UOL - O melhor conteúdo
Pesquisar
Pesquisar
Norita Cortiñas (Foto: Hugo Bononi III / Flickr)

Mães da Praça de Maio | “Renasci do meu filho”, diz Norita Cortiñas em carta póstuma inédita

Carta inédita revela como o desaparecimento do filho Gustavo transformou Norita de dona de casa submissa a símbolo incansável da luta por memória, verdade e justiça na Argentina
Paula Viafora
Agencia Paco Urondo - APU
Buenos Aires

Tradução:

Guilherme Ribeiro

Chegamos, mais uma vez, ao 24 de março. Nunca é apenas mais um. Além da evocação histórica, a cada ano essa data é vivida sob as circunstâncias do presente. E este ano será intenso e diferente. Alguns sinais e acontecimentos vêm se infiltrando na realidade há tempos, mas se tornaram mais evidentes nos últimos dias, diante de tantas manifestações de individualismo, desconhecimento e negação de direitos, além da indiferença ao sofrimento dos mais vulneráveis.

49 anos nos separam daquele 1976, e a vida, em seu desenrolar inevitável, vai nos deixando órfãos de nossas amadas “Mães”. Esta será a primeira marcha sem Norita, falecida em 30 de maio de 2024. No dia 22 de março, ela completaria 95 anos. Sabemos que, por mais que busquemos seu rosto pequeno e sorridente, com seu inseparável lenço branco na cabeça e o verde no pulso, ela não estará no palco.

Continua após o anúncio

Mas Norita está presente. Porque, além de sua alma e sua alegria que nos acompanharão para sempre, suas cinzas descansam na Praça de Maio, deixadas pela família durante o verão, perto de um ceibo, como ela pediu.

Então, iremos com a felicidade de carregá-la como exemplo e bandeira. Sua trajetória de transformação deve ser nossa guia e fortaleza. Do imenso e infinito sofrimento de perder seu filho Gustavo, detido e desaparecido em abril de 1977, nasceu uma nova mulher, que rompeu os mandatos da época, as regras de seu lar patriarcal e saiu para um mundo hostil e perigoso que já não a assustava. A necessidade de buscar seu filho e a esperança de encontrá-lo foram sua força.

Continua após o anúncio

Muitos anos depois, sentou-se para escrever esta carta. Não sabemos por que nunca foi enviada nem para quem era destinada. Mas, há algum tempo, seu filho Marcelo Cortiñas a encontrou entre suas coisas e escolheu a Agência Paco Urondo para torná-la pública. A seguir, transcrevemos a carta na íntegra.

“Nasci vestida” (1930). Isso ocorre em raríssimos nascimentos: a criança nasce coberta por uma membrana muito fina de gordura branca, que parece um manto. Dizem que é um presságio de sorte. Justamente, costuma-se dizer que a pessoa que tem sorte na vida “nasceu vestida”.

Passei meus primeiros anos em um lar humilde. Meu pai era autoritário, machista e empreendedor. Minha mãe, submissa, prudente, tímida e trabalhadora. Minha infância transcorreu sem que eu percebesse a falta das coisas que outras crianças tinham. Gostava de brincar, principalmente de ser mãe, de ter bonecas (e eu as tive).

Não gostava de ler nem de ficar parada. Sempre liderava nas brincadeiras, e minha mãe costumava me chamar de “capataz”. Era inquieta, extrovertida, engraçada (dizem), mas tinha os limites impostos pelos mais velhos.

Passei pela escola sem grandes destaques, era indisciplinada. As professoras gostavam de mim. No primeiro ano, era a preferida. Quando entrávamos na sala de aula, depois da formação no pátio, minha professora, senhorita Juanita, me fazia passar ao lado de sua mesa, onde havia uma gaveta aberta, e eu pegava um doce, que depois tinha que comer escondida (um grande perigo, não é?). Também me marcou a cena no quarto ano, durante a aula de “Religião e Moral”, quando pediam que as alunas não católicas saíssem da sala. Uma colega turca ficava de castigo no corredor por uma hora, em pé. Eu não gostava de ir à escola e não estudava. Aproveitava o fato de que minha mãe precisava ajudar meu pai no trabalho e nunca fazia os deveres. Quantas notas ruins eu levei! Comprovei que esse sistema não funciona.

