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Angela Davis: momento que vivemos com discussão racial nos EUA é “extraordinário”

Em entrevista, a ativista estadunidense fala sobre violência policial, derrubada de estátuas racistas e eleições nos Estados Unidos
Amy Goodman
Resumen LatinoAmericano
Nova York

Tradução:

No meio de um levantamento mundial contra a brutalidade policial e o racismo, discutimos o momento histórico com a lendária acadêmica e ativista Angela Davis.

Ela também responde sobre a destruição e eliminação de monumentos racistas em cidades dos Estados Unidos, e sobre as eleições de 2020.

Para mais informação sobre esse momento histórico recorremos à lendária ativista e acadêmica Angela Davis, professora emérita da Universidade da Califórnia, Santa Cruz.

Durante meio século, Angela Davis tem sido uma das ativistas e intelectuais mais influentes nos Estados Unidos e um ícone do movimento de libertação negra. Eu a entrevistei nos início de junho e lhe perguntei se pensava que este momento é realmente um ponto de inflexão.

Em entrevista, a ativista estadunidense fala sobre violência policial, derrubada de estátuas racistas e eleições nos Estados Unidos

Wikimedia Commons
A acadêmica e ativista estadunidense Angela Davis

Amy Goodman: Passamos agora a ver o levantamento contra a brutalidade policial e o racismo, após o assassinato policial de George Floyd em Minneapolis no dia 25 de maio. Os protestos têm ajudado a mudar drasticamente a opinião pública sobre a polícia e o racismo sistêmico, já que “desbancar a polícia” se converte em um grito de do movimento.

Angela Davis: Este é um momento extraordinária. Nunca experimentei nada como as condições que estamos vivendo atualmente, a conjuntura criada pela pandemia Covid -19 e o reconhecimento do racismo sistêmico que se fez visível nestas condições devido às mortes desproporcionais nas comunidades negras e latinas. E este é um momento que não sei se alguma vez esperei experimentar.

Quando começaram os protestos, é claro que em torno ao assassinato de George Floyd e Breonna Taylor e Ahmaud Arbery e Tony McDade e muitos outros que perderam a vida pela violência estatal racista e a violência vigilante, quando explodiram os protestos, recordei algo que eu disse muitas vezes para estimular os ativistas, que frequentemente sentem que o trabalho que realizam não está dando resultados tangíveis. Eu lhes peço que considerem a longa trajetória das lutas negras. E o que foi mais importante são os legados, as novas arenas de luta que podem ser transmitidas às gerações mais jovens. 

Mas, frequentemente tenho dito que nunca se sabe quando as condições podem dar lugar a uma conjuntura como a atual que muda rapidamente a consciência popular e de repente nos permite avançar na direção da mudança radical. Se a gente não se envolve no trabalho em curso, quando surge tal momento, não podemos aproveitar as oportunidades para mudar. E, é claro que este momento passará. A intensidade das manifestações atuais não poderão se manter ao longo do tempo, mas teremos que estar preparados para trocar a marcha e abordar a estes problemas em diferentes âmbitos, inclusive, é claro, o âmbito eleitoral. 

Angela Davis, há muito que você é líder do movimento de resistência crítica, do movimento de abolição. E me pergunto se você pode explicar a demanda, tal como a vê, o que sente que é preciso fazer, em torno de destituir a polícia e depois sobre a abolição da prisão. 

Creio que o chamado a destituir a polícia é uma demanda abolicionista, mas reflete apenas um aspecto do processo representado pela demanda. Deixar de financiar a polícia não se trata simplesmente de retirar fundos para a aplicação da lei e não fazer nada mais. E parece que esta é a compreensão mais superficial que causou o fato de que Biden se mova na direção em que está se movendo. 

Trata-se de transferir fundos públicos a novos serviços e novas instituições; conselheiros de saúde mental, que podem responder às pessoas que estão em crise, sem armas. Trata-se de transferir fundos para a educação, para a moradia, para o lazer. Todas essas coisas ajudam a criar segurança e proteção. Trata-se de aprender que a segurança, salvaguardada pela violência, não é realmente segurança. 

E diria que a abolição não é principalmente uma estratégia negativa. Não se trata principalmente de desmantelar, desfazer, mas sim de voltar a visualizar. Trata-se de construir de novo. E diria que a abolição é uma estratégia feminista. A gente vê nessas demandas abolicionistas que estão surgindo a influência fundamental das teorias e práticas feministas. 

