“Veio abaixo o mundo velho,
e é natural que se acumulem agora, pedra a pedra,
os materiais daquele que há de substituí-lo.
Os homens se dedicam a isso com uma pressa gloriosa;
mas cegos com o pó da fábrica,
curvados sob o peso dos materiais
que juntam com as mãos e carregam nos ombros,
ainda não muito seguros quanto ao que resultarão
quando se articularem
e, em acomodação judiciosa, revelarem a nova fábrica do mundo,
sucede que os homens não conseguem ainda senão apresentar
e esboçar confusamente, conforme o que têm conhecido,
o resplandecente mundo novo.”
José Martí, “Fragmentos” [1885 – 1895].[1]
Transcender o resplendor de que fala Martí vai se tornando já indispensável para compreender a formação do mundo novo, que vai tomando forma nos tempos em que vivemos. Para Martí, como o liberal democrata que era no final do século 19, quando o liberalismo clássico constituía a visão hegemônica do mundo, havia evidências ao seu alcance que não estão disponíveis da mesma forma em nosso tempo.
Atentar para essas coisas é importante na mudança de épocas em que vivemos. E isso inclui recordar que este mundo se tornou velho sem chegar a ser antigo. Sua história abrange apenas cerca de 600 anos: pouca coisa, na verdade, se considerarmos que nossa espécie vem se forjando ao longo dos últimos 200 milênios.
Nesse sentido, nossa mudança de épocas aconselha que nos perguntemos até que ponto faz sentido o que nos diz nosso senso comum sobre estes tempos. Aqui podemos considerar, por exemplo, o que Antonio Gramsci entendia por senso comum: “um conceito equívoco, contraditório, multiforme”, que não permite que nos refiramos a ele “como critério de verdade”. O importante, acrescentava, era reconhecer que “certa verdade se tornou senso comum”, na medida em que “se difundiu além do limite dos grupos intelectuais”, com o que realizamos “uma comprovação de caráter histórico e uma afirmação de racionalidade histórica.”[2]
Pensemos, por exemplo, no que nos parece evidente no mundo em que vivemos. Ao Norte existem sociedades prósperas, enquanto no Sul predominam outras que hoje chamamos de “em desenvolvimento”, mas que há algumas décadas eram conhecidas como “subdesenvolvidas”. O mesmo ocorre com o Ocidente (da Eurásia em primeiro lugar, com posterior expansão para a América do Norte), que assumimos como berço da civilização contemporânea, enquanto no Oriente encontramos civilizações antigas, algumas em prolongada decadência, outras em vigorosa transformação. Atentando para essas verdades que damos por evidentes, dizia Gramsci que:
Para entender exatamente os significados que pode ter o problema da realidade do mundo externo, pode ser oportuno desenvolver o exemplo das noções de ‘Oriente’ e ‘Ocidente’, que não deixam de ser ‘objetivamente reais’, mesmo quando, analisadas, demonstram ser apenas uma ‘construção’ convencional, isto é, ‘histórico-cultural’ (frequentemente os termos ‘artificial’ e ‘convencional’ indicam fatos ‘históricos’, frutos do desenvolvimento da civilização e não construções racionalmente arbitrárias ou individualmente artificiosas).[3]
Assim, a perspectiva histórica que nos propõe o senso comum dominante é a da percepção que tem de si mesmo o sistema mundial que conhecemos. “O que significaria norte-sul, leste-oeste, sem o homem?”, pergunta-se Gramsci. Essas, diz, “são relações reais e, no entanto, não existem sem o homem e sem o desenvolvimento da civilização.” Assim,
É evidente que leste e oeste são construções arbitrárias, convencionais, ou seja, históricas, posto que fora da história real cada ponto da Terra é leste e oeste ao mesmo tempo. Isso pode ser visto mais claramente no fato de que esses termos se cristalizaram, não do ponto de vista de um hipotético e melancólico homem em geral, mas do ponto de vista das classes cultas europeias, que, por meio de sua hegemonia mundial, fizeram com que fossem adotados por toda parte.
