Conteúdo da página
Toggle“A colônia continuou vivendo na república;
e nossa América está se salvando de seus grandes ferros
– da soberba das cidades capitais,
do triunfo cego dos camponeses desdenhados,
da importação excessiva das ideias e fórmulas alheias,
do desdém iníquo e impolítica da raça aborígene –
pela virtude superior, abonada com sangue necessária,
da república que luta contra a colônia.”
José Martí, 1889[1]
Diz-se que um conflito não termina enquanto não deixam de agir suas consequências. Disso se trata, em boa medida, quando nos referimos ao persistente legado do protetorado militar estabelecido pelos Estados Unidos no Panamá desde o começo do século 20.
Este regime fez parte das modalidades de ingresso dos Estados Unidos na condição de potência mundial depois de sua breve guerra de 1898 contra o que restava do império espanhol – aquele onde o sol nunca se punha no século 17. Dali resultou a passagem da condição de Cuba de colônia a neocolônia e a transferência para os Estados Unidos do poder colonial que a Espanha detinha sobre Porto Rico, Guam e as Filipinas. [2] A isso se agregaria a partir de 1903 a separação do Panamá da Colômbia ao amparo de um regime de protetorado militar que se dissolveu gradualmente de 1936 em diante, até terminar com a assinatura do Tratado Torrijos-Carter, de 1977.

Embora esse Tratado tenha eliminado o enclave militar da Zona do Canal, teve que incluir uma emenda – exigida por um senador norte-americano para aprová-lo – que colocou o Canal (de fato, o país) sob o que Omar Torrijos chamou “o guarda-chuva do Pentágono”, caso a via interoceânica se visse ameaçada. Com esta emenda encerrava-se – e não – um processo histórico que vai desde a proclamação da Doutrina Monroe pelos Estados Unidos em 1822 – aquela da “América para os (norte) americanos”[3] -, a 1885, quando José Martí pôde dizer que depois dos conflitos que desde a independência tinham agitado nossos países, fazia-se sentir “um imoderado desejo, saudável e urgente quando se encerra em limites naturais , de desenvolver, mesmo às custas da liberdade futura da Nação, suas riquezas naturais.”
Contrato inicial
Assim, o Panamá tinha “contratado com o governo dos Estados Unidos” a cessão “de uma faixa de território que de um Oceano a outro cruza a República”, para que nela construa o governo estadunidense e mantenha, a suas próprias custas, um canal, com fortalezas e cidades dos Estados Unidos em ambos os extremos, sem mais obrigação do que uma reserva de direitos judiciais em tempos de paz para as autoridades panamenhas, e o pagamento de uma porção dos produtos líquidos do canal, e das propriedades existentes no território cedido ao governo americano.[4]
Já então uma empresa ferroviária estadunidense controlava o trânsito interoceânico pelo Panamá desde 1855, facilitando a comunicação entre a costa Leste dos Estados Unidos e da Califórnia que fora arrebatada ao México na guerra de 1846-1848. Agora o canal interoceânico pelo Panamá passaria a ser um objetivo estratégico para o ingresso dos Estados Unidos na categoria de potência mundial.
Tensões criadas por Trump impõem à América Latina reação ao imperialismo
Este objetivo já estava presente, in nuce, tanto na insistência norte-americana em “compelir a Colômbia a reconhecer no istmo direito dominante, e privá-lo da faculdade de tratar com os povos sobre seu território”, como sua constante ingerência nos conflitos internos daquele país no Istmo. [5] Do primeiro ponto dava conta José Martí em 1889, como o fizera em 1885 sobre o segundo, indicando que “no Panamá, ainda que com mesura e aparências de serviço público, e ordem de não fazer mais do que fosse necessário”, – não foi a marinha americana além da mera proteção de sua bandeira, posto que impediu com a imposição e a ameaça da força os atos de um dos partidos beligerantes no país, e ajuda com esta atitude e com seus próprios navios as operações de guerra de outro destes partidos?[6]
A combinação daqueles conflitos internos com esta ingerência externa levou à separação do Panamá da Colômbia e sua constituição como República em novembro de 1903, ao amparo de um regime de protetorado estabelecido no Tratado Hay-Bunau Varilla de 2 de dezembro de 1903, “Para a construção do canal interoceânico”. O Artigo I do Tratado, de fato, estabelecia que os Estados Unidos “garantem e manterão a independência da República do Panamá”, enquanto no VII a recente República concedia aos Estados Unidos o “direito e a autoridade” para “a manutenção da ordem pública nas cidades de Panamá e Colón e nos territórios e baías adjacentes, caso a República do Panamá, a critério dos Estados Unidos, não esteja em condições de mantê-la.”[7]
Direitos ampliados
Por sua vez, em 15 de fevereiro de 1904, aqueles que elaboraram a primeira Constituição da República do Panamá ampliaram este direito de intervenção ao estabelecer em seu Artigo 136 que o governo dos Estados Unidos poderia intervir, em qualquer ponto da República do Panamá, para restabelecer a paz pública e a ordem constitucional se tivesse sido perturbada, caso que por virtude de Tratado Público aquela Nação assumisse, ou tivesse assumido, a obrigação de garantir a independência e soberania desta República.[8]
Assim, os Constituintes de 1904, reunidos no campo feliz da união pactada entre liberais e conservadores no tratado de paz assinado no encouraçado norte-americano Wisconsin em 21 de novembro de 1902, que pôs fim à última guerra civil colombiana no Istmo, utilizaram este mandato constitucional para a proteção de seus interesses.[9] O recurso mais notável a esta obrigação ocorreu em outubro de 1925, quando o governo panamenho solicitou ao norte-americano que interviesse militarmente na cidade do Panamá “para restabelecer a ordem pública” alterada pela mobilização de trabalhadores contra o aumento dos aluguéis que deviam pagar por suas moradias.
