O portal Correo del Alba entrevistou o sociólogo e politólogo chileno-espanhol Marcos Roitman Rosenmann para obter sua avaliação crítica sobre a esquerda, seus desafios e seu papel, apresentando uma visão multifacetada que abrange a perspectiva acadêmica e a análise política com profundidade histórica.
Nahir González | O que é ser de esquerda? Que papel desempenha a esquerda na nova ordem mundial?
Marcos Roitman Rosenmann | A primeira questão está relacionada à sua definição histórica. Nesse sentido, trata-se de uma posição política articulada ao reconhecimento dos direitos políticos de cidadania, vinculados à tríade nascida na Revolução francesa: liberdade, igualdade, fraternidade. A isso, soma-se a ideia de emancipação, tão importante nas grandes batalhas de independência política e soberania do final do século XVIII e do século XIX.
Basta recordar a grande gesta iniciada em 1795 no Haiti, cujas características antiescravistas estavam presentes. A radicalidade dos jacobinos foi combatida pela direita, que definiu seu poder como “terror vermelho”. Coincidência? O historiador inglês Eric Hobsbawm define essa etapa como democrática e transformadora.
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A segunda perspectiva refere-se ao desenvolvimento da classe e do movimento operário, sintetizado no surgimento da Primeira Internacional e na redação, por Karl Marx e Friedrich Engels, do Manifesto Comunista em 1848. A revolução assumiu outro aspecto: deixou de ser burguesa para se tornar proletária e anticapitalista.
Os princípios de paz, luta anti-imperialista, soberania, emancipação e anticapitalismo estão no DNA da esquerda mundial. No entanto, essa breve lista de fatos variou conforme o capitalismo evoluiu. A esquerda sofreu rupturas, traições, abandono de princípios e deserções. Após a Segunda Guerra Mundial, veio o colapso: a Guerra Fria e o anticomunismo transformaram a esquerda em seu grande inimigo. O nazifascismo foi reciclado, incorporado à ideologia dominante e passou a integrar o senso comum das direitas internacionais.
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A esquerda se fragmentou e perdeu identidade. O ataque à esquerda não alterou sua posição no tabuleiro, mas mudou a visão projetada: de um lado, uma esquerda séria e responsável; de outro, uma esquerda ancorada no passado. O ponto de inflexão foi a crise da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e a queda do comunismo realmente existente.
Na América Latina, há múltiplas experiências de abandono do anticapitalismo como definição de ser de esquerda. Contudo, um fato crucial mudou o curso dos acontecimentos: o levantamento zapatista em 1994 trouxe um novo vigor para recompor o pensamento teórico e político da esquerda latino-americana. Sem dúvida, esse foi o mais importante acontecimento, ao lado da Revolução Bolivariana, após a queda do Muro de Berlim, sem desconsiderar o triunfo da Revolução Cubana, berço de toda a esquerda transformadora, anticapitalista e emancipadora em nossa América.
Nesse sentido, o papel da esquerda não é ser um Grilo Falante, uma consciência crítica do capitalismo, voltada apenas para melhorar as condições de exploração e dar maior racionalidade ao capitalismo digital, sobre o qual se estrutura o processo de acumulação e reprodução do capital.
O socialismo é compatível com a democracia?
SIM, com letras maiúsculas. O conceito de sociedade está, em si, vinculado ao bem comum, à justiça social, à igualdade e aos direitos de cidadania. É a ideia de cooperação em oposição à competitividade, do “eu” individualista frente ao “nós” coletivo. Essa é a diferença. É a partir dessa posição que o problema pode ser analisado. Ou, se preferirmos responder de forma negativa, democracia e capitalismo não são compatíveis, enquanto democracia e socialismo configuram uma relação unívoca.
Nesse sentido, se o capitalismo é uma ordem de dominação e exploração, sua própria definição exclui a democracia de sua organização social. Por outro lado, o socialismo, embora também seja uma ordem de dominação enquanto sistema político, o é sob a condição de construir um poder democrático.
Hoje, a democracia no capitalismo é entendida como um procedimento eleitoral esvaziado de conteúdos. Trata-se de uma guerra pela apropriação do conceito, para desvirtuá-lo e reduzi-lo a nada. Essa é a disputa: a democracia como uma técnica procedimental ou concebida como uma prática social e plural de controle e exercício do poder político. Em outras palavras, para que possamos nos entender: se democracia consiste apenas em ir às urnas e votar, morrer de fome seria um fato autenticamente democrático.