Quando terminei o ensino primário, fui colocada para trabalhar na oficina de numeração (setor de impressão) do meu pai. Ele acreditava que as mulheres deveriam aprender um ofício (se fosse o dele, melhor ainda) e serem boas donas de casa. Não aceitava a ideia de uma carreira profissional. Mesmo assim, fiz dois anos do ensino secundário. Nessa época, com 15 anos, comecei a namorar meu atual marido e abandonei os estudos a pedido dele. O pensamento da época era de que o homem deveria sustentar o lar e a mulher deveria cuidar da casa e dos filhos.

Casei-me aos 19 anos. Meu lar era patriarcal, e meu marido, machista ao extremo e ciumento. Nesses anos, comecei a sentir as contradições entre minha criação e a realidade. Queria fazer outras coisas além das funções de dona de casa, mas herdara a submissão de minha mãe, e a sociedade – ou o sistema – condenava qualquer mulher que desejasse escolher seus próprios caminhos, como estudar, trabalhar fora ou fazer cursos. Viver em um lar com um homem autoritário e controlador não era fácil. Os impulsos para enfrentar essa situação vieram da minha sogra, uma mulher extraordinária, forte em suas convicções, doce e decidida, que me apoiou e me incentivou a fazer “essas coisas” que tanto me atraíam. Estudei e me formei como professora de alta costura. “Tudo o que não afete a moral, você pode fazer”, me diziam. Costurei e tive alunas, mas sempre de forma discreta, para que não parecesse que eu estava diminuindo a figura do homem. Essas são as tarefas que hoje chamamos de “trabalho invisível”, que não entram no mercado nem são reconhecidas como produto. Isso acontece porque nós, mulheres da minha época, não aprendemos a valorizar nossa própria situação. Fui criada dentro dos limites dessa sociedade capitalista, patriarcal e machista (fascista), que educa para o autoritarismo. Uma sociedade de consumo que destrói os ideais de solidariedade, onde o indivíduo vive para competir, não para cooperar.

Carta escrita por Norita mostra que desaparecimento a transformou em uma nova mulher, mais forte, mais corajosa e com convicções ainda maiores (Imagem: Reprodução / Agência Paco Urondo)

Os momentos mais felizes da minha vida foram o nascimento de cada filho e de cada neto. Gustavo nasceu em 1952, em um parto difícil, pois estava com duas voltas do cordão umbilical no pescoço. Marcelo nasceu em 1955, veio ao mundo rapidamente, saudável e corado. Criei meus filhos dentro dos valores que aprendi. Também fui autoritária, mas com algumas variações. Tentava não tirar a autoridade maior do pai. Eu combinava “permissões” sem “deixar o papai bravo”, sem demonstrar quando eram minhas decisões que estavam sendo cumpridas. O comando da casa precisava ser sutil. Meus filhos foram crianças normais, sem problemas de comportamento. Mas isso não significa que, talvez, não tenham desejado outro tipo de educação. Gustavo era introvertido; Marcelo, extrovertido. Até que sequestraram Gustavo, eu nunca havia me interessado por política. Desde pequena, ouvia que política não era assunto para mulheres. Em minha família, ninguém se dedicava a isso. Meu mundo era a casa, a família nuclear e os parentes. Eu não lia jornais, apenas ouvia rádio. Quando acontecia um golpe de Estado, eu corria para comprar farinha, batatas, leite em pó e açúcar, para garantir que meus filhos não ficassem sem comida.

Durante o governo popular, vivia-se uma situação diferente, e falava-se um pouco mais sobre política. Havia crédito para moradia e, graças a isso, conseguimos nossa casa. Depois, com cada ditadura, os canais de informação foram se fechando. Sinto que foram meus filhos que me deram à luz. Foi só quando eles cresceram um pouco e traziam comentários da escola que comecei a conhecer muitas verdades da nossa história que eu desconhecia. Gustavo, que amava a história argentina e a pesquisava, me ensinou que Sarmiento não era tão patriota quanto diziam e que Mariano Moreno foi assassinado porque denunciava as artimanhas políticas da época.

“Fiz meu caminho caminhando. Seguirei lutando até conseguir respostas: Saber o que aconteceu com cada um dos detidos desaparecidos”, afirmou Norita na carta (Foto: Vanessa Martina-Silva)

Quando Gustavo me disse que queria entrar para a luta política, para defender a dignidade do povo e ajudar os mais vulneráveis, fiquei assustada. Disse a ele que era perigoso. Mas ele já havia tomado sua decisão. Para nos poupar sofrimento, contava muito pouco sobre sua militância. Dedicava seu tempo, seu salário e sua honestidade aos irmãos dos bairros humildes. Queria que todos tivessem o que ele tinha: um teto, educação, comida e trabalho.

