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Grupo Mães de Manguinhos, em protesto contra a violência policial em 24/08/2023, no Rio de Janeiro/RJ (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Mês da Consciência Negra: como conviver com o horror cotidiano?

Nós vemos a cara do racismo todos os dias e ele está muito vivo, e quanto mais vivo ele está, mais ameaçadas de morte estão as pessoas negras, indígenas e racializadas
Verônica Lima
Diálogos do Sul Global

Tradução:

Situação 1: uma mãe que acaba de gestar e parir sua filha, volta pra casa sem a cria, porque as escolhas de uma médica envolvida no parto causaram a morte da bebê.

Situação 2: uma mãe precisa lidar com a presença ostensiva dos assassinos de seu filho justamente no velório de sua cria, que tinha apenas 4 anos. A ação do mesmo grupo de homens foi responsável pela morte de seu marido, nove meses antes.

Situação 3: uma mãe sai do julgamento do assassino de sua filha, morta aos 8 anos de idade dentro do transporte que a levava para casa, com o resultado de absolvição do criminoso.

As três situações poderiam ser cenas iniciais de filmes de horror, mas são relatos resumidos de casos reais acontecidos no Brasil, só na primeira semana de novembro de 2024. O que elas têm em comum? As três são protagonizadas por crianças e mães negras. Mas a coincidência mais grave é que a causa da morte dessas crianças está diretamente relacionada a ações do poder público — respectivamente, a maternidade estadual Albert Sabin, em Salvador/BA; a polícia militar do estado de São Paulo; e a polícia militar do estado do Rio de Janeiro.

Parece ironia que se inicie assim o chamado “mês da Consciência Negra”, no ano em que pela primeira vez o dia 20 — dedicado ao líder Zumbi dos Palmares e à consciência antirracista — será feriado em todo o território nacional. Mas, mais que qualquer figura de linguagem, esses casos comprovam que reduzir as reflexões sobre as desigualdades raciais a uma data ou mesmo a um mês é quase um pingo no oceano de ameaças racistas constantes o ano inteiro, e que colocam em risco qualquer pessoa negra — mesmo que ela esteja nascendo, ou tenha 4 ou 8 anos de idade.

Os três casos mostram, ainda de forma coincidente, essa atrocidade: o racismo ameaça a vida de pessoas negras desde seu nascimento — e é correto afirmar que o mesmo ocorre até durante a gestação, já que mulheres negras são as que mais sofrem com os riscos de morte materna. E, sim, o Estado é um grande operador desse racismo, seja pelas formas mais explícitas, especialmente com a violência policial, ou de maneiras mais sutis, como os privilégios para determinadas classes profissionais (como a classe médica) ou também os mecanismos jurídicos que protegem os responsáveis por manter o racismo vivo no sistema estatal.

Ana Paula de Oliveira, mãe de Johnatha de Oliveira, morto em Manguinhos em 2014, fundadora do grupo Mães de Manguinhos, protesta contra a violência policial com mães de outras vítimas, em 24/08/2023, no Rio de Janeiro/RJ (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Sim, nós vemos a cara do racismo todos os dias e ele está muito vivo. E quanto mais vivo ele está, mais ameaçadas de morte estão as pessoas negras, indígenas e racializadas em geral. Onde há racismo, há um cheiro e um gosto de morte, uma ameaça constante às vidas diversas e suas expressões simbólicas e de conhecimento.

Quando encaro, penso e sinto a morte prematura de crianças em decorrência do sistema racista, sempre encontro um primeiro refúgio na ideia do que eles poderiam ter criado. E, note bem, falo aqui de criação e não apenas a ideia de que função exerceriam no sistema já estabelecido. Será que Ágatha poderia ter sido uma bailarina líder de uma companhia que faria uma revolução no ensino da dança e nas formas de apresentar os espetáculos? Será que Ryan seria um deputado autor de uma lei que traria mudanças estruturantes nas periferias? Quem sabe Anabelly poderia ter sido uma grande cientista com descobertas fundamentais para a cura de doenças crônicas?

Ao me refugiar nessas perguntas, eu sempre me lembro que o racismo não se vale apenas da violência total (a morte do corpo) para espalhar um rastro fúnebre pela sociedade. Ele também vai, sutil ou violentamente, impedindo e desestimulando a nossa criatividade, a nossa fertilidade, o nosso poder de criação — e mantenho aqui a primeira pessoa do plural porque, como uma pessoa negra de pele clara, as mortes e ameaças simbólicas foram e são as que mais me afetaram. O racismo mata a nosso poder como pessoas criadoras: de vida, de sentido, de amor.

Assim, uma importante forma de resistência é o compromisso com a nossa criação mais genuína, aquela que existe independente de qualquer pagamento ou sistema financeiro. E essa resistência precisa chegar até as instâncias de poder, ao governo, colocando nossa criatividade à serviço do bem comum. Imaginem só uma política feita, de fato, com amor: uma verdadeira revolução, capaz de incluir e considerar a vida de crianças negras, suas mãe e familiares.

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A violência, a segregação, o racismo, o autoritarismo, a exploração e a ganância desenfreada só nos trouxeram até esse momento, em que a morte e a ameaça à vida de crianças e pessoas negras virou cotidiano. Naturalizar situações como as que iniciaram esse texto é um aval para que essa realidade continue como está e a transformação nunca chegue. É preciso se indignar amorosamente e deixar que essa indignação se transforme em gestos — desde as relações interpessoais, até nossas escolhas políticas. A revolução somos nós.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Verônica Lima

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