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Um giro pela história: capacidade de revoltar-se pode até mesmo “remover montanhas”

O existir no mundo sempre foi e sempre será um esforço por transcender na liberdade, a qual se chega através de si mesmo
Carlos Russo Jr
Espaço Literário Marcel Proust
São Paulo (SP)

Tradução:

O existencialismo (ou filosofia da existência) constitui, segundo Theodor Jaspers, o âmbito no qual se dá todo o saber e todo o descobrimento possível. A existência humana, então, é entendida como intimamente vinculada à historicidade e à noção da situação concreta em que se vive. O problema central para Jaspers se transforma em como pensar a existência sem torná-la um objeto no mundo de hoje, um objeto para e de consumo, quando “a realidade e a verdade são antes de mais nada uma espécie de ambiente que envolve todo o conhecimento.” 

E inexiste o conhecimento fora do ambiente da verdade. E para con-viver no ambiente da verdade, é indispensável o ato de pensar, pois,“sem refletir sobre si mesmo, não há bondade humana possível, e refletindo sobre si mesmo, não há bondade inocente.” Para o filósofo alemão, Sócrates, Buda, Confúcio e, principalmente, Jesus, tiveram para toda a filosofia, que enfoca a liberdade, um significado transcendental.

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Jesus Cristo suspeitava das aparências de se querer fazer bondade e boas obras sob a orbe da política, no que ele denominava de “hipocrisia dos fariseus”. 

“Não saiba a mão esquerda o que faz a direita”. Cristo, ao contrário de Sócrates, homem da Ágora ateniense, atuava em meio à obscuridade, num espaço que não era nem público e nem privado. Para Hanna Arendt, é da essência da bondade sincera esconder-se e não poder aparecer assim como ela é; caso contrário revela-se como hipocrisia. 

O existir no mundo sempre foi e sempre será um esforço por transcender na liberdade, a qual se chega através de si mesmo

Reprodução: pxhere
Jesus, ao contrário de Sócrates, tinha uma total falta de interesse em estabilizar instituições

Acontece que Jesus, ao contrário de Sócrates, tinha uma total falta de interesse em estabilizar instituições da “polis”, “ele propunha um adorável descuidar-se em meio à civilização judaica”, sob domínio romano. 

A fé que remove montanhas é a própria liberdade em ação. Em nenhum momento Jesus de Nazaré, que ainda não era Cristo ( o “Messias” de Apóstolo Paulo), ameaça com punições ou prêmios após a morte, jamais ele fez isto! As boas novas eram mais que nada, “redentoras dos pecadores”! 

Portanto, Jesus foi o descobridor do perdão nas relações humanas, uma maneira de desfazer o já tenha sido feito. Para ele o amor ao próximo era um enunciado: “amar o próximo como a ti mesmo”. E o próximo para Jesus se afirma não pelo amor ou pela bondade, mas pela compaixão, que é o ato de sofrer junto, o compartir de outra humanidade, da humanidade de seus apóstolos e de todos aqueles que lhe são próximos. 

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Desta forma, Cristo, no sentido totalmente contrário ao do Deus de Moisés, não queria obediência, mas amizade e amor. A desobediência foi transformada em pecado mortal séculos após, quando a obediência erigiu-se na base da ética da Igreja cristã!

O cristianismo dos primeiros tempos, semi-clandestino, era apolítico! Foi Santo Agostinho, no século IV, quem articulou conceitualmente a doutrina cristã e a filosofia grega à experiência romana, o que permitiu à Igreja atuar na esfera política, ocultando, entretanto, esta atuação da doutrina original. “Agostinho foi o único filósofo que os romanos jamais tiveram”, aventura-se Arendt.

Após o declínio do império romano, a Igreja passou a ser sua herdeira espiritual: autoridade, religião e tradição. À Igreja foi outorgada a Autoridade, aos Príncipes foi dado o Poder. 

E para evitar uma completa perversão dos evangelhos, Agostinho criou a “Civitas Dei”, onde os homens, logicamente após morte, pudessem viver em irmandade e comunidade, sob a lei divina. Uma “Civita Dei” que, de certa forma espelha a Nova Jerusalém do Apocalipsis de João de Patnos.

Deste modo, enquanto a Igreja prestava legitimidade ao poder temporal, este protegia a “liberdade” da Igreja, que longe de ficar distante da política, tinha o dom de excluir os pouco fiéis da prática política. Ela legitimava o poder secular, apelando para “um amor ao próximo”, que ao metamorfosear-se, transforma-se em “ finalidade da política”. 

Na Idade Média, o espaço garantido aos fiéis era o público/eclesiástico, um substitutivo da cidadania antiga e que permaneceu até a era moderna. Reunia os homens na obscuridade das absides das Igrejas, sob o pavor inculcado pelo mito do Inferno Platônico, que também foi “traduzido” para o cristianismo por Agostinho. Agostinho, que após João de Patnos, foi o primeiro a falar em “massa danada”, na multidão dos condenados pela malignidade e pelo pecado.

