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Fica claro que o governo não triunfou por seus méritos, mas pelas características das principais coalizões de oposição. (Foto: Reprodução / Facebook)

Pânico, antiperonismo e uma “ajudinha” de Trump: a vitória de Milei nas legislativas argentinas

Milei alcançou seu objetivo máximo: enterrou a derrota de setembro em Buenos Aires e garantiu um Congresso menos reativo aos desmontes que planeja contra a classe trabalhadora

Redação CLAE
Estratégia.la
Buenos Aires

Tradução:

O ultradireitista Javier Milei venceu neste domingo (26), com 40,8% dos votos, a eleição para renovar o Congresso da Argentina, em um triunfo inesperado por sua magnitude e apresentado como épico pelo libertário, apesar de quatro meses de horror, com a economia dependente do resgate financeiro do presidente estadunidense Donald Trump, em meio a escandalosos casos de corrupção.

No total, o governo terá em dezembro 101 deputados e 20 senadores. A estratégia de Milei de reduzir a eleição a uma guerra entre o bem, representado por ele, e o mal, ou seja, o kirchnerismo, foi um sucesso. Esse peronismo, além disso, não transmite ser uma oposição com um plano para o futuro, e seu êxito nas eleições de setembro na província de Buenos Aires parece ter mobilizado muitos eleitores antiperonistas neste domingo. Segundo a contagem final, a participação cresceu nove pontos em relação àquela eleição local.

Milei agora vai com tudo no Congresso com a reforma trabalhista e previdenciária — enquanto se mantém ligado a figuras com fortes vínculos com o narcotráfico. Milei celebrou até mesmo uma vitória apertadíssima na província de Buenos Aires, onde há apenas dois meses, nas eleições para legisladores provinciais, havia perdido para o peronismo por 14 pontos. Assim, o mileísmo — uma ultradireita crioula com grande influência sionista e financiada pelo governo dos Estados Unidos — obteve uma clara vitória, inclusive na capital e em províncias grandes como Córdoba, Mendoza, Entre Ríos e Santa Fe.

O peronismo, agrupado em Fuerza Patria — sem contar as diferentes listas que em sua maioria se referenciam no Partido Justicialista (peronista) — obteve 24,38%. Bem abaixo, com 5,08%, aparece o Provincias Unidas, enquanto em quarto lugar no plano nacional está a trotskista Frente de Izquierda (FITU), com 3,72%, garantindo quatro deputados.

A grande surpresa foi a vitória, na província de Buenos Aires, do direitista Diego Santilli, com 41,5% dos votos contra 40,8% de Jorge Taiana, candidato do peronismo (Fuerza Patria). A esquerda do FITU, com Nicolás del Caño, conseguiu 5% dos votos. Já na cidade de Buenos Aires, a repressora ministra da Segurança Patricia Bullrich obteve um triunfo esmagador com mais de 50% dos votos.

Sem travas para o desmonte

Não se trata de uma eleição de meio de mandato a mais. Após os resultados deste 26 de outubro, abre-se um novo cenário no qual a economia e a política começam a se transformar definitivamente.

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“Hoje o povo decidiu deixar para trás 100 anos de decadência; hoje começa a construção da grande Argentina”, disse Milei em seu primeiro discurso triunfal. O presidente agradeceu um a um seus ministros — inclusive os que já apresentaram renúncia, como o chanceler Gerardo Wertheim e o ministro da Justiça, Mariano Cúneo Libarona — e convocou a somar forças com a oposição.

“A partir de 10 de dezembro, passamos a contar com 101 deputados em vez de 37. E no Senado passamos de seis senadores a 20. A partir de 10 de dezembro teremos o Congresso mais reformista da história argentina. Nos alegra saber que, em muitas províncias, a segunda força não é o kirchnerismo, mas os oficialismos provinciais, forças racionais que sabem que um mais um é dois. Por isso, convidamos os governadores a discutir esses acordos”, acrescentou em tom sereno, incomum nele.

Nos últimos anos, todas as campanhas eleitorais foram ruins, sobretudo a última, sem ideias nem debates. O que sobrou foram as desqualificações, as agressões verbais e físicas, as frases feitas e vazias de conteúdo, o grotesco, a enxurrada de propagandas mal-feitas e pouco originais e a irrelevância.

A “ajudinha” de Trump

A intervenção política e econômica do conglomerado de poder dos Estados Unidos sobre a Argentina está chegando à sua máxima expressão, talvez em toda a história do país.

O governo baseou sua campanha no medo de um retorno do peronismo em sua versão kirchnerista. Donald Trump e Scott Bessent, seu secretário do Tesouro, ajudaram nessa estratégia: duas semanas atrás, Trump declarou que os 40 bilhões de dólares oferecidos a Milei — 20 bilhões sob a forma de um intercâmbio de moedas e o restante como crédito de investidores privados — dependiam de uma vitória da ultradireita. Mais tarde, ele suavizou suas declarações, mas bastaram essas condições para que os bônus argentinos despencassem e o peso se desvalorizasse. Se a ideia era gerar medo no eleitorado, foi muito eficiente.

