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EUA não têm aliados, não têm amigos, só tem interesses econômicos, diz Pérez Esquivel

"Os seres humanos, os povos, as culturas, temos que parar e ser protagonistas e construtores de nossa própria vida e de nossa própria história", diz Nobel da Paz
Carlos Aznárez
Resumen LatinoAmericano
Buenos Aires

Tradução:

É Prêmio Nobel da Paz e um enorme lutador pelos direitos humanos, mas também um pensador lúcido e valente. Algo tão necessário para este difícil momento em que a crise civilizatória põe o mundo contra as cordas.

Desde sua militância mais consequente ao serviço dos povos, Pérez Esquivel integra com Norita Cortiñas e numerosas personalidades a Autoconvocação pela Auditoria e Suspensão do pagamento da dívida ilegítima e odiosa que afronta o país.

Desde esse posto de combate, ambos também estarão no dia 13 celebrando um Julgamento Ético à dívida. Com Pérez Esquivel falamos e desfrutamos de seus ensinamento e da sua coerência

"Os seres humanos, os povos, as culturas, temos que parar e ser protagonistas e construtores de nossa própria vida e de nossa própria história", diz Nobel da Paz

Wikipédia / Marcello Casal Jr. / Agência Brasil
O ganhador do Prêmio Nobel da Paz, o escritor Adolfo Pérez Esquivel

Confira a entrevista

Carlos Aznárez – Adolfo, conte-nos o motivo desta carta que a Autoconvocação pela realização de um Auditoria e a suspensão do pagamento do dívida externa dirigiu ao Presidente Alberto Fernández e ao Presidente do Banco Central.

Adolfo Pérez Esquivel – Isto não é um pedido novo, tem mais de 30 anos, quando em seu momento o apresentara Alejandro Olmos. Desde essa época se vinha trabalhando sobre a ilegitimidade da dívida e pedindo uma investigação.

Até agora, nenhum dos governos se decidiu a fazer uma auditoria; as razões eu desconheço. Mas houve um julgamento, realizado pelo Juiz (Jorge) Ballestero, onde diz que a dívida é ilegítima, é impagável. No entanto, todos os governos trataram de negociar a dívida e isso é grave. 

Ao governo atual lhe exigimos o mesmo, fazer uma auditoria para determinar a dívida legítima e a ilegítima. O que for legítimo há que pagar e o ilegítimo não pode ser pago.

Na América Latina, o único país que tomou essa decisão, de fazer uma auditoria, foi o Equador (o resto dos países guardaram silencio sobre isso). O presidente do Equador (Rafael Correa) decidiu fazê-la e a realizou e esse grupo foi encabeçado por Alejandro Olmos Gaona, o filho de Alejandro Olmos.

Hoje estamos nesta situação, que é como colocava Eduardo Galeano; “quanto mais pagamos, mais devemos e menos temos”. São os novos mecanismos e a forma de escravidão e submissão dos povos. E os países latino-americanos, inclusive aqueles países que naqueles momentos tinham governos progressistas, não se decidiram a fazer uma auditoria e uma frente comum latino-americana para o não pagamento da dívida. O não pagamento ilegítimo da dívida. Nenhum dos países assumiu isso. Poderia falar do Lula, do Equador, da Venezuela. 

A visão de Fidel

Quem propôs isso do não pagamento da dívida foi Fidel em Havana, quando convocou pessoas de diferentes pensamentos políticos, inclusive de direita, para analisar o que acontece com a dívida externa. E aí se propõe também o jubileu que está nos livros sagrados, não no Antigo Testamento, que diz que a cada cinquenta anos não há que pagar mais as dívidas e tem que começar outra vez do zero.

Mas na época atual, onde o capital financeiro domina o cenário mundial ninguém quer saber de nada. O capitalismo, o neoliberalismo, a única coisa que querem é cobrar.

Privilegiam o capital financeiro sobre a vida dos povos. E creio que isto nos está levando a esta situação, porque o pagamento da dívida traz como consequência a pobreza, a miséria, a falta de desenvolvimento dos povos. 

A dívida com os povos

Há uma dívida que é muito mais importante que é a dívida interna, a dívida com os povos. Ou seja, os povos o que necessitam é ter os meios e recursos para sua vida e desenvolvimento. Creio que estamos diante de modelos totalmente opostos e o capitalismo não vai se humanizar. Não há forma de humanizar o capitalismo.

