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Centenário de Luxemburgo: A Rosa vermelha, os coletes amarelos e a crise do neoliberalismo

Quem pensaria em promover uma revolução em países com cada vez menos proletariado, que se desindustrializaram, terceirizaram e financeirizaram em larga escala?
António Louçã
Esquerda.Net
Lisboa

Tradução:

Revisitamos regularmente os grandes clássicos, reapropriamo-nos das suas obras, porque eles e elas têm sempre coisas novas a dizer-nos. Cada época tem um olhar próprio sobre a pegada ambiental dos clássicos, porque um pensamento rico, mergulhado num tempo posterior como num reagente químico, nos revela sempre novas facetas que as circunstâncias fazem emergir.

Um novo olhar sobre Rosa Luxemburgo com quase duas décadas corridas do novo século terá presente a bancarrota das políticas neoliberais e o crescendo de dois tipos de ilusões – reformistas e nacional-populistas. No reverso da medalha, terá presente a explosão popular dos “coletes amarelos”, com todas as suas ambiguidades políticas; e a recentíssima popularidade das aspirações socialistas no debate político norte-americano.

Um diagnóstico precoce das ilusões reformistas

Quanto ao reformismo, ele foi combatido por Rosa Luxemburgo num momento em que tinha a seu favor factos de peso e o poder de compra da classe trabalhadora registava aumentos sucessivos. Quando o teórico social-democrata Eduard Bernstein propôs uma política de pequenos passos para melhorar a situação do proletariado, os seus confrades do SPD começaram por aplaudir. Foi precisa a visão totalizante de Rosa Luxemburgo sobre as tendências de fundo do capitalismo, sobre a sua dinâmica e o seu horizonte global, para forçar a mão aos dirigentes das gerações mais velhas e obrigá-los a demarcarem-se de Bernstein.

Em Reforma social ou revolução, Rosa Luxemburgo contrapôs-lhe a concepção de um capitalismo cujas contradições se agravam sucessivamente. Mais tarde, em A acumulação do capital, explicou como a exploração capitalista tem a característica inerente de impor ao proletariado um subconsumo crônico. Esta característica, por sua vez, limita o crescimento da procura e obriga o capital a procurar sempre novos mercados, a colonizar novos territórios, a empreender novas campanhas militares.

O destino da humanidade sob o imperialismo é uma guerra infinita para disputar um mundo finito. Ao diagnóstico certeiro, Rosa Luxemburgo viria a juntar mais tarde um prognóstico sombrio: se o proletariado não destruir o capitalismo, o capitalismo destruirá a civilização. Durante a guerra de 1914-18, ela viria a retomar na sua Brochura de Junius, com um impacto nunca antes alcançado, a alternativa “socialismo ou barbárie”.

Hoje, o capitalismo desceu a baixezas que eram impensáveis no tempo de Rosa Luxemburgo. Vivemos um tempo em que permanecem todos os flagelos da globalização capitalista, e no entanto regressam os flagelos da guerra comercial – o pior de dois mundos. O neoliberalismo deu à luz uma nova era protecionista; a livre circulação de capitais deu à luz um mapa mundi de mares e muros mortíferos para os refugiados. Denunciando também os acordos de Paris, Trump tem agora na presidência do Brasil um fantoche que promete dar o golpe de misericórdia na Amazônia, o pulmão do planeta.

Mais do que numa conquista do mundo, a natureza predatória do capitalismo traduz-se numa destruição sistemática das regiões consideradas periféricas – uma destruição que em todo o caso avança da periferia para o centro. Nos cenários de intervenção militar, a Administração Trump cada vez mais desiste de ter boots on the ground, mas cada vez mais especula com uma guerra nuclear dita de baixa intensidade. Sai da Síria, sairá talvez do Afeganistão, mas faz pontaria contra o Irão. É o grau zero da decadência imperialista: a política de terra queimada a substituir a política de conquista.

E, tal como o capitalismo foi além das profecias mais negras, também as ideologias reformistas se tornaram uma caricatura grotesca de si próprias. Ao contrário de Bernstein, as ideologias reformistas de hoje já só prometem uma limitação de danos. Assim, um Tony Blair, com a sua “terceira via”, prometia inicialmente reparar alguns estragos da orgia thatcheriana contra o “Estado social”. Finalmente, acabou por tornar-se um fator de agravamento da devastação neo-liberal. Do mesmo modo, o Syriza prometia opor um dique ao bullying eurocrático, mas rapidamente capitulou em toda a linha. As alternativas pseudo-reformistas do nosso tempo, no constante rebaixamento das suas notas promissórias, e no invariável incumprimento até dessas míseras aspirações, confirmam o sentido mais geral da argumentação de Rosa Luxemburgo sobre a natureza do reformismo.

Dir-se-á que o reformismo realmente existente é mais variado do que a “terceira via” britânica ou a capitulação grega e que hoje pode ter um segundo fôlego, com algum tipo de receita neo-keynesiana. Mas as fórmulas governativas de Pedro Sánchez e António Costa explicam-se apenas por conjunturas políticas excepcionais e por um condicionamento à esquerda que impediu os líderes social-democratas ibéricos de fazerem tudo o que queriam. Onde puderam fazer o que queriam, nunca houve dúvida de que era mais do mesmo. O discurso reformista de ambos é apenas a folha de parra para a sua subordinação aos interesses de um capitalismo que, na razão direta do seu declínio, cresce em voracidade insaciável.