Explique mais sobre isso.

Quero que vejamos o feminismo não só como uma questão de gênero, mas como um enfoque metodológico para entender a interseção das lutas e dos problemas. O feminismo da abolição é contrário ao feminismo carcerário que, lamentavelmente, tem assumido que questões como a violência contra as mulheres podem ser abordadas de maneira efetiva utilizando a força policial, utilizando o encarceramento como uma solução. E é claro que sabemos que Joseph Biden afirma que a Lei da Violência contra as Mulheres foi um momento importante em sua carreira; a Lei da Violência contra as Mulheres foi redigida dentro da Lei do Crime de 1994, a Lei do Crime de Clinton.

E o que estamos pedindo é um processo de despenalização, reconhecer que as ameaças à segurança não provêm principalmente do que se define como um delito, mas do fracasso das instituições em nosso país para abordar os problemas de saúde, violência, educação etc. Então, a abolição se trata realmente de repensar o tipo de futuro que queremos, o futuro social, o futuro econômico, o futuro político. Eu diria que se trata da revolução.

Você escreve em Freedom Is a Constant Struggle , “A ideologia neoliberal no impulsiona a centrar-nos nos indivíduos, nós mesmos, as vítimas individuais, os perpetradores individuais. Mas, como é possível resolver o problema massivo da violência estatal racista fazendo um apelo aos agentes policiais individuais para levar a carga desse história e assumir que ao julgarmos, ao exigir nossa vingança sobre eles, de alguma maneiro haveríamos progredido na erradicação do racismo?” Então, explique o que é exatamente que se está exigindo. 

A lógica neoliberal supõe que a unidade fundamental da sociedade é o indivíduo, e eu diria que o indivíduo abstrato. Segundo essa lógica, os negros podem combater o racismo pondo-se de pé com suas próprias botas individuais. Essa lógica reconhece, ou melhor falha, ao reconhecer que existem barreiras institucionais que não podem ser derrubadas pela determinação individual. Se uma pessoa negra não pode entrar materialmente na universidade, argumenta que a solução não é uma ação afirmativa, mas que a pessoa simplesmente necessita trabalhar mais duro, obter boas notas e fazer o necessário para obter os fundos para pagar a matrícula. A lógica neoliberal nos dissuade de pensar na solução mais simples, que é a educação gratuita. 

Estou pensando no fato de que fomos conscientes da necessidade destas estratégias institucionais pelo menos desde 1935, mas é claro que antes, mas estou escolhendo 1935 porque esse foi o ano em que Du Bois publicou sua Reconstrução Negra. E a pergunta não era o que deviam fazer os negros individualmente, mas como reorganizar e reestruturar a sociedade posterior à escravidão para garantir a incorporação daqueles que haviam sido escravizados anteriormente. A sociedade não poderia continuar sendo a mesma, ou não deveria ter sido a mesma. O neoliberalismo resume a mudança ao nível individual. Pede ao indivíduo que se adapte às condições do capitalismo, às condições do racismo.

Queria lhe perguntar, Angela Davis, sobre os monumentos de racistas, colonizadores, confederados, que continuam caindo nos Estados Unidos e em todo o mundo. Você acreditava que alguma vez veria isso? Pense em Bree Newsome depois do horror na Igreja Madre Emanuel em Charleston, Carolina do Sul, que sacudiu o mastro da bandeira nos terrenos da Legislatura da Carolina do Sul e derrubou a bandeira confederada e tornaram a colocá-la. O que acontece com o que estamos vendo hoje? 

É claro que  Bree Newsome foi um pioneiro maravilhoso. E creio que é importante vincular esta tendência com a campanha na África do Sul, Rhodes Must Fall. E é claro que creio que isto reflete a medida em que estamos chamados a refletir profundamente sobre o papel dos racismos históricos que nos tem levado ao ponto em que estamos hoje. 

O racismo deveria ter sido confrontado imediatamente depois do fim da escravidão. Disso tratava a análise do Dr. Du Bois, no tanto em termos de “Bem, o que vamos fazer com estas pessoas pobres que foram escravizadas por tantas gerações”, mas, “como podemos reorganizar nossa sociedade para garantir a incorporação de pessoas previamente escravizadas?”