O peronismo perdeu inesperadamente, em todas as suas versões, em 18 das 24 províncias argentinas. Somou 31,7% dos votos, percentual que pode crescer ligeiramente se forem incluídas outras forças afins. O resultado permitirá que mantenham em dezembro os atuais 99 deputados, mas a ala corre o risco de perder a primeira minoria se o Libertad Avanza somar aos seus 80 deputados os 24 do também neoliberal PRO (Propuesta Republicana), partido do ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019). Já no Senado, o peronismo não teve tanta sorte: ficará com 28 senadores contra os 34 atuais. A Libertad Avanza passará de seis senadores a 18.

Grandes perdedores foram também os seis governadores que tentaram, sem sucesso, criar uma alternativa à ultradireita e ao peronismo sob o guarda-chuva de uma nova agrupação chamada Provincias Unidas. Sua intenção era se tornar árbitros dentro de um Congresso polarizado. Os oito deputados que conseguiram não serão suficientes para essa tarefa. Visto o resultado, ficou evidente que os votos esperados migraram para a ultradireita.

Recalculando

Milei alcançou seu objetivo máximo: enterrou a derrota bonaerense e se prepara para um Congresso menos reativo a partir de dezembro. Sua vitória surpreendente consolida seu poder. Embora tenha caído 15 pontos desde 2023, obteve o triunfo que buscava, apoiado na intervenção de Donald Trump, para aprofundar o ajuste sobre os trabalhadores, aposentados e a educação pública.

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Os 66% de abstenção foram o índice mais alto em uma eleição de meio de mandato nestes 40 anos de democracia. A oposição — cuja maior força é o peronista Fuerza Patria — não conseguiu apresentar uma proposta que mobilizasse ao menos parte do abstencionismo que em outras ocasiões participou. Uma parcela desse voto ausente, crítica da situação, não encontrou proposta capaz de atraí-la em nenhum setor da oposição.

Difícil entender o resultado fora das fronteiras: a economia está em colapso, assim como, sobretudo, a qualidade de vida da grande maioria que votou nos libertários violetas para que continuem as mesmas políticas que provocaram essa queda. Não é um dado falso. No entanto, o que as pessoas diziam nos últimos tempos, tanto à mídia governista quanto à opositora, era que iam votar no governo porque não queriam “voltar ao passado”, ou porque lhes parecia lógico haver um sofrimento anterior ao “despertar”, e assim ainda mantinham expectativas. Nisso coincidiram com o lema central da campanha governista, que dizia “não desistir no meio do caminho”.

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O Libertad Avanza chegou à eleição em crise, mas, com a polarização e o salvamento bilionário de Donald Trump, conseguiu a vitória eleitoral deste domingo mesmo em comícios de baixa participação. No entanto, não resolve seu problema de fundo, que consiste na falta de força política para aplicar os próximos ajustes e reformas estruturais exigidos pelos Estados Unidos, pelo Fundo Monetário Internacional e pelos grandes empresários. Uma grande derrota do peronismo e um fracasso de sua estratégia de moderação e passividade como forma de enfrentar Milei.

Embora o governo ganhe tempo e margem de manobra, tudo o que existia até este domingo continuará presente no período seguinte: uma crise financeira com grande endividamento, pressões de desvalorização para acumular dólares, uma economia em recessão em setores-chave como a indústria manufatureira, o comércio e o consumo massivo, uma forte oposição política e social e uma situação de empobrecimento de grandes parcelas da população que vêm sofrendo os ajustes e a deterioração das condições de vida.

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As únicas expectativas confirmadas pela eleição são as do FMI, do Tesouro dos Estados Unidos, do JP Morgan e dos grandes fundos de investimento. Esses não votaram nesta eleição, mas saíram fortalecidos. Os que votaram e viram suas expectativas piorarem são os milhares de comerciantes que não vendem, os centenas de milhares de trabalhadores demitidos e os milhões que viram seus rendimentos reduzidos — assim como os milhões de aposentados e pensionistas.

Nesse contexto de tantas crises acumuladas, instabilidade econômica e escândalos, fica claro que o governo não triunfou por seus méritos, mas pelas características das principais coalizões de oposição.

Apesar do triunfo categórico, Milei não tem quórum próprio no Congresso e deverá costurar novas alianças internas. “O principal desafio de Milei é reestruturar rapidamente o Gabinete e demonstrar que é capaz de construir pontes políticas para garantir a governabilidade nos dois últimos anos de mandato, que serão, sem dúvida, os mais difíceis”, diz Patricio Giusto, diretor da consultoria Diagnóstico Político. “E, em segundo lugar, não continuar adiando o redesenho do programa econômico, que hoje se sustenta artificialmente por um salvamento emergencial do Tesouro norte-americano”, acrescenta.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Redação CLAE Centro Latinoamericano de Análisis Estratégico (CLAE).

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