Após 20 anos de negociação, o Mercosul e a União Europeia anunciaram o fechamento de um acordo de livre-comércio. O pacto foi comemorado pelo governo de Jair Bolsonaro (PSL), mas não há consenso entre especialistas sobre os efeitos positivos para o Brasil.
O Ministério da Economia defende que o acordo poderia representar um incremento no Produto Interno Bruto (PIB) do país de cerca de R$ 336 bilhões nos próximos 15 anos, podendo chegar a R$ 480 bilhões, se for levado em conta a redução das barreiras tarifárias.
A acordo irá incluir os 28 países da UE e as quatro nações do Mercosul (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai). Os dois blocos reúnem cerca de 750 milhões de consumidores.
Foto: Ludovic Marin
Acordo irá incluir os 28 países da UE e as quatro nações do Mercosul (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai)
Os congressos dos países latino-americanos e o Parlamento Europeu ainda devem ratificar o pacto para que ele passe a valer e o caminho para isso ainda pode ser dificultado. A França é um dos países mais reticentes, tendo em vista os possíveis impactos causados pela entrada de produtos sul-americanos em seu mercado interno. O porta-voz do governo francês, Sibeth Ndiaye, chegou a afirmar nesta terça-feira (2) “que a França, no momento, não está pronta para ratificar”.
Durante os governos anteriores, alguns setores da indústria brasileira também expressaram discordâncias com respeito à possibilidade de criação do acordo, considerando que as vantagens oferecidas para certas áreas não compensavam as concessões necessárias para que um acordo fosse assinado.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o economista e ex-vice-presidente do Banco dos BRICS, Paulo Nogueira Batista Jr., contestou os supostos efeitos positivos do pacto que, segundo ele, oferece pouco acesso adicional aos mercados da União Europeia e amarra muito as políticas de desenvolvimento dos países do Mercosul, principalmente do Brasil.
“Se os europeus conseguirem essas vantagens todas aqui, os norte-americanos, os canadenses, os japoneses vão querer o mesmo. Se todos conseguirem acordos desse tipo, acabou a política de desenvolvimento do Brasil. Não estou exagerando. Esse é um assunto potencialmente desastroso para o Brasil”, agregou.
Nogueira também lamentou o pacto ter sido fechado em um momento “em que o governo argentino [de Mauricio Macri] está muito fraco, e o governo Bolsonaro está muito despreparado para enfrentar negociações complexas. Despreparado técnica e politicamente.”
“É uma pena, do ponto de vista do interesse nacional, que isso tenha sido fechado agora. Os europeus naturalmente quiseram aproveitar essas fragilidades”, assinalou.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Dentro do que se sabe até agora, o acordo é benéfico ao Mercosul?
Paulo Nogueira Batista Jr.: Pelo que se sabe até agora, e ainda faltam muitas informações importantes, o acordo favorece mais os europeus do que os países do Mercosul. É difícil avaliar, porque é muito abrangente, possivelmente o acordo mais abrangente que o Brasil já assinou – pela quantidade de temas e tópicos que estão envolvidos.
É muito enganoso chamar de acordo de livre-comércio. É até uma mistificação que a imprensa está fazendo. Porque não é só comércio – de bens, de mercadorias – e não é livre. Não é livre porque os europeus – mas também o Mercosul – se reservam ao direito de manter sua forte defesa comercial na área da agricultura.
Não é comércio, porque cobre uma vasta gama de temas. Por exemplo, serviços, investimentos, propriedade intelectual, patentes, designações geográficas, barreira sanitárias, temas ambientais, entre outros. É um acordo que vai muito além do comércio e que não é livre no que diz respeito ao comércio de bens. Não estabelece liberdade plena. Ele remove algumas barreiras, mas de maneira assimétrica, no meu entender.
Por que não é bom para nós? Porque oferece pouco acesso adicional aos mercados da UE e porque amarra muito as políticas de desenvolvimento dos países do Mercosul, principalmente do Brasil, que tem um porte especial.
Há um outro aspecto. Se os europeus conseguirem essas vantagens todas aqui, os norte-americanos, os canadenses, os japoneses vão querer o mesmo. Se todos conseguirem acordos desse tipo, acabou a política de desenvolvimento do Brasil. Não estou exagerando. Esse é um assunto potencialmente desastroso para o Brasil.