Primeiro, porque o capitalismo nasceu sem coração, sem sentimento, não lhe interessa a vida dos povos. O governo atual de Alberto Fernández, está sendo submetido a fortes pressões para que pague, sem levar em conta a situação que vive a humanidade e que vive nosso país, a Argentina.

Não lhes interessa nem o coronavírus, nem a grave situação, a debacle econômica pela qual passa hoje o mundo, porque eles são os que querem manter o poder e a submissão dos povos. E para isso fazem de tudo.

Há informes da Comissão Interamericana que recomenda aos Estados membros que considerem suspender o pagamento das dívidas, porque há que privilegiar a vida. 

O Presidente Alberto Fernández, o disse com muita clareza, uma economia se pode resolver, se pode ver como enfrentá-la, mas a vida não. E há que pôr todo o esforço em proteger a vida, e não qualquer forma de vida, não sobreviver, mas sim viver. E esse viver é fundamental. 

Este governo enuncia essa proposta, a da vida sobre a economia, mas por outro lado nos surpreende com o tema de que continua pagando a dívida neste momento, precisamente neste momento. Muita gente diz, nos bairros humildes, principalmente, onde há fome, onde a pandemia é a fome: “mas por que paga a dívida se esse dinheiro podia ser destinado a tratar de morigerar esta situação tão difícil que estamos vivendo?”

Há vários tipos de pandemia, esta pandemia do coronavírus, que não vai ser fácil desterrá-la, mas também está a pandemia do medo. A pandemia do medo tem atacado a muitos governos, que pensam que se não pagarem, se não há negociações, vão vir os julgamentos.

Porque Macri, por exemplo, condicionou os créditos da dívida aos Tribunais dos Estados Unidos. Jamais ganhamos um só julgamento nos Tribunais dos Estados Unidos. Porque os Tribunais estão submetidos a esta pandemia da dominação.

Há países que dizem não, temos que negociar, temos que ver, temos que ser aliados dos Estados Unidos. Veja bem: Os Estados Unidos não têm aliados. Não têm amigos. O único que têm os Estados Unidos são os interesses econômicos.

Podemos ver isso historicamente; em nenhum momento os Estados Unidos respeitaram países. Ou seja, submeteram países aos Estados Unidos e trabalharam para os Estados Unidos.

Vou dar um exemplo durante a ditadura. A ditadura queria estar de acordo com a política dos Estados Unidos e se transformou no gendarme, porque a política de desaparecimento de pessoas, os métodos de desaparecimento de pessoas e de crianças, foram todos instrumentados através da doutrina da segurança nacional das academias militares dos Estados Unidos.

Quando Galtieri vai aos Estados Unidos, em um momento ele diz: “nos traíram”. Quem o traiu? Traiu a si mesmo, esperando que os Estados Unidos e o TIAR (Tratado de Ajuda Recíproca) funcionasse e não funcionou porque os Estados Unidos não queriam que funcionasse. E a quem apoiou os Estados Unidos? ao seu aliado natural, sua mãe, Grã Bretanha.

Bem, dou esse exemplo, mas há muitíssimos outros. Os únicos países que quiseram apoiar a Argentina, apesar da ditadura militar, um foi o Peru, com Belaúnde Terry e o outro foi Cuba, o resto dos países ficaram em silêncio. O TIAR, esse tratado de ajuda recíproca não existe, salvo para os Estados Unidos. Então há que fazer uma frente. 

A unidade nossa-americana

Houve gente aqui de um pensamento latino-americano muito forte, Fidel, Hugo Chávez…Temos que resgatar a figura de Hugo Chávez por sua visão latino-americana Bolivariana, o caso de Evo Morales na Bolívia, onde começa a nacionalizar. 

Nenhum país tem soberania se não tem os recursos do povo, petróleo e meios de comunicação, e Evo conseguiu levantar a economia do país pluricultural linguístico através de outra forma. E por isso, os Estados Unidos sempre estiveram conspirando para derrotar Evo Morales, como tentou também com Hugo e agora com Maduro.

Então, a única forma de sair disso é que os países latino-americanos possam se unir. E hoje isto não é possível, porque inclusive Alberto Fernández disse que o único aliado que tem no continente é López Obrador, no México. No resto dos países há uma submissão cultural. Por isso sempre falo da rebelião cultural. 

