Depois de retirar o ouro do santuário de Pachacamac e deixá-lo bem guardado, Francisco Pizarro seguiu para o norte pelo trecho do Cápac Ñan (Caminho Principal), que corresponde agora à estrada de Atocongo, continuada pela avenida Marsano, a Via Expressa e a rua Carabaya. Seguiam-no cerca de 80 mercenários espanhóis e vários milhares de índios auxiliares.
Enquanto avançavam entre chácaras bem cultivadas e regadas por um extenso sistema de acequias, os índios yungas os observavam passar, assombrados e sem hostilidade. Era a primeira vez que viam aqueles seres vestidos de metal, com pelos escuros no rosto e montados em enormes bestas, que a muitos pareciam ter duas cabeças.
Ao chegar à margem do rio, junto a um espaço indefinido que parecia uma praça, Francisco Pizarro deu a ordem de parar. Olhou ao redor. Na outra margem do rio, erguia-se uma cadeia de cerros e, na margem onde estava, corria uma acequia de bom fluxo, a cerca de cem varas. O povoado era composto por um grupo de casas distribuídas entre hortas de frutíferas, de forma desordenada, e o vale era amplo e quase plano. Calculou que a distância até o mar seria de cerca de três léguas, conveniente para uma evacuação rápida. Francisco Pizarro ficou encantado com o lugar e decidiu estabelecer ali a capital de sua governança.
Desmontaram. Ele se alojou na casa de adobes do curaca Taulichusco, a quem expulsou sem cerimônia. A casa ficava de frente para a praça, e seu quintal posterior dava para o rio. Os demais expedicionários tomaram posse das outras casas. Pizarro advertiu-os para que se abstivessem de fornicar com as índias, salvo se elas consentissem, já que precisava do apoio de seus maridos, pais e irmãos. A história não registra se obedeceram.
Três dias depois, em 18 de janeiro de 1535, naquele local, fundou a cidade que chamou de Los Reyes, em homenagem aos três reis magos. Ao seu redor estavam seus mercenários, dois clérigos, os índios auxiliares e os nativos, que não entendiam o que era dito ali e ignoravam o que estava acontecendo. Um escrivão redigiu a ata de fundação. Era uma época de intensa burocracia na Espanha, e todos os atos públicos e privados de importância tinham que ser registrados por um funcionário como esse.
Esse povoado, que existia havia muitos séculos, era chamado por seus habitantes de Rímac, como o rio próximo, palavra que significava “falador”. Dela derivou o nome posterior desta cidade: Lima, cujo significado nunca deixou de ser honrado pelo tagarelar de seus habitantes mais castiços.
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A prova de fogo para a recém-fundada capital dos conquistadores do Peru veio em agosto do ano seguinte, quando as tropas de Manco Inca amanheceram na margem direita do rio e estavam posicionadas no cerro que passou a ser chamado de San Cristóbal. Eram milhares de guerreiros, em sua maioria cusquenhos, que insultavam e ameaçavam os espanhóis em alta voz, empregando uma forma primitiva de guerra psicológica.
Temendo o pior, Francisco Pizarro ordenou a seus mercenários que se escondessem e mandou chamar Taulichusco. Quando este se apresentou, Pizarro ordenou que o defendesse. O curaca ressaltou que não precisava ser pressionado, pois ele e seus líderes estavam dispostos a lutar por aqueles que consideravam os salvadores estrangeiros da dominação do Tahuantinsuyo.
Após uma inócua escaramuça de fundas de uma margem e de arcabuzes da outra, a batalha começou dez dias depois, quando os guerreiros de Manco Inca cruzaram o rio, comandados por Titu Yupanqui, que era carregado em uma liteira. Encontraram o povoado deserto e, confiando em suas armas de pau e pedra e em seu número, avançaram.
De repente, à sua frente, apareceu a cavalaria dos invasores ao galope. O choque foi formidável. As espadas e as lanças dos cavaleiros despedaçaram as primeiras linhas de guerreiros indígenas. Estes recuaram, mas, então, outro esquadrão de cavalaria atacou pela retaguarda. O massacre foi completado com o avanço pelos flancos dos índios auxiliares, cañaris e yungas, que lutaram pelos espanhóis com um estranho ódio e fanatismo.
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Percebendo o desastre, Titu Yupanqui ordenou a retirada, mas não teve tempo de comandá-la, pois um cavaleiro avançou contra sua liteira e o atravessou com uma lança. A morte de seu líder desmoralizou os guerreiros indígenas, que se dispersaram e, como puderam, cruzaram o rio. O ataque de Manco Inca fracassara, e a Lima de Francisco Pizarro estava salva.
Aqueles que não se salvaram de serem escravizados pelos espanhóis foram seus aliados indígenas, que Francisco Pizarro distribuiu entre eles junto com suas terras. De tudo isso, os escribas lavraram minuciosas atas.
Cinco séculos depois, Lima ainda não consegue livrar-se de sua marca registrada. Continua sendo a capital dos conquistadores, a cidade dos vice-reis e da audiência, revividos nos moradores de suas mansões, casas e apartamentos, descendentes de seus primeiros ocupantes hispânicos, altivos e racistas. Mas é também, em grande parte, a cidade dos descendentes dos taulichuscos, yungas, tahuantinsuyanos e escravos negros, que se amontoam nos bairros populares e, muitos, nas eleições, votam a favor daqueles.
Recordo, então, os versos de uma polca crioula de dois provincianos que a adoravam, de cujo nome não quero lembrar, descendentes provavelmente de conquistadores ou de índios auxiliares: “Oh, Lima de encanto e primor, / balcão florido assomado ao mar. / Cidade com ritmo de paixão / e graça de tapada colonial.”
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Que alienação!
Seria necessário que algum psicólogo desenterrasse aquele passado de violência, crueldade e exploração sem limites, deixasse dissipar-se os eflúvios deletérios e exorcizasse os espectros dos distantes personagens que fundaram Lima e continuam entrelaçados e mandando no inconsciente coletivo de uma grande parte das maiorias populares.