Educar para a liberdade: a visão de José Martí para uma nova América
Em 1936, embora o Tratado Arias-Roosevelt de 1936 permitisse dar por cancelado esse direito à intervenção nos assuntos internos do Panamá, não exorcizou o espírito do protetorado na relação entre ambos os países.[10] Não é de estranhar que este espírito fosse objeto de um constante repúdio por parte dos setores populares e das camadas médias do país, obtendo uma vitória decisiva em dezembro de 1947, com a rejeição à pretensão norte-americana de conservar mais de 100 instalações militares construídas durante a II Guerra Mundial fora da Zona do Canal.
Ainda assim, o espírito do protetorado se viu renovado pela desordem política que se seguiu à morte do General Torrijos em 1981. Esta desordem levou ao estabelecimento de um regime militar que liquidou a base de sustentação social criada pelo torrijismo na década de 1970, e permitiu aos setores mais conservadores do país apresentarem-se como os defensores da restauração da democracia no Istmo a partir da intervenção militar dos Estados Unidos no país em dezembro de 1989.
Espírito do protetorado
O espírito do protetorado fora invocado uma vez mais, e sua presença na política panamenha se viu renovada ao longo das três décadas seguintes. Hoje, o regime estabelecido a partir de então parece ter entrado em uma fase de decomposição que gera a demanda de uma renovação política conservadora que permita o crescimento econômico necessário para garantir ao mesmo tempo os interesses do setor empresarial e a estabilidade social hoje ameaçada.
Assine nossa newsletter e receba este e outros conteúdos direto no seu e-mail.
De tais conflitos se compõe toda história verdadeira, que não vai a lugar nenhum predeterminado, mas que sem dúvida procede de algum lugar. No país, ainda que tateando, emerge hoje um patriotismo novo, que busca vincular a soberania nacional à popular. Na medida em que amadureça e se faça sentir, saberemos se o espírito do protetorado subsiste, ou o vencemos ou finalmente o exorcizamos.
Panamá, 11 de janeiro
Referências
[1] “Nossa América”. El Partido Liberal, México, 30 de janeiro de 1891. Obras Completas. Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 1975. VI, 19.
[2] Cabe lembrar que V.I. Lenin em 1917, em seu ensaio O Imperialismo. Fase superior do capitalismo, afirmava que a literatura econômica e política de seu tempo recorria “cada vez mais ao termo imperialismo para caracterizar a época atual”, sobretudo “depois das guerras hispano-americana (1898) e anglo-boer (1899-1902)” https://www.fundacionfedericoengels.net/images/PDF/lenin_imperialismo.pdf
[3] https://es.wikipedia.org/wiki/Doctrina_Monroe
[4] “Cartas de Martí”. La Nación, Buenos Aires, 22 de fevereiro de 1885. Ibid. VIII, 87-88.
[5] Martí, José: “Congresso Internacional de Washington. Sua história, seus elementos e suas tendências. II. Nova York, 2 de novembro de 1889”. La Nación, Buenos Aires, 20 de dezembro de 1889. Ibid., VI, 62.
[6] “Cartas de Martí”. La Nación, Buenos Aires, 21 de agosto de 1885. VIII, 98.
[7] https://es.wikisource.org/wiki/Tratado_Hay-Bunau_Varilla
[8] https://es.wikisource.org/wiki/Constituci%C3%B3n_de_la_Rep%C3%BAblica_de_Panam%C3%A1_(1904)