A necessidade da rebelião

Isto não vai se resolver, o caso da dívida, a vida dos povos, através dos governos. Salvo governos que sejam conscientes. Veja, por que não deixaram Lula voltar a ser Presidente e armaram todos essa situação com o derrocamento de Dilma Rousseff? Porque era simplesmente para tirar Lula do meio. Isto é grave. Porque estas democracias que vivemos são democracias condicionadas e restringidas.

Então, o pagamento da dívida é um dos grandes mecanismos de dominação de nossos povos por isso se necessita a rebelião, a rebelião cultural, fundamentalmente. Porque se não há rebelião cultural não podemos mudar nada disso.

O papel dos meios

Outro tema são os meios de comunicação, a serviço de quem estão. Muitos são sinistros porque foram utilizados para derrocar Lula, foram utilizados para derrocar Dilma Rousseff; eles utilizam os grande meios de comunicação mundiais porque são parte do sistema de dominação. Então, é preciso mudar isto.

Me alegro muitíssimo porque temos acompanhado desde o início a TeleSur. Falamos muito disso com Hugo Chávez, lástima que Hugo Chávez se foi antes do tempo, porque ele queria o Banco do Sul. E até agora não se pode concretizar isso, porque há uma dominação cultural profunda e é preciso despertar.

Os povos, quando se põem de pé têm capacidade de mudança. Por isso estamos pedindo reuniões a Alberto Fernández, ao Banco Central. Para dizer: parem, façam uma auditoria da dívida, é fundamental saber qual é a dívida legítima e a ilegítima.

Os povos quando se põem em pé, têm que poder dizer basta. Porque senão vamos ter, depois desta pandemia, mais fome. 

A pandemia da fome

A próxima pandemia é a da fome e temos que recuperar a soberania alimentar. A dívida tem que ver com tudo isso, não é só um problema econômico. É um problema social e político. Vou mencionar, sempre o tenho presente, Josué de Castro, que foi esse grande pensador, um médico, mas que toma consciência e diz: a fome é a manifestação biológica de um doença sociológica.

É incrível. Hoje as crianças morrem de fome e de doenças evitáveis. O que vão fazer os Estados Unidos com milhões de desocupados. Estou falando da grande potência que domina o mundo. O que vai acontecer com toda essa gente. E essa gente tem que estar na rebelião social, cultural, política e espiritual.

O Papa Francisco quando coloca a Laudato si, a proteção da casa comum, está advertindo sobre tudo isto; não é só um problema ecológico, é um problema social e político o que hoje estamos vivendo.

E a dívida externa impede que os povos tenham os recursos para sua vida e desenvolvimento. É isto o que temos que pensar, temos que mudar o pensamento cartesiano pelo pensamento holístico, de saber que tudo é um processo, que temos que encontrar saídas humanas para a vida de nossos povos. 

Você falava da necessidade de combater essa crise e também mencionou Fidel, um estadista que pensava para o futuro, olhava cem anos adiante. Fidel falava de soberania alimentar, de crise civilizatória e falava de um conceito incrível que era: ou esta humanidade se dá conta de que vamos todos no mesmo barco e nós temos que ajudar-nos entre todos ou ele afunda e perdemos todos. Não é só um problema de revoluções, é um problema de humanidade. 

Há grandes pensadores na América Latina, que têm claro o caminho a seguir. Primeiro, sair desse poço em que estamos submersos, o da dívida externa, da submissão. Por isso, quando Fidel nos convoca em Havana, em 1985, já advertia: olhem, se não se unem, a dívida externa vai fagocitar os bens e recursos dos povos.

Com Fidel falamos muito, inclusive fomos à zona da safra, e lhe conto algo: quando vi a maquinaria que Fidel tinha ali, era do ano 25 ou 29, eu lhe pergunto: “diga-me uma coisa Fidel, como puseram em funcionamento toda essa maquinaria que é peça de museu?” e Fidel me olha e me diz: “Veja, todo este funcionamento é graças aos Estados Unidos. Como, graças aos Estados Unidos? Veja, se os Estados Unidos não nos houvessem bloqueado, nós não teríamos desenvolvido a imaginação e a criatividade.

