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Foto: UNRWA

Martirizada e indomável, Gaza é símbolo universal do que o imperialismo reserva a todos nós

O genocídio de Gaza sela o fim da civilização ocidental, que deseja arrastar em sua queda o resto da humanidade. Só há uma saída: consciência anticolonial
Laura Restrepo, Pedro Saboulard
Sur y Sur
Bogotá

Tradução:

Ana Corbisier

Gaza não é apenas Gaza. Martirizada e indomável, é também um símbolo universal. Representa o mundo colonizado. O imigrante, o oprimido, a mulher, o índio, o negro. O tratamento que Gaza receba, é o mesmo que receberemos nós, os demais. “Gaza é a primeira experiência para considerar-nos a todos descartáveis”: frase de Gustavo Petro, retomada pelo político e escritor grego Yanis Varoufakis.

Gazificação do Terceiro Mundo como estratégia imperial

O genocídio em Gaza polarizou a humanidade. De um lado, cresce globalmente uma consciência solidária e anticolonialista, derivada do apoio ao povo palestino.

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Em uma chuvosa tarde de Bogotá do mês de junho, realiza-se um megaconcerto na Praça de Bolívar. Com uma enorme bandeira palestina no fundo e a consigna CESSAR O GENOCÍDIO, cantam músicos como nascido em Ramallah, ou o conjunto Escopetarra, porta-voz colombiano da não violência. Com a kufiya branca e preta no pescoço, as e os jovens que esperam em longas filas sob o aguaceiro, vão entrando até a praça transbordar.

No outro lado, em contraposição e ligados aos interesses de Israel, agarram-se à intolerância, à xenofobia, à islamofobia e à prática de métodos extremos de espoliação, invasão e extermínio.

Por volta da mesma data do concerto em Bogotá, no teatro Gubbangen de Estocolmo, um comando de nazistas mascarados ataca uma reunião pró-palestina de partidos de esquerda, ferindo 50 pessoas. Em Nuseirat, no centro de Gaza, uma escola da ONU é bombardeada por Israel, com um saldo de 50 mortos e dezenas de feridos. Na cidade de Washington – quando os massacrados em Gaza já ultrapassam os 40 mil – Netanyahu se faz presente e fala ao Congresso norte-americano, onde recebe uma cerrada ovação de pé.

Ante os horrores da Segunda Guerra Mundial, o escritor George Bataille teve uma visão. Bataille viu a Terra projetada no espaço como uma mulher que grita com a cabeça em chamas. A imagem aparece hoje ante nossos olhos. Somos testemunhas do genocídio: esta será nossa marca geracional.

Em Gaza, a política de terra arrasada

Israel e o sionismo, com sua política de terra arrasada e extermínio, determinam a meta e definem a pauta a seguir.

Os poderes ocidentais que apoiaram e fomentaram esta monstruosa calamidade, transformam sua ordem baseada em regras em uma ordem baseada em hipocrisia, violência e duplos critérios: condenam a invasão da Ucrânia por parte da Rússia, mas não condenam a invasão da Palestina por parte de Israel.

A tolerância e a cumplicidade com os crimes de guerra de Israel empurram o Ocidente para o abismo do inumano. Ao permitir a si mesmo o que tolerou de Israel, o Ocidente assumirá a guerra como meio e o espólio como fim. Não haverá ira nem selvageria que não considere lícitos e que não utilize em causa própria.

Crianças despedaçadas; mulheres queimadas vivas; povos condenados à sede e à fome; tortura de prisioneiros; recém-nascidos destinados a morrer; violação de todo asilo, seja escola, hospital ou campo de refugiados. Nem sequer Bosch, em sua mais delirante pintura do inferno, chegou a imaginar o que diariamente aparece hoje na tela.

Desautorizando e desprezando a ONU, os Direitos Humanos, as organizações de ajuda humanitária e os altos Tribunais Internacionais, e livres já do peso da ética, do respeito e da compaixão, os impérios antigos e o império recente vão se convertendo em máquinas raivosas, desencadeadas.

Vão se armar até os dentes; já estão fazendo isso.

Ante uma devastadora crise ambiental, que reduziu os recursos de subsistência e ameaça esgotá-los, os países ricos aperfeiçoam a arte do saque. Encherão suas despensas às custas do resto do mundo.

Uma vez desmascarados de seu hálito civilizador, procurarão manter a fachada justificando qualquer atrocidade em nome da defesa da democracia.

Não haverá código de convivência que perdure

A distopia ocidental vai se forjando e sobe à cabeça. Poder-se-ia prever que, assim como a queda de Constantinopla marcou a ruína do Império Bizantino, da mesma maneira, o genocídio de Gaza sela o fim da civilização ocidental.

O Império não assume passivamente sua crise irreversível. Antes de perder sua hegemonia, desejará arrastar em sua queda o resto da humanidade. Na medida em que vê questionados seus privilégios, os defende com golpes cada vez mais brutais.

Implementa medidas draconianas contra a imigração, como arrebatar os filhos a seus pais e mantê-los em jaulas. Ou como o vergonhoso asilo offshore, que consiste em deter contingentes de indocumentados para deportá-los a zonas desérticas e inóspitas do planeta, onde os esperam o isolamento, a inanição e a morte.

Atrincheira-se em fronteiras militarizadas e acumula arsenal. Levanta economias internas baseadas na indústria armamentista: desenvolvimento a serviço da morte; tecnologia de ponta para o Armagedon; laboratórios farmacêuticos, não em função da saúde, e sim das armas biológicas; bombas táticas e estratégicas; mísseis hipersônicos. Brinquedos atômicos e demais parafernálias de destruição em massa.