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Pablo González Casanova afirmou que democracia e desenvolvimento, democracia e igualdade, democracia e justiça social constituem uma única proposta de emancipação. Seu livro La democracia en México, escrito em 1965, criticou as visões liberais da democracia e tornou-se um ponto de partida para o debate sobre os conteúdos desse conceito. René Zavaleta Mercado também aprofundou essa perspectiva, como fizeram a maioria dos pensadores da esquerda marxista latino-americana.
Citando novamente González Casanova, nos anos 1980, quando o socialismo e o marxismo foram alvos de uma ofensiva política e de desqualificação pelos governos da doutrina de segurança nacional — resultado dos golpes de Estado e da adoção de políticas neoliberais —, ele se perguntou: “Quando falamos de democracia, do que estamos falando?” Sua resposta segue atual. Para saber se vivemos em democracia, precisamos avaliar os níveis de mediação, negociação, representação, participação e coerção.
Em conclusão, democracia e socialismo são e constituem um único projeto emancipatório, por definição de socialismo e democracia.
“Não é possível dar esperanças, prometer assaltar os céus e depois descer às catacumbas afirmando que se faz o que é possível.”
Como vê a esquerda no mundo atual?
Suas lutas e suas agendas são díspares. Lutar por direitos democráticos e pelo socialismo não é igual no Afeganistão, Emirados Árabes, Israel, África do Sul, Iêmen, França ou Austrália. O que dizer da América Latina? A história da esquerda foi desigual e está cheia de processos de avanços e retrocessos. O que é comum é a perspectiva histórica na qual se debate sua existência.
Falamos da transição do capitalismo analógico para o capitalismo digital. As contradições que surgem adicionam às desigualdades tradicionais aquelas próprias das mudanças introduzidas pela Inteligência Artificial (IA) e pelo Big Data. Em ritmos assimétricos, assistimos à necessidade, por parte da esquerda, de repensar o capitalismo no contexto dessas novas realidades.
O que falta para esquerda enfrentar as redes da direita nas eleições? Tecnologia ou Ideologia?
Há muitas esquerdas, tantas quanto países. O que as une? A luta contra o capitalismo. As formas de enfrentamento são diversas; os problemas, distintos. Da crise ecológica e o aquecimento global até o aumento da pobreza, os narcoestados, a corrupção inerente ao capitalismo e o crescimento de uma direita radical que não toma prisioneiros. Assistimos à emergência de um capitalismo que alguns chamam de capitalismo de plataformas, outros de feudo-capitalismo digital ou ciber-capitalismo. Seja qual for a definição proposta, trata-se de uma nova forma de conceber os mecanismos de dominação.
Armand Mattelart já revelou as características da nova guerra neocortical: o controle das emoções, dos sentimentos, da dor social. Trata-se de anular a capacidade de pensar e forjar uma sociedade submissa. O que, em algum momento, chamei de emergência do social-conformismo: a domesticação do pensamento.
A esquerda deve enfrentar essas novas realidades em que o processo de desumanização do ciber-capitalismo tem um novo mito: a IA. Se anteriormente o mito era ordem, progresso, desenvolvimento e democracia, hoje seu fundamento está na informática e na cibernética. Poder combinado com controle da informação. Dominar o mundo tornou-se mais fácil. Por isso, seus postulados substituíram a democracia pela segurança. Repito, a esquerda – sempre anticapitalista, senão não é esquerda – deve enfrentar o desafio.
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Na América Latina, há movimentos sociais e políticos que assumem essa perspectiva. Desde o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) até as reivindicações no Wallmapu e as formas de resistência que lentamente germinam. Na Europa, com governos subordinados à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e aos Estados Unidos, comprometidos com a guerra na Ucrânia e apoiando a política de Benjamin Netanyahu em Israel, a esquerda deve não só denunciar, mas também construir uma alternativa capaz de romper essa dinâmica imperialista.
São momentos críticos. Na França, vimos isso com a Nova Frente Popular. Mélenchon e a França Insubmissa foram relegados e desprezados, apesar de terem sido promotores da Unidade. Mas isso era previsível: a esquerda é a ameaça, enquanto a extrema-direita ou o neofascismo são companheiros de jornada com os quais se pode conviver.