Em abril de 1977, minha vida mudou.

Morri e renasci. Morri, sim. Senti que estava morrendo. E renasci através do meu filho. Lembro que me tranquei no carro, com as janelas fechadas e o motor ligado. Sentei no banco para pensar. Acho que, inconscientemente, queria morrer. No começo, não entendi nada. Por que levaram Gustavo? Ele não fazia mal a ninguém, só dava o melhor de si. Escolheu os pobres, abriu mão de qualquer egoísmo. Por quê? Por que o levaram? Muito tempo depois, entendi que, para impor um sistema econômico totalitário, era necessário silenciar aqueles que pensavam, que sentiam, que queriam mudança, que defendiam a dignidade do ser humano.

Foi então que decidi sair para buscá-lo. Me tornei uma fera que teve seu filhote arrancado. Ainda hoje, sinto a mesma coisa por dentro. A única diferença é que, antes, minha luta era visceral, e agora precisa ser racional. A partir desse momento, rompi com tudo o que aprendi. Meu papel mudou. Não fui mais dona de casa. Os valores materiais deixaram de importar.

Saía de casa de madrugada e muitas vezes só voltava na madrugada seguinte. Os valores que a sociedade e o sistema haviam me ensinado não faziam mais sentido. Tudo era mentira. Os véus foram caindo. Nunca mais permiti críticas ou dúvidas sobre o valor da mulher. Aprendi política na rua, enfrentando a ditadura mais sangrenta que o país já teve e ouvindo políticos cúmplices que nos davam tapinhas no ombro em sinal de consolo.

Sabia que havia muitos outros como Gustavo. E vi que outras mulheres, como eu, foram obrigadas a mudar. Aprendi que um grupo nasce quando a luta é coletiva. E se não enlouqueci – porque era isso o que os repressores queriam – foi porque escolhi ir às ruas, gritar a injustiça e a dor. Por isso, não volto mais atrás. Da minha vida passada, guardo a lembrança. Uma lembrança linda, porque vivi momentos muito felizes com minha família. Hoje, quando nos reunimos, Gustavo está presente. Aproveito o tempo com minha família, compartilho momentos alegres com eles. Mas, por dentro, a ferida segue aberta. Sei que nunca mais serei a mesma. Nunca mais serei ignorante ao mundo que me rodeia.

Fiz meu caminho caminhando. Seguirei lutando até conseguir respostas: saber o que aconteceu com cada um dos detidos desaparecidos. Que todos os responsáveis pela repressão infame estejam na prisão. Que as crianças sequestradas sejam restituídas às suas famílias legítimas. Que os presos políticos herdados da ditadura militar sejam libertados. Que o aparato repressivo seja desmontado. E que possamos ampliar os caminhos para que, aqueles que lutamos por nosso povo, alcancemos liberdade, justiça, independência econômica e igualdade de direitos para todos.

Reconhecemos a essência de Norita em cada frase, porque a vimos agir de acordo com esses pensamentos, que um dia decidiu colocar no papel.

“Renasci através do meu filho.” Com essas palavras, ela resume toda a sua luta. O rompimento que aconteceu dentro dela com o desaparecimento de Gustavo e a busca incansável que durou até o fim de sua vida a transformaram em uma nova mulher, mais forte, mais corajosa e com convicções ainda maiores. Nada nem ninguém a desviou do caminho. Nos comprometemos a continuar por ela. Devemos isso a Norita. Com Norita no coração, seguiremos marchando.

Praça de Maio: “Índice de avós”, que permitiu encontrar 137 netos, completa 40 anos na Argentina


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Paula Viafora Advogada especialista em direitos humanos, pesquisadora, mestranda na UNLP e membro da Agência Paco Urondo.

LEIA tAMBÉM

Trump, Corina e um golpe em curso prisão de venezuelanos em El Salvador mira chavismo
Trump, Corina e um golpe em curso: prisão de venezuelanos em El Salvador mira chavismo
Com anúncio de eleições, Boluarte tenta abafar escândalos e crise social no Peru (1)
Com anúncio de eleições, Boluarte tenta abafar escândalos e crise social no Peru
Medidas nos EUA e na Argentina apontam novo ataque orquestrado contra Cristina Kirchner
Medidas nos EUA e na Argentina apontam novo ataque orquestrado contra Cristina Kirchner
Dia do Mercosul futuro do bloco na nova ordem mundial exige fortalecer integração (3)
Dia do Mercosul: futuro do bloco na nova ordem mundial exige fortalecer integração