Agora se está dirigindo a atenção para os símbolos da escravidão, para os símbolos do colonialismo. E é claro que qualquer campanha contra o racismo neste país deve abordar, em primeiro lugar, as condições dos povos indígenas. Creio que é importante que estejamos vendo estas manifestações, mas creio que ao mesmo tempo temos que reconhecer que não podemos simplesmente desfazer-nos da história. Temos que reconhecer o papel devastadoramente negativo que tem desempenhado a história ao traçar a trajetória dos Estados Unidos da América. Portanto, creio que estes ataques às estátuas representam uma tentativa de começar a pensar no que temos que fazer para derrubar as instituições e voltar a visualizá-las, reorganizá-las, criar instituições que possam atender as necessidades de todas as pessoas. 

E o que você acha que se deveria fazer com as estátuas, por exemplo, dos Pais Fundadores como George Washington e Thomas Jefferson?

Bem, você já sabe que os museus podem desempenhar um papel educativo importante. E não creio que devamos desfazer-nos de todos os vestígios do passado, mas temos que descobrir o contexto dentro do qual as pessoas possam entender a natureza da história dos Estados Unidos e o papel que o racismo, o capitalismo e a concepção hétero patriarcal têm desempenhado para forjar isso. 

Você pode falar sobre racismo e capitalismo? Frequentemente você escreve e fala sobre como estão intimamente conectados. E fale sobre um mundo que você imagina. 

Sim, o racismo está integralmente vinculado ao capitalismo. E creio que é um erro supor que podemos combater o racismo deixando o capitalismo em seu lugar. Como Cedric Robinson assinalou em seu livro “o Marxismo negro” o capitalismo é capitalismo racial. E, evidentemente Marx assinalou o que chamou de acumulação primitiva, o capital que aparece do nada. O capital original foi proporcionado pelo trabalho dos escravos. A revolução industrial, que girou em torno da produção de capital, foi habilitada pelo trabalho escravo nos Estados Unidos. Então, eu estou convencida que a erradicação definitiva do racismo vai requerer que avancemos para uma organização mais socialista de nossas economias, de nossas outras instituições. Creio que temos um longo caminho a percorrer antes de poder começar a falar sobre um sistema econômico que não se baseie na exploração e na super exploração dos negros, latinos e outras populações discriminadas.

Mas eu creio que agora temos os meios conceituais para gerar debates, debates populares, sobre o capitalismo. Occupy nos deu uma nova linguagem. A noção do complexo industrial penitenciário requer que compreendamos a globalização do capitalismo. A consciência anticapitalista nos ajuda a compreender a situação dos imigrantes, aqueles que o muro que foi criado pelo ocupante atual proibiu de ingressar aos Estados Unidos. Estas condições têm sido criadas pelo capitalismo global. E creio que este é um período durante o qual devemos começar esse processo de educação popular que permitirá com que as pessoas compreendam as interconexões do racismo o patriarcado heterossexual, o capitalismo. 

Angela, você acredita que necessitamos uma comissão da verdade e reconciliação aqui neste país?

Essa poderia ser uma forma de começar, mas sei que vamos necessitar muito mais que a verdade e a reconciliação. Mas certamente necessitamos a verdade. Não estou segura de quão pronto surgirá a reconciliação. Mas creio que toda a noção de verdade e reconciliação nos permite pensar de maneira diferente sobre o sistema legal e penal. Nos permite imaginar uma forma de justiça que não se baseie na vingança, uma forma de justiça que não seja retributiva. Creio que essas ideias podem nos ajudar a começar a imaginar novas formas de estruturar nossa instituições, não estruturar a prisão, porque o ponto é que temos que abolir essa instituição para começar a imaginar novas formas de abordar as condições que conduzem ao encarceramento em massa, que conduzem a tragédias tão horrenda como o assassinato do George Floyd.

Continuando nossa discussão com a lendária acadêmica e ativista Angela Davis, falei com ela no início de junho, uma semana antes de que recebesse o Prêmio Fred L. Shuttlesworth do Instituto de Direitos Civis de Birmingham, sua cidade natal no Alabama. O instituto chegou aos titulares internacionais no ano passado quando o instituto inicialmente rescindiu a prêmio devido ao apoio de Angela Davis aos palestinos Depois do protesto, o instituto revogou sua decisão e Angela Davis recebeu finalmente o prêmio em 19 de junho desde ano. Eu lhe perguntei sobre a importância do que aconteceu. 