Deste modo, o cristianismo triunfante pós-agostiniano, num sistema de ações, punições e recompensas futuras, renegou a antiga convicção filosófica de que a recompensa de uma boa ação seja ela mesma. Convicção do próprio Jesus de Nazaré. A maioria dos homens, então, passou a ser conduzida através do medo pela morte, e do futuro, após a morte. 

Quando chegamos ao Renascimento, Maquiavel queria, através do resgate da autoridade romana, tornar viável a unificação da Itália. Para tal, atacou a tradição e a religião, esquecendo-se que quando um dos tripés – religião, tradição e autoridade, é rompido, todos desabam. Ele redescobriu os fundamentos de Roma, reinterpretou-a nos termos de justificação de meios violentos para alcançar um fim supremo. 

Maquiavel justificou intelectualmente a violência como meio de reter a autoridade para servir a interesses públicos. Nisto ele foi precursor de outro filósofo do século XIX, Karl Marx.

Ao final do século XVIII, A Revolução Francesa tinha por objetivo inicial instaurar a liberdade a partir de um novo começar histórico. Robespierre e Saint-Just são fascinados pela cultura greco-romana (de onde se origina a idéia de democracia e de República).

Vários historiadores da época relataram, em detalhes, os acontecimentos daquele período. Um deles, F. A. Mignet, escreveu sobre sua percepção dos ideais de Robespierre e de Saint-Just:”(…) Robespierre e Saint-Just haviam traçado o plano desta democracia, cujos princípios eles defendiam em todos os seus discursos. Eles queriam mudar os costumes, o espírito e os hábitos da França. Eles queriam transformá-la em uma república à moda dos antigos”.

“O domínio exercido pelo povo, magistrados desprovidos de orgulho, cidadãos sem vícios, a fraternidade nos relacionamentos, o culto da virtude, a simplicidade dos modos, a austeridade do caráter, eis o que pretendiam estabelecer”. Isto levou Karl Marx a afirmar que a Revolução Francesa apareceu no palco da história com trajes romanos.

Mas o espaço público foi invadido pelos “sans-coulottes” e suas necessidades vitais passaram a coincidir com as metas revolucionárias. O anseio de liberdade foi substituído pelo de libertação, eliminação da miséria absoluta e liquidação da opressão. “Liberdade e igualdade para o governo da República; indivisibilidade em sua forma; virtude como seu princípio.”

E, finalmente, a violência do período do Terror recebeu sua plausibilidade com argumentos tipo: não se podem fazer omeletes sem quebrar ovos, que também seriam posteriormente repetidos na história por outro revolucionário, V. Lênin. 

Mas a violência quando é instrumental, é destituída de dignidade e grandeza, não podendo por isso mesmo fundar a liberdade, gerando apenas mais violência, incapaz de promover qualquer causa. 

Na Revolução Francesa foram esmagados os Conselhos, que também um dia existiriam na Comuna de Paris (1871), e na Revolução Soviética (1917), que eram os próprios Sovietes. Eram formas de espaço de liberdade. No entanto, ao tentarem estabelecer uma nova ordem entravam em conflito com revolucionários que viam os conselhos como um sonho romântico, e os transformaram em órgãos executores, cooptando-os ou, então, os esmagaram sob o aparato centralizado de uma burocracia governamental. 

Disse Robespierre pouco antes de sua decapitação sem julgamento: “Perecemos porque, na história do gênero humano, nós perdemos o momento de fundar a liberdade.”

Damos agora um enorme salto na história e chegamos às Democracias Contemporâneas, quando a liberdade perdeu-se em meio a um sistema que deixou de representar os anseios dos cidadãos, tornando a convivência humana fundada na igualdade política impossível, dado que o único Espaço Público reduziu-se-se a uma urna eleitoral eletrônica. 

A decorrência é que, alijado das decisões políticas e sem espaços para o exercício da liberdade, a população tornou-se desinteressada da coisa pública e transformou-se em mero eleitor, que muitas vezes até mesmo se nega a comparecer às urnas.

Na sociedade criou-se também outro espaço: o do público do trabalho. Entretanto, ele é apenas formalmente público, por não ser o espaço dos discursos, da ação e da proximidade dos cidadãos; pelo contrário, é o espaço do isolamento: um espaço que os indivíduos ocupam, mas não compartilham entre si. 

Desta forma, no sentido contemporâneo do termo, liberdade política significa ou participar do governo ou não significa nada.

Ao lado disso, a própria política ganhou um novo significado, sendo compreendida como a administração pública dos interesses econômicos privados.

Disse Albert Camus que o contraponto desta cilada social é a revolta;  que somente o homem revoltado pode exercer a perdida fraternidade, recuperando o espaço da liberdade. 

E, retornando a Jesus de Nazareno, a capacidade de revoltar-se pode até mesmo “remover montanhas”.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Carlos Russo Jr Carlos Russo Jr., coordenador e editor do Espaço Literário Marcel Proust, é ensaísta e escritor. Pertence à geração de 1968, quando cursou pela primeira vez a Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades, com Monografia sobre “Helenismo e Religiosidade Grega”, foi discípulo de Jean-Pierre Vernant.

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