Quais são os desafios da esquerda na América Latina?
O principal é convergir em um programa de projeto no qual sejam enunciadas as medidas inegociáveis. Não é preciso reinventar a História; os exemplos nos ajudam. Nesse sentido, as 40 medidas da Unidade Popular (UP) no Chile são uma referência. Claro que não se trata de copiá-las, mas sim de utilizá-las como base para definir uma estratégia de médio e longo prazo.
As estruturas sociais e de poder na América Latina mudaram, mas a maneira de agir das classes dominantes, da plutocracia e do imperialismo, não. Daí que um dos desafios mais importantes, mas frequentemente negligenciado, seja retomar a pedagogia política: educar, conscientizar e articular um movimento político e social de base popular que convirja em uma alternativa anticapitalista e socialista.
Além disso, é imprescindível enfrentar os males da esquerda, tanto latino-americana quanto mundial: o protagonismo, o sectarismo, o individualismo, o personalismo e a falta de crítica interna.
A esquerda latino-americana não pode fugir de suas responsabilidades. Não se trata apenas de ganhar eleições, mas de dar sentido às vitórias, de não criar desafeições, de manter seus princípios e, acima de tudo, de ser coerente.
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Não é aceitável dar falsas esperanças, prometer “assaltar os céus” e depois se contentar com o mínimo, justificando que “é o que foi possível fazer”. Mentir para ganhar eleições não é o caminho. Aqui também há exemplos. Veja-se o Uruguai sob o mandato de José Mujica. Embora tenha havido mudanças, não houve transformações estruturais nas formas de domínio e exploração do capitalismo. Tampouco é aceitável mentir e enganar o povo – isso sempre tem um custo.
Em 1778, o monarca da Prússia, Frederico II, convocou um concurso filosófico sobre se era útil para o povo ser enganado. Condorcet, enciclopedista e humanista, escreveu um ensaio intitulado: “É conveniente enganar o povo?”. Embora não o tenha apresentado ao concurso, sua reflexão é suficientemente aguda para mostrar que nunca, sob nenhum critério, deve-se optar por mentir, ocultar ou manipular a verdade dos fatos.
A mentira sempre conduz à falsidade, enquanto dizer a verdade pode levar a erros, mas nunca a conclusões falsas.
“A defesa dos processos emancipadores, anti-imperialistas, democráticos e socialistas constrói-se com organização, valores, consciência e dedicação.”
No século XX, Ernesto Che Guevara, em Guerra de Guerrilhas e O Socialismo e o Homem Novo em Cuba, destacou a verdade, ainda que difícil de aceitar, como o único caminho para criar confiança e conquistar o povo.
Enganar, seduzir e gerar falsas esperanças destrói a esquerda. Em seu lugar, surgem narrativas com certa aparência de verossimilhança, mas cheias de contradições. A socialdemocracia e a chamada novíssima esquerda latino-americana, que se apoia no discurso verde, ocultam contradições de classe, gênero e etnia, negando as relações de exploração que sustentam o capitalismo.
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Na América Latina, o melhor exemplo disso é o governo socialdemocrata de Gabriel Boric. Suas políticas de militarização do Wallmapu, repressão, corrupção institucional e venda do lítio ao capital transnacional acabarão por entregar o poder à direita.
Outro exemplo de engano foi o Podemos, na Espanha. Esses danos afetam mais a esquerda transformadora e anticapitalista do que a direita, em qualquer de suas formas. Sem uma proposta – e, insisto, sem dizer a verdade – o resultado é catastrófico.
Esse é o desafio: recuperar o espaço que nunca deveria ter sido abandonado – a luta contra o capitalismo. Não basta combatê-lo; é necessário estudá-lo, compreender suas estratégias, identificar suas fraquezas e suas forças. É o trabalho teórico que permite essa abordagem.
Na América Latina, é urgente recuperar o pensamento crítico latino-americano e abandonar as modas dos estudos pós-coloniais, culturalistas e pós-modernos, que se baseiam nos centros de poder dos Estados Unidos ou da Europa. José Martí, entre outros, aponta o caminho.
Como mudaram as táticas da direita internacional e dos países hegemônicos em relação à esquerda latino-americana?
