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Viúva antes dos 40 anos, mãe de três filhos, o mais velho meu pai, vovó Affonsina abriu uma pastelaria no subsolo da Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Foi lá que ela se afeiçoou a um jovem empregado. Um rapaz, vindo da antiga Tchecoslováquia, com um português horrível e olhos de amêndoas perfeitas. Quando resolveram morar juntos, as duas famílias emburraram os humores.
Fernanda Pompeu*
A dela porque ele era imigrante pobre. A dele pois vovó não era judia. Não preciso contar que meu avô e família desembarcaram na então capital do Brasil, no final dos anos 1930, fugindo da perseguição aos judeus que aumentava com passos de gigante na Europa. Também não preciso contar que, naquela época, uma mulher, dona de um negócio, viúva namoradeira (mesmo que de um só), deixava seus tios e irmãos com as ventas do nariz sibilando.
O fato é que quando me dei por gente – lá pelos cinco, seis anos – meu avô era o Júlio. O ex-empregado de vovó e agora dono da sapataria Carneiro, na mesma Central do Brasil. No momento que eu compreendi que ele era meu avô postiço, padrasto do meu pai, também fiquei sabendo que ele era judeu. O que ao contrário de ser estranho, me soava como algo chique, carregado de status.
Gostava de dizer na escola – no Grupo Escolar Soares Pereira, Tijuca – que eu tinha um avô judeu. Isso durou até o dia que ele me chamou para dizer que eu não era e nunca seria uma menina judia. Não se tratava de uma escolha, mas de origem.
Fui crescendo e percebendo o quanto vovô Júlio era um sujeito sisudo. Amargo até. Nunca brincava com os netos. Verdade de vez em quando colocava a garotada toda dentro de seu DKW azul, versão luxo, e tocava para a Barra da Tijuca.
Na metade dos anos 1960, a Barra tinha dunas onde hoje tem prédios. Nesses passeios, quando as rodas do carro esmagavam jacas no asfalto e macaquinhos acenavam das árvores, vovô até sorria. Mas bastava entrarmos em casa para ele voltar a ser um homem triste.
Hoje, numa distância de mais de meio século, penso que talvez ele nunca tenha considerado aquela casa de ateus – de origem católica – como a sua casa. Mas isso é pura conjectura.
Devo boas coisas a ele. Por exemplo quando tomei o gosto pela leitura, vovô muito compenetrado recomendou que eu lesse Franz Kafka, seu compatriota. Fez mais, me presenteou com o livro A Metamorfose. História louquíssima em quem um homem acorda no corpo de uma barata, que devorei, aos 13 anos, com espanto e prazer.
Vida que corre. A última vez que nos encontramos foi no hospital da Ordem Terceira da Previdência, cheio de Nossas Senhoras pelos corredores. Ele velho, cansado, se despedindo da vida. Eu jovem, brilhando, fazendo brindes a ela.
*Colaboradora de Diálogos do Sul