Você vai ver pelas ruas carros que são dos anos 20,25, 30 e 35 e estão todos funcionando, é a criatividade do povo”. Mas Fidel nos marcava muito, porque Fidel não era só um intelectual, era um sábio, era um homem que via além do seu nariz. Mas recordo uma reunião que tivemos em Havana, já Fidel não podia andar, tinham que ajudá-lo; estávamos aí com Atilio Borón e com Stella Calloni, e Fidel nos deu durante quatro horas uma aula sobre o fracking, o que era o fracking e os danos que isso ia causar ao meio ambiente.

Hoje temos isso aqui na Argentina, mas temos no nível mundial. A questão do meio ambiente, a destruição da floresta, toda esta barbaridade que estão fazendo de destruir flora e fauna. 

Recuperar a casa comum

Temos que voltar a recuperar o equilíbrio da Mãe Terra com a necessidade do Ser Humano. Porque o coronavírus vem da quebra do equilíbrio com a Mãe Terra. Há estudos científicos que dizem que se não restabelecermos o equilíbrio com a Mãe Terra estamos perdidos.

Como diz o Papa Francisco, proteger a casa comum, isto é o que temos que fazer. Todos esses capitais, todas essas economias já não servem mais. Temos que buscar a economia social, a economia que tenha um sentido humanitário e não de exploração.

A soberania alimentar não vem das grandes corporações, a soberania alimentar vem do pequeno e médio produtor rural e é preciso dar-lhes os meios para poder estender a economia social. Não pode ser uma economia de exploração. 

A sabedoria maia

Eu tive muitas experiência na América Latina, inclusive com os irmãos Maias, em Chiapas, em San Cristóbal de Las Casas, onde fui vê-los muitas vezes. Em um momento fui a um encontro sobre “desenvolvimento e desarme”. Veja que se investe muito mais no armamentismo que na vida dos povos. E isso é fatal.

Então, ali me encontro com irmãos Maias e eles me dizem: outra vez por aqui, vamos alojar você em uma de nossas casas e vamos pôr uma cama. E eu lhes digo: Olhem, venho para um encontro sobre desenvolvimento e democracia. Lembro que nesse encontro estava Beverly Keene, e lhes digo: para vocês o que é desenvolvimento? Abriram bem os olhos e me perguntaram: Vocês, o que querem desenvolver? ter mais computadores, mais dinheiro, mais carros, mais celulares, não, não…

Olhe que nós conhecemos há muitíssimos anos como pensam vocês o desenvolvimento. Em nosso idioma não existe a palavra desenvolvimento. Não, não… a palavra desenvolvimento é uma invenção destas sociedades que se dizem civilizadas. O que vocês pensam? Nós não temos a palavra desenvolvimento, mas sim a palavra equilíbrio. Equilíbrio com nós mesmos, equilíbrio com os demais, equilíbrio com nossa comunidade, com nossos povos, equilíbrio com a Mãe Terra.

Nós somos parte da Mãe Terra, não somos os donos. Equilíbrio com o cosmos, porque somos parte do cosmos, somos filhos e filhas das estrelas. Equilíbrio com o cosmo e com Deus, esse ser supremo, porque a algum lugar nós pertencemos. Estamos em um processo de evolução, não somos os donos do universo. Equilíbrio com Deus. 

A violência vem quando se quebra o equilíbrio do ser humano com a vida, com a Mãe Terra. É preciso recuperar o equilíbrio e para isso necessitamos repensar quem somos, o que queremos, e para onde vamos. É o desafio metafísico de todos os tempos.

Temos que encontrar respostas aí. E encontrar-nos com nós mesmos; não à voragem a que nos submeteram, das tecnologias e do tempo. Hoje temos que usar as tecnologias, mas ao serviço do ser humano e não do ser humano dominado pelas tecnologias. 

Os seres humanos, os povos, as culturas, temos que parar e ser protagonistas e construtores de nossa própria vida e de nossa própria história. Nós somos os gestores da história; disso vai depender a história que vamos deixar para nossos filhos e para os filhos de nossos filhos. E não queremos deixar a eles um mundo de escravos.

Por isso é tão importante a mensagem que nos deixaram Fidel, Hugo Chávez, José Martí, os libertadores de nosso continente; para isto necessitamos, volto a insistir, ser rebeldes; se nos inclinamos diante da injustiça é porque estamos dominados. Tenho a esperança de que vamos conseguir.

Um forte abraço e não deixemos de sorrir à vida. Mesmo que o abraço seja virtual.

Carlos Aznárez, Resumo Latino-americano


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Carlos Aznárez

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