O melhor exemplo das velhas e novas táticas da direita crioula e internacional pode ser verificado nas eleições realizadas na República Bolivariana da Venezuela neste 28 de julho. Se me permitem, começarei a resposta com uma afirmação: hoje o mundo está em uma guerra permanente, desigual, híbrida e assimétrica. Uma guerra global onde a batalha cultural desempenha um papel importante. Refiro-me ao significado das palavras na luta ideológica.
A direita impôs sua agenda política desqualificando as lutas, as demandas e os princípios da esquerda. Palavras como democracia, liberdade, ideologia, patriarcado, feminismo, justiça social e igualdade foram desnaturalizadas. A democracia foi reduzida a um recipiente vazio de conteúdo. A liberdade é concebida como liberdade de consumo; a ideologia, transformada em doutrinação marxista; o patriarcado e o feminismo, em ideologia de gênero; e os direitos cidadãos, em privilégios. Esta é a estratégia.
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Vemos isso na concepção do libertarismo de Milei na Argentina, o anarcocapitalismo. O fato é que esses discursos têm ecoado na juventude. O relato racista, negacionista, xenófobo e sexista se impõe, mudando – se esta expressão for válida – o senso comum sobre o qual se constrói o mundo da vida cotidiana, onde os perigos são atribuídos à esquerda anticapitalista, que supostamente atenta contra os valores do Ocidente, ataca a família e a religião católica ou judaico-cristã. Eles se apresentam como salvadores.
Recentemente surgiu o debate sobre o movimento tradwife, cujo centro está nos Estados Unidos, em que mulheres realizam tarefas domésticas ou cozinham para agradar seus maridos. Por outro lado, muitos influencers declaram-se abertamente contra o pagamento de impostos, são críticos das políticas públicas de caráter social e lançam diatribes contra o Estado de bem-estar. Tudo isso, temperado com um discurso de ódio e uma ode ao individualismo. Um exemplo é a eleição, na Espanha, de Alvise Pérez, um neofascista confesso, como eurodeputado. Seu mérito? Ter mais de um milhão de seguidores no Instagram. “Acabou a festa”, nome de sua organização, conseguiu três eurodeputados. Pela primeira vez, alguém sem nenhuma presença nos meios de comunicação tradicionais ou no debate político entra no Parlamento Europeu.
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Elon Musk facilitou suas redes e colocou a serviço da Plataforma Unitária Democrática (PUD), de Edmundo González e María Corina Machado, os algoritmos necessários para que fizessem campanha. Seus hackers e sua tecnologia também entraram em ação. Ele é o mesmo que apoia Donald Trump. Mas não nos enganemos: as grandes tecnológicas da inteligência artificial dão apoio à direita latino-americana. Bill Gates, Jeff Bezos e Mark Zuckerberg não são precisamente militantes da esquerda anticapitalista. O controle das emoções, dos gostos, dos desejos e dos sentimentos transformou-se em um ativo político. A direita sabe disso e está vencendo a batalha.
É possível que governos de esquerda na América Latina possam desenvolver seus projetos ou estão destinados a sofrer bloqueios, sanções e golpes de Estado?
Essa resposta precisa ser dada pelas burguesias nacionais – se houver – as plutocracias do continente e o imperialismo estadunidense. Se quisermos agregar outro ator que as une, é o complexo militar-industrial, tecnológico e financeiro.
No momento, a História nos demonstra que as direitas não são democráticas, salvo quando ganham as eleições. Mas isso faz parte da luta de classes. O que não se pode fazer é renunciar aos princípios sob o pretexto de conquistar governos. É preciso manter a dignidade e os valores; caso contrário, estamos destinados ao fracasso.
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A tarefa não é fácil; aí está o desafio. A defesa dos processos emancipadores, anti-imperialistas, democráticos e socialistas constrói-se com organização, valores, consciência e entrega. Exemplos não faltam: Cuba e, hoje, Venezuela. Grandes líderes são referências a seguir: Lázaro Cárdenas, Fidel Castro, Jacobo Árbenz, Juan Bosch, Salvador Allende, entre outros, indicam-nos o caminho a trilhar. Mas, como disse em certa ocasião Mario Benedetti, as direitas gostam de revoluções fracassadas e derrotadas, não das que triunfam. Pensar para vencer – esse é o dever da esquerda; não apenas resistir.