi (1942-2011), em 2011, a divisão gera muito dinheiro. Tanto na Tripolitânia quanto na Cirenaica, as duas principais facções rivais se beneficiam das receitas geradas pelo tráfico de petróleo. Estas, portanto, não têm nenhum interesse no estabelecimento de um Estado centralizado que teria, de fato, controle sobre os extraordinários lucros do petróleo. Uma investigação do Financial Times (FT) dissecou os bastidores desse tráfico ilícito de ouro negro.

No final de março de 2024, o Mardi, um petroleiro com bandeira de Camarões, desapareceu das bases de dados de rastreamento de navios após passar vários dias no mar Mediterrâneo, a leste de Malta. Reapareceu, finalmente, um mês depois, no norte da Líbia. Segundo o jornal britânico, o Mardi é um dos 48 navios identificados por um painel de especialistas da ONU encarregado de monitorar o país. Seu relatório mais recente, datado de dezembro de 2024, indica que o petroleiro fez 14 visitas ao antigo porto de Bengasi e contrabandeou mais de 135 mil toneladas de diesel entre março de 2022 e outubro de 2023, violando as sanções da ONU contra a Líbia. A Organização Marítima Internacional (OMI) não possui informações sobre o proprietário do navio.

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De acordo com a ONU, esse contrabando é possível graças a um “controverso sistema de troca”. Como a Líbia não tem capacidade de refino de combustível em grande escala, troca sua produção de petróleo bruto por combustíveis refinados, em vez de pagá-los em dinheiro.

Esses combustíveis baratos são vendidos localmente a preços altamente subsidiados. Mas parte deles também é contrabandeada para o exterior pelos portos de Bengasi, para ser vendida no mercado negro ou a preços de mercado com base em documentação falsa. Esse negócio gera um fluxo constante de receitas para grupos armados ligados a facções rivais no país. Entre os principais beneficiários: o governo reconhecido pela ONU do primeiro-ministro Abdelhamid Dbeibah, em Trípoli, e a administração rival do leste, liderada pelo marechal Khalifa Haftar e pelas forças armadas líbias.

Segundo a Sentry, uma organização de investigação que rastreia fluxos financeiros ilícitos, acredita que esse sistema de comércio de petróleo fomentou a corrupção sistêmica e o uso indevido dos subsídios aos combustíveis (Foto: Companhia Nacional de Petróleo da Líbia)

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Esse dinheiro clandestino está ajudando a bloquear os esforços da ONU para realizar eleições, reduzir a corrupção, reformar as instituições e unir a Líbia sob um governo único. Também dá poder a grupos armados que, oficialmente, não possuem autoridade. Segundo Renée Richer, especialista em assuntos líbios e pesquisadora associada ao Chatham House, em Londres, “considerando que os diferentes atores se beneficiam disso, ninguém quer acabar com o sistema”. Embora o contrabando de combustível seja comum na Líbia, a situação tornou-se particularmente preocupante devido à sua escala e “dimensão industrial”, segundo Charles Carter, diretor de investigações da organização The Sentry, em entrevista ao FT.

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A Sentry, uma organização de investigação que rastreia fluxos financeiros ilícitos, acredita que esse sistema de comércio de petróleo fomentou a corrupção sistêmica e o uso indevido dos subsídios aos combustíveis, ao mesmo tempo em que fortalece os grupos armados. Segundo especialistas da ONU, a maioria das exportações de petróleo líbio ocorre fora do controle da empresa nacional, a National Oil Corporation (NOC), única autorizada a vender petróleo bruto nos mercados internacionais. Em dezembro de 2023, a NOC anunciou que descontinuaria esse sistema de trocas e passaria a pagamentos diretos em moeda estrangeira para combustíveis refinados. Mas, por enquanto, o tráfico parece continuar, particularmente nas zonas orientais controladas pelo marechal Haftar.

Segundo as Nações Unidas, os preços dos combustíveis subsidiados são mantidos artificialmente baixos para apaziguar a população. Cerca de 70% do diesel consumido na Líbia é importado. Todo ele provém desse sistema de troca, cuja origem é, em grande parte, russa. Um relatório do Escritório de Auditoria da Líbia indica que o país aumentou suas importações de diesel russo nos últimos anos, aproveitando a queda da demanda na Europa. Em 2023, o consumo de diesel disparou, atingindo 3,2 milhões de toneladas, em comparação com 2,5 milhões em 2022.

Segundo a NOC, esse aumento não reflete o consumo local, e sim a magnitude do contrabando. Na Líbia, as poucas autoridades competentes — em especial o Escritório de Auditoria e a Comissão Nacional do Comércio — reconhecem a gravidade do problema. Mas o governo e a NOC enfrentam dificuldades para exercer um controle efetivo. Uma fonte anônima da empresa estatal disse ao FT: “Nossa principal objeção é que um litro de combustível nos custa um dólar, mas aqui é vendido a 3 centavos… e grande parte é desviada para o exterior”.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Nina Kozlowski

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