Muita coisa aconteceu nos últimos tempos, inclusive no contexto do Instituto de Direitos Civis de Birmingham. Foi completamente reorganizado, inclusive sua diretoria. Estiveram envolvidos em conversações com a comunidade. É claro que, como sabem, o prefeito de Birmingham ameaçava retirar os fundos do instituto. Houve um levante generalizado na comunidade negra. 

E, você já sabe, embora no início me surpreendeu que me oferecessem esse prêmio; e depois o rescindiram; agora percebo que foi um momento importante, porque estimulou as pessoas a pensar no significado dos direitos humanos e por que os palestinos poderiam ser excluídos do processo de trabalhar pelos direitos humanos. Os ativistas palestinos têm apoiado durante muito tempo a luta dos negros contra o racismo. Quando estava na prisão, a solidariedade proveniente da Palestina foi uma grande fonte de coragem para mim. Em Ferguson, os palestinos foram os primeiros a expressar solidariedade internacional. E houve esta conexão muito importante entre as duas lutas durante muitas décadas, pelo que estarei muito feliz em receber o prêmio que agora representa uma recolocação da posição bastante atrasada assumida pelo instituto. 

Falando sobre o que está acontecendo na Cisjordânia neste momento e sobretudo pelo tema da solidariedade internacional, na resposta global ao assassinato do George Floyd. Na Cisjordânia ocupada, os manifestantes denunciaram o assassinato de Floyd e o recente assassinato de Iyad el-Hallak, um estudante palestino com necessidades especiais de 32 anos que foi assassinado a tiros pelas forças israelenses na Jerusalém Oriental ocupada. Segundo se informa, ele estava cantando “As vidas dos negros importam” e “As vidas dos palestinos importam” quando a polícia israelense disparou contra ele, alegando que estava armado. Estes enlaces que estamos vendo, não apenas na Palestino e nos Estados Unidos , mas em todo o mundo, um tipo de resposta global, as dezenas de milhares de pessoas que marcharam na Espanha, que marcharam na Inglaterra, em Berlim, em Munique, em todo o mundo, já que isso parece um acordo e fazem demandas em seus próprios países, não só em solidariedade com o que sucede nos Estados Unidos. E depois quero lhe perguntar sobre as eleições estadunidenses de novembro. 

Sim. Os ativistas palestinos apoiaram durante muito tempo a luta dos negros contra o racismo, como disse. E espero que os jovens ativistas de hoje reconheçam a importância da solidariedade palestina para a causa negra, e que reconheçam que temos também uma profunda responsabilidade de apoiar as lutas palestinas. 

Creio que também é importante para nós olhar na direção do Brasil, cujo líder político atual compete com nosso líder político atual de muitas maneiras perigosas, diria. Se acreditamos que temos um problema com a violência policial racista nos Estados Unidos, olhem para o Brasil. Marielle Franco foi assassinado porque estava desafiando a militarização da polícia e a violência racista desatada ali. Creio que 4.000 pessoas foram assassinadas pela polícia no Brasil só no ano passado. 

É claro que o presidente do Brasil é um aliado próximo ao presidente Trump. Mas, quero chegar às eleições. Quando eu a entrevistei em 2016, você me disse que não apoiaria nenhum dos candidatos do partido principal nesse momento. O que pensa hoje para 2020?

Bem, minha posição realmente não mudou. Não vou apoiar nenhum dos principais candidatos. Mas creio que temos que participar nas eleições. Isso não quer dizer que não votarei pelo candidato democrata. O que digo é que no nosso sistema eleitoral tal como existe, nenhum dos partidos representa o futuro que necessitamos para este país. Ambos os partidos permanecem conectados ao capitalismo corporativo. Mas as eleições não serão centralizadas só em quem liderará o país para um futuro melhor, mas em como podemos apoiar a nós mesmos e nossa própria capacidade para continuar organizando e pressionar aqueles que estão no poder. E não creio que haja uma pergunta sobre que candidato permitiria que esse processo se desenvolva. 

Assim que creio que teremos que traduzir parte da paixão que tem caracterizado estas manifestações no trabalho dentro do âmbito eleitoral, reconhecendo que esse espaço não é o melhor lugar para a expressão da política radical. Mas se queremos continuar com esse trabalho, certamente necessitamos uma pessoa no cargo que seja mais suscetível à nossa pressão massiva. E para mim, o único que representa isso é alguém como Joe Biden. Mas temos que persuadir as pessoas para que saiam e votem para garantir que o atual ocupante da Casa Branca seja expulso para sempre. 

Fonte: Democracy Now


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Amy Goodman

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