Por conta desse grande número de regras, o acordo estaria mais próximo da Área de Livre-Comércio das Américas (ALCA) – proposta rejeitada em 2005 que incluía 34 países americanos?
Esse acordo se insere no modelo de acordo econômico que foi inaugurado pelo Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio (NAFTA), com México, Canadá e Estados Unidos. Esse modelo foi ampliado e aprofundado na proposta de ALCA que os norte-americanos fizeram. É exatamente isso, uma grande gama de temas, que amaram as políticas de desenvolvimento em troca de pouco acesso adicional aos mercado dos países desenvolvidos.
Os norte-americanos não conseguiram levar adiante a ideia de ALCA, então recuaram para fazer acordo tipo ALCA com alguns países mais próximos a eles, como Chile, Colômbia e Peru.
Os Europeus fizeram a proposta de mesmo tipo ao Mercosul. Isso começa lá atrás, no governo FHC, continuou no governo Lula – sem resultado –, o governo Temer retomou, e agora Bolsonaro concluiu.
Os governos brasileiros anteriores tinham algumas discordâncias a respeito dos termos deste acordo. Elas foram resolvidas ou o país flexibilizou suas demandas?
Tudo indica que, nos pontos mais difíceis, o Mercosul cedeu para poder concluir o acordo. Há uma razão para imaginar que o acordo não seja favorável a nós: ele foi fechado em um momento em que o governo argentino [de Mauricio Macri] está muito fraco, e o governo Bolsonaro está muito despreparado para enfrentar negociações complexas. Despreparado técnica e politicamente.
Essa conjunção de Brasil e Argentina frágeis é muito desfavorável à negociação. É uma pena, do ponto de vista do interesse nacional, que isso tenha sido fechado agora. Os europeus naturalmente quiseram aproveitar essas fragilidades.
Entrar em um acordo que beneficia mais a UE coloca os países do Mercosul em uma espécie de posição subalterna?
É preciso ver os detalhes, mas provavelmente sim. Na realidade, tudo indica que foi uma negociação desequilibrada, principalmente para o Brasil.
É ruim perder tanto espaço de manobra. Em todas as áreas que mencionei o acordo restringe a margem de manobra da política econômica e o desenvolvimento dos países do Mercosul. Exemplos estão nas licitações e compras governamentais. O Brasil não mais poderá discriminar a favor de empresas nacionais em relação à empresas da UE.
Como em muitas áreas grandes empresas europeias são mais competitivas, nossas empresas poderão perder espaço nesse grande mercado de compras governamentais e licitações.
Muito se fala sobre o aumento das exportações de produtos como etanol e carnes, por exemplo. Por outro lado, o Brasil irá importar um volume maior de autopeças, farmacêuticos, e de certos produtos alimentícios, como queijos. Quais seriam os impactos para a indústria brasileira?
Esse acordo ainda tem que ir ao Congresso brasileiro e de todos os países envolvidos. É importante que os parlamentares peçam a íntegra dos entendimentos e chamem os negociadores para prestar contas. É muito importante isso. É talvez o acordo mais abrangente que o Brasil já assinou ou pretende assinar.
Perguntas ainda precisam ser respondidas. Por exemplo: as cotas oferecidas para produtos agrícolas brasileiros são boas o suficiente, adequadas, atraentes? Como elas se comparam com ofertas anteriores que a UE fez? Há informações, que ainda precisam ser confirmadas, de que as cotas consagradas nesse acordo são inferiores às que a UE já havia feito em negociações anteriores.
Fala-se muito que a quase totalidade das exportações de manufaturas do Mercosul com a UE estarão livres de tarifas. Mas não se explica – como se deveria explicar – que as tarifas sob produtos industriais já são muito baixas na UE. Então o ganho adicional de passar, digamos, de 2%, 3% de tarifas para 0, é muito pequeno.
Já as tarifas brasileiras sobre exportações industriais da UE para cá são muito altas, chegam a 35% no caso de automóveis. E elas serão, ao longo do tempo, eliminadas. Fico preocupado. Espero que o Brasil se organize para discutir a fundo esse acordo e ver se não é o caso de rejeitá-lo no Congresso brasileiro.