Gramsci escrevia na década de 1930 – quando o sistema mundial ainda conservava a organização colonial com que havia emergido para a história no século 17, e que conservaria até meados do 20, quando adotou uma organização internacional – que, a rigor, caberia chamar de interestatal. Já naquela época, podia dizer que o Japão “é Extremo Oriente, não só para a Europa, mas também talvez para o norte-americano da Califórnia e para o próprio japonês, que, por meio da cultura inglesa, poderá chamar o Egito de Oriente Próximo.”[4]
Na raiz dessa percepção estava o fato histórico evidente da formação do primeiro mercado mundial na história da Humanidade, a partir do desenvolvimento do capitalismo no extremo atlântico desse enorme continente chamado Eurásia. Nesse sentido, nossa percepção dos pontos cardeais da ação humana nesse mercado mundial foi construída desde o século XVI a partir do fato de que a Europa nor-atlântica – que no final do 18 incluía a América do Norte – constituía o centro desse mercado, enquanto o restante do planeta formava sua periferia.
Desse modo, a partir de nossa própria mudança de épocas – quando, entre outras coisas, a região oriental da Eurásia e a bacia do Pacífico Norte recuperam a importância que tiveram antes do desenvolvimento daquele centro norteatlântico –, a organização do sistema mundial deriva para alguma de várias opções de futuro. Nesse processo, torna-se evidente que a geopolítica e a geocultura do sistema mundial corresponderam entre si, em uma etapa anterior de desenvolvimento desse sistema, de tal modo que “por meio do conteúdo histórico que se aglutinou no termo geográfico, as expressões Oriente e Ocidente terminaram por indicar determinadas relações entre complexos de civilizações distintas.” E ainda assim, “essas referências são reais, permitem viajar por terra e por mar e chegar justamente onde se decidiu chegar, ‘prever’ o futuro, objetivar a realidade, compreender a objetividade do mundo externo. Racional e real se identificam.”[5]
Essa capacidade de contribuir para a previsão do futuro tem hoje uma importância especial diante das mudanças que estão ocorrendo no presente. Para Martí, em seu próprio tempo, o velho mundo medieval terminava de desmoronar com a ascensão do liberalismo triunfante. Isso anunciava a possibilidade de que Cuba, sua pátria – que, junto com Porto Rico, era a última colônia da Espanha na América –, pudesse unir-se ao restante da Hispanoamérica na tarefa de transformar o Novo Mundo do século 16 em um mundo novo no século 20. Hoje sabemos que o curso dessa transição se prolongaria até 1994, e que a dinastia de construtores de nações no mundo colonial – já ativa no final do século 19 – culminaria com Nelson Mandela, que naquele ano conduziu seu povo ao fim do regime de discriminação racial vigente na África do Sul desde 1948.
Nesse sentido, se o senso comum de nosso tempo talvez nos conduza ao pessimismo e à incerteza, há também um bom senso histórico que nos diz que nada está escrito ainda sobre o nosso futuro, por mais complexos que sejam os desafios do presente. Pelo contrário, a experiência histórica indica que, com todos os seus problemas, a organização internacional do sistema mundial entre 1945 e 2025 favoreceu muito mais o desenvolvimento humano do que os 300 anos da organização colonial desse sistema entre 1650 e 1950.
A melhor defesa desse legado consiste em ampliá-lo mediante a criação de um mundo novo, que transcenda e supere os problemas que emergem da transição rumo a uma nova organização do sistema mundial, que seja, além disso, inovadora. Essa é a tarefa global, à luz da qual cabe exercer a tarefa glocal que corresponde aos trabalhadores manuais e intelectuais que convergem em nossos movimentos sociais. Diante da deriva do senso comum rumo à incerteza, os motivos de esperança revelados pelo bom senso fazem resplandecer a tarefa de contribuir para a construção de um mundo que seja novo pela prosperidade, inclusão, sustentabilidade e democracia que possa alcançar.
Tal é o nosso tempo; tal, a nossa tarefa.
Referências
- Obras Completas. Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 1975. XXII 201-202.
- Gramsci, Antonio (2003: 129): El Materialismo Histórico y la Filosofía de Benedetto Croce. Nueva Visión, Buenos Aires. [c: gc]
- Ibid., 152
- Ibid.,152-153
- Ibid.,153.
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