Em busca de um rumo na revolução

Ao eclodir em 1905 a revolução no império russo, Rosa Luxemburgo intuiu imediatamente a exemplaridade da revolução russa, mesmo se ia, nesse intuir, o reconhecimento de uma singular inversão de papéis. Até então, o proletariado alemão era o modelo por excelência de todos os outros, tinha-se organizado nos maiores sindicatos do mundo e no maior partido da Internacional socialista. O proletariado russo, pelo contrário, era visto como uma minoria jovem, analfabeta, ainda mal saída do campo e escassamente organizada.

Alguma vez seria possível fazer uma revolução com um proletariado tão minoritário e inexperiente, na região mais pequeno-burguesa e reacionária da Europa? E, supondo que nesse elo fraco da cadeia se pudesse afinal iniciar uma revolução, alguma vez ela poderia ser outra coisa que uma revolução antifeudal e antimonárquica, bem à medida do atraso desse império que lhe foi berço? Por outras palavras: alguma vez essa revolução poderia ter a veleidade de fixar-se objetivos socialistas, que até para o proletariado alemão ainda pareciam prematuros?

A pergunta, velha de mais de um século, reaparece fresca e vivaz em todos os discursos anti-revolucionários da pós-modernidade em que vivemos. A quem passaria hoje pela cabeça fazer uma revolução em países com cada vez menos proletariado, que se desindustrializaram, terceirizaram e financeirizaram em larga escala? Na vida real, porém, a França desindustrializada, pequeno-burguesa e reacionária, volta a ser o país de todos os perigos, mas também o de maior potencial revolucionário.

Em 1905, os centristas do SPD alemão ainda puderam fazer de conta que o “ensaio geral” russo não era com eles nem lhes dizia respeito. Quando Rosa Luxemburgo publicou o seu Greve de massas, partido e sindicatos, não se deram por aludidos. Quando, quatro anos depois, com a Prússia em polvorosa, Luxemburgo proclamou que a greve de massas aprendida na revolução russa seria uma arma para conquistar uma república prussiana com sufrágio universal, o teórico marxista Karl Kautsky recuou horrorizado. E em 1917 foi o mesmo Kautsky quem apareceu a condenar a insurreição de Outubro como um movimento prematuro que, ao saltar as etapas receitadas nos livros, não caminharia para o socialismo, mas tão-somente para uma ditadura terrorista.

É certo que Rosa Luxemburgo, na prisão, onde passou três dos quatro anos de guerra, emitiu críticas a vários aspectos da política bolchevique (sobre a autodeterminação nacional, sobre a paz de Brest-Litovsk, sobre a questão agrária, sobre a limitação de liberdades, sobre a questão da Constituinte). Mas todas essas críticas são feitas a partir de um ângulo oposto ao de Kautsky: sem quaisquer ambiguidades, ela é solidária com a revolução russa.

Libertada em 10 de Novembro de 1918 graças à revolução que eclodia na Alemanha, Rosa Luxemburgo já só teve dois meses de vida até ser assassinada. Foram dois meses de uma atividade intensa e, ao mesmo tempo, reveladora do sentido em que se orientava a sua intuição política.

O fato mais significativo nesse momento é o de Rosa Luxemburgo ter captado rapidamente a importância dos órgãos sovietistas que até aí subestimara. E captou-a ao vivo, na revolução alemã, passando imediatamente a preconizar um governo dos conselhos de operários e soldados, contra a cortina de fumo que se anunciava nas eleições para a Constituinte. Com efeito, na Alemanha de 1918 o poder caiu durante um breve lapso de tempo nas mãos de um Vollzugsrat dos conselhos operários, tal como caíra em 1871, durante um lapso mais largo, nas mãos da Comuna de Paris. E nesse ponto da revolução alemã tratar-se-ia de consolidar o poder dos conselhos com as decisões mais drásticas e audazes. Rosa Luxemburg entendeu que não era o momento de “jogar às eleições”, como desastradamente fizera a Comuna, e opôs-se com firmeza à convocatória eleitoral de Ebert e Scheidemann para as eleições constituintes.

Em Maio de 68, a geração soixante-huitarde aderiu em massa a ideias e programas socialistas de diversos matizes, dando corpo a organizações de quase todas as ideologias, com a notável excepção do luxemburguismo. Meio século depois, ainda com a vaga de “coletes amarelos” a refluir, é cedo para saber quantas pessoas, e quais, da geração dix-huitarde evoluirão à esquerda, no sentido de um questionamento radical da ordem capitalista; e quantas evoluirão à direita, forjando bodes expiatórios para a bancarrota deste sistema.

Seja qual for a tendência dominante no rescaldo do movimento, as melhores armas da crítica marxista serão indispensáveis a quem pretenda questionar o capitalismo e encontrar vias para um futuro diferente. E quem diz o melhor da crítica marxista diz, necessariamente, Rosa Luxemburgo.
 

António Louçã é jornalista e historiador.

Dossier: 

Dossier 292: Rosa, uma vida cor de luta


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
António Louçã

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