Adestra-se no manejo da hecatombe existencial. Apaga-se a marca do passado e o grito do presente; sobre o portal do futuro içarão a faixa: NADA TERÁ SIDO. NADA SERÁ.

Artrítico e obsoleto, seu aparelho político e desacreditadas suas instituições, ao poder colonialista resta uma saída, que acolhe sem muita reserva: dar via livre ao ascenso do fascismo. O trânsito está ocorrendo tanto nos Estados Unidos como na Europa. Se não for freado, se afiançarão como nações bárbaras, sombra de sua própria sombra.

Estes são os sinais de sua decadência. O que o Prêmio Pulitzer Chris Hedges caracteriza como o fim do domínio norte-americano.

Quando um império cai, é porque já caiu

Apesar do estrépito, em uma praça de Bogotá cantam os jovens que apoiam Gaza. E nas universidades norte-americanas – centros do saber e do poder –, os estudantes montam acampamentos, enfrentando as diretrizes e a Polícia, para denunciar Israel.

Contra el genocidio en Gaza; movilización y pedagogía

Fortalece-se a resistência, cresce a audiência.

Milhões de pessoas em todo o mundo – sobretudo jovens – expressam sua indignação ante o horror desencadeado contra o povo palestino.

Nunca antes saíram tantos a manifestar nas ruas. Rios de gente, dezenas de milhares, em Londres, Bagdá, Viena, Johannesburgo, Cairo, Cidade do México, Kuala Lumpur, Washington, Madri. Nem mesmo na época do Vietnã a população global se mobilizou em tais proporções, desafiando castigos, avisos, cadeia, despensas.

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No calor do protesto, vai se forjando uma geração anticolonialista que não se filia ao modelo de civilização ocidental. Persegue uma nova forma, digna e justa, de viver e de pensar.

Os indignados da Terra criaram coragem, como David contra Golias.

Na América Latina, na África, na Ásia, no Oriente Médio, os povos sujeitos a antigas e novas submissões deixam de olhar para o Norte para olharem-se entre si. Encontram afinidades e tramam rotas de liberdade. Ao reconhecerem-se, invertem o mapa geopolítico.

A consciência anticolonial, que começa apenas como um rumor, um vapor, uma expectativa, se vai se condensando no Terceiro Mundo e na revoltada periferia das grandes cidades do Primeiro. Transformada em ponto de fuga, a efervescência da rebeldia poderá concretizar-se em programa político e plano de ação.

“No fundo obscuro de minha alma, invisíveis, forças desconhecidas travavam uma batalha em que meu ser era o solo, e todo eu tremia com o embate desconhecido” – Fernando Pessoa

Se a fé remove montanhas, a consciência coletiva remonta cordilheiras.

Biden y Netanyahu por fin hablaron, pero aún difieren sobre posible creación de un Estado palestino - Los Angeles Times

Os governantes ocidentais ficam sós no ato abjeto de abraçar e felicitar o genocida, fornecendo-lhe armas e recursos para que possa culminar sua tarefa de extermínio.

Há exceções. Ainda que poucas, honrosas; as daqueles que, em pleno uso de independência e dignidade, denunciaram o genocídio perpetrado em Gaza por Israel. São os governos da África do Sul, da Irlanda, da Espanha, do Brasil. E da Colômbia.

Aqui e ali ondulam os lenços do adeus. Farewell, arrivederci, hasta la vista os Trumps, os Biden, os Netanyahus. Adeus aos Macron, aos Trudeau, aos Sunak. Tchau-tchau Milei e Úrsula von der Leyen. A História vai lembrá-los como artífices do genocídio.

São outras as vozes que hoje se ouvem. A corrente anticolonialista tem seus profetas, seus youtubers, seus ativistas e seus poetas. Entre todos formam coro, abrem caminho, tecem filosofia. Seguem Julian Assange no compromisso de desentranhar verdades para trazer à luz os crimes do poder.

Chamam-se Noam Chomsky, Chris Hedges, Lula da Silva e Tarik Ali. Yanis Varoufakis, Ramón Grosfoguel, Jeremy Corbin, Susan Sontag e Jean-Luc Melenchon. Roger Waters, do Pink Floyd. A escritora australiana Caitlin Johnston. Amy Goodman, de Democracy Now. A deputada irlandesa Clare Daly. E Gustavo Petro. (E sem dúvida Saramago, se ainda estivesse aqui…). Todos eles concordam no repúdio ao sionismo e no apoio a Gaza.

Porque Gaza representa os povos pobres do planeta, os deserdados, os espoliados e explorados e depois demonizados, desprezados e considerados descartáveis. A política de extermínio projetada para Gaza é apenas um modelo. Uma experiência do que se pretende aplicar, e já se está aplicando, às massas de migrantes, às raças não brancas, às religiões não cristãs.

Yo pisaré las calles nuevamente
de lo que fuera Gaza ensangrentada
y en una hermosa plaza liberada
me detendré a llorar por los ausentes.

Eu pisarei as ruas novamente
Do que foi Gaza ensanguentada
E em uma bela praça libertada
Me deterei a chorar pelos ausentes

(Parafraseando Pablo Milanés)

Uma Gaza libertada romperia a sequência automática da fatalidade. Simbolizaria o enterro da velha ordem e o acesso a um espaço de possibilidades deslumbrantes e inesperadas. Um milagre secular.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Laura Restrepo
Pedro Saboulard

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