A luta da comunidade LGBTQIA+, historicamente, organizou-se e ganhou maior notoriedade e robustez no século 20. Em seus primórdios, o Movimento LGBT mostrava-se como uma grande ameaça à cis-heteronormatividade [1], ao padrão de família burguesa e ao sistema capitalista, demonstrando seu caráter combativo em episódios como a Revolta de Stonewall, nos Estados Unidos, em 1969, liderada pelas trans e LGBTs pobres, negras e latinas; o Levante do Ferro’s Bar, no Brasil, em 1983, liderado por lésbicas em plena ditadura militar; o grupo Gays e Lésbicas Apoiam a Greve dos Mineiros, em 1984, liderado por militantes comunistas na Inglaterra, durante o governo neoliberal de Margaret Thatcher; entre tantas outras rebeliões e organizações de caráter radical.
Contudo, com as contradições e distanciamento do movimento LGBT da luta de classes, essa pauta foi cooptada pela burguesia e transformada em uma luta institucional e inofensiva para o sistema. A partir dessa contaminação com a ideologia liberal, caracterizada pelo idealismo, a verdadeira origem da opressão LGBTQIA+ vem sendo ocultada, dificultando a compreensão, para além da superfície, dos meios para se destruir essa opressão.
Revela-se, nesse momento, uma política social-democrata que concilia o movimento LGBT+ com o capitalismo, afastada da organização das massas, dos sindicatos e dos partidos, e executada quase exclusivamente dentro de gabinetes e câmaras legislativas. Apesar de importantes avanços terem sido conquistados nesse período e a luta por direitos institucionais ser essencial, históricas organizações do Movimento LGBT brasileiro tornaram-se imobilistas, incapazes de convocar grandes mobilizações de rua e vanguardear a luta da população LGBTQIA+ pelo fim da sua opressão.

Atualmente, as paradas LGBTs são dominadas pelos interesses do mercado e começam a perder seu caráter político. Esses eventos movimentam o turismo e o comércio de bebidas, tornando-se uma grande festa e perdendo seu caráter crítico de denunciar as injustiças e a marginalização vividas pelas pessoas LGBTQIA+.
É importante nos lembrarmos que a diversidade de gêneros e de sexualidades existe e existiu em todas as sociedades humanas, sendo que aqui mesmo, no que é hoje o território do Brasil, muitos povos indígenas, como os Yanomami e Kaingang, não reprimiam aqueles que expressavam comportamentos sexuais e de gênero diferentes da maioria das pessoas de suas comunidades, pois não apresentavam risco à organização social e econômica, ao contrário do que acontece na sociedade burguesa capitalista. Além disso, nenhum dos milhares de povos ameríndios que ocupavam o continente estadunidense antes da invasão dos europeus possuía um sistema binário de gênero [2].
Um dos benefícios para o capitalismo desse sistema de gênero e de sexualidade é a desvalorização social e a não remuneração do trabalho doméstico – chamado pelas feministas marxistas de reprodução social – e pela desigualdade salarial das mulheres. Esse sistema também se utiliza da estrutura da família patriarcal de modo que ela contribua para a preservação da propriedade privada e reproduza estruturas de opressão que sustentam o capitalismo.
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A própria origem da família burguesa – a família ideal de um marido que sustenta a casa e uma mulher submissa que cuida do lar, em um casamento monogâmico, que possuem filhos homens herdeiros e mulheres treinadas para serem esposas; todos brancos, cisgêneros [3], héteros e europeus – é intrinsecamente LGBTfóbica, machista e racista, e remonta à construção filosófica de um “homem universal”, à época da colonização do Novo Mundo. Essas noções de “família” e de “homem” ideais foram um pretexto histórico para o genocídio e escravização de povos originários que, por não possuírem um sistema econômico edificado sobre a propriedade privada e, logo, não possuírem um sistema de parentesco, gênero e sexualidade estritamente monogâmico, hétero e cis [3], eram considerados povos animalescos, promíscuos e inferiores aos colonizadores brancos – os quais hoje dão nome a avenidas e são homenageados por estátuas no nosso país.
As ideias liberais tentam vender que a solução contra as violências e o preconceito é, exclusivamente, a criação de leis e ascensão individual. Assim, os poucos que se identificam como parte da comunidade, mas possuem condições financeiras melhores, conseguem acessar alguns espaços e propagam o “sucesso” no país que segue recordista no assassinato de mulheres trans e travestis. As análises pós-modernas falham na análise material da opressão contra essa comunidade, pois são focadas no identitarismo e descoladas da realidade de miséria, desemprego e superexploração da população LGBTQIA+ no Brasil e em toda a periferia do capitalismo.
É imprescindível, portanto, que a resolução dessas contradições parta de uma teoria e prática que ataquem diretamente a raiz das opressões às pessoas LGBTQIA+, às mulheres, às negras e negros, indígenas, etc. – ou seja, a propriedade privada. É tarefa revolucionária resgatar a ameaça que os nossos corpos e identidades desviantes representam para o sistema capitalista, combater o liberalismo e a cooptação da luta pela burguesia, subverter a família burguesa e a cis-heteronormatividade, rebelar as massas por cada LGBTQIA+ violentada, e unir a classe trabalhadora pela derrubada do capitalismo. De igual modo, os comunistas revolucionários têm a tarefa de compreender a contribuição teórica que o Movimento LGBT+ brasileiro tem a dar para o programa da revolução no Brasil, incorporar suas pautas de maneira orgânica e com profundo debate em cada núcleo de seu Partido, combater firmemente a LGBTfobia na sociedade e em suas fileiras, e formar quadros capazes de dirigir a luta LGBTQIA+ de forma verdadeiramente revolucionária.
Notas
[1] A lógica de que, se tem pênis, é homem, se é homem, se relaciona apenas com mulheres; e se tem vagina, é mulher, e se é mulher, se relaciona apenas com homens.
[2] Divisão das pessoas exclusivamente por gênero masculino ou feminino.
[3] Pessoa que não muda o gênero que foi identificado de acordo com o seu sexo.
* Fotos na capa:
– Manifestação: Acervo Pessoal do historiador James Green.
– Ato com bandeiras das diversidade: Analuisa Gamboa / Unsplash