No início de abril, a escritora indiana Arundhati Roy escreveu o que pode ser uma das reflexões mais provocadoras sobre a pandemia:
Historicamente, as pandemias forçaram os seres humanos a romper com o passado e imaginar seu mundo de novo. Esta não é diferente. É uma porta um mundo e o próximo.
Podemos escolher passar por ela arrastando as carcaças de nossos preconceitos e ódios, nossa avareza, nossos bancos de dados e ideias mortas, nosos rios mortos e os céus fumacentos que nos acompanham. Ou podemos atravessá-la leves, com pouca bagagem, prontos para imaginar outro mundo. E prontos para lutar por ele.
Há poucos dias me encontrei, por meio de uma combinação de rede social e telefone celular, com outro defensor destacado de um mundo novo. Noam Chomsky é liguista, filósofo, pesquisador da cognição, crítico social e uma espécie de padrinho intelectual da esquerda. Arundhati Roy expressou o sentimento de muitos quando escreveu, há anos: “É raro o dia em que não me vejo desejando – por uma razão ou outra – Chomsky Zindabad, longa vida a Chomsky!
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"Noam Chomsky é liguista, filósofo, pesquisador da cognição, crítico social e uma espécie de padrinho intelectual da esquerda."
Aos 91, Chomsky mostra poucos sinais de renunciar a viver longamente. É tão incisivo, curioso e influente como sempre. Em mais de uma hora de conversa, falamos sobre tudo – das escolhas políticas criadas pela pandemia ao poder do Black Lives Matter, da plataforma supreendentemente progressista de Joe Biden a descobrir amor por um país que se critica incessantemente.
Arundhati Roy – Conte um pouco sobre como você tem vivido esse momento pandêmico, que tem sido bastante difícil para todos na vida pessoal, mas que também é uma crise política — e, potencialmente, para muitas pessoas, um momento de abertura na forma como pensamos esses sistemas.
Noam Chomsky – Tem sido atarefado. Estou isolado, não saio e não recebo visitas. Mas estou constantemente ocupado com entrevistas, com pedidos muito além do que posso aceitar. Muito mais ocupado do que me lembro já ter estado.
Mas você está certo. A pandemia oferece a oportunidade de fazermos escolhas sobre que tipo de mundo vai surgir a partir dela. Escolhas muito distintas. Aqueles que criaram a crise e submeteram a população global a 40 anos de ataque neoliberal estão trabalhando muito, incansavelmente, para garantir que o que for surgir seja uma versão mais dura daquilo que criou este sistema. Maior vigilância, maior controle.
E há outras forças, que vão desde o que você vê nas ruas nos Estados Unidos ao movimento ambientalista e ao DiEM25 na Europa. Muitas outras forças populares estão tentando caminhar para um mundo muito diferente. É uma espécie de luta de classes em escala global.
Por causa dessas coisas graves que você descreve, há uma discussão dentro da esquerda norte-americana sobre se é importante, neste momento, parar de falar de temas usuais e apenas unir forças para livrar-nos de Trump. E, por outro lado,os que argumentam que este é exatamente o momento de levantar todos os outros tipos de questões e sermos duros com Biden. Como você enxerga esse debate?
Bem, há uma posição muito tradicional da esquerda, que, infelizmente, foi praticamente esquecida, mas é aquela que acho que devemos seguir. É a posição de que a verdadeira política está no ativismo constante. É bem diferente da posição do establishment, que diz que política significa foco (quase que exclusivamente) na extravagância quadrienal chamada eleição — e depois ir para casa, deixando que os “líderes” assumam o controle.
A posição de esquerda sempre foi: você age politicamente o tempo todo e, de vez em quando, ocorre algo chamado eleições. Isso vai afastá-lo da política real por cerca de 10 ou 15 minutos. E depois você volta a trabalhar.
Neste momento, a diferença entre os candidatos nos EUA é abissal. Nunca houve um contraste maior. Deveria ser óbvio para qualquer ser humano que não viva debaixo de uma rocha. Portanto, a posição tradicional de esquerda diz: “Separe esses 15 minutos, aperte o botão e volte ao trabalho político.”
Porém, a esquerda ativista não fez a escolha que você menciona na pergunta. Faz as duas ao mesmo tempo.
Veja as posições da campanha de Biden. Mais à esquerda do que qualquer outro candidato democrata do qual se tenha memória, em questões como a mudança climática. Já é muito melhor do que qualquer um que o precedeu. Não é porque Biden viveu uma transformação pessoal ou porque os democratas tiveram um grande insight — mas porque estão sendo pressionados por ativistas que surgiram do movimento Sanders e outros. O programa climático, um compromisso de US$ 2 trilhões para lidar com a ameaça extrema de catástrofe ambiental, foi escrito em grande parte pelo Movimento Sunrise e fortemente endossado pelos principais ativistas da mudança climática, aqueles que conseguiram colocar o New Deal Verde na agenda legislativa. Isso é política real.
É uma posição muito interessante vinda de você. Seu apoio a Biden é mais do que apenas relutância. Você realmente parece pensar que a plataforma é surpreendentemente boa, considerando quem ele é e onde estamos.
Isto não é apoio ao Biden. É apoio aos ativistas que trabalharam incessantemente, criando o pano de fundo dentro do partido em que ocorreram as mudanças, e que acompanharam Sanders para entrar de verdade na campanha e influenciá-la. Meu apoio é a eles. Apoio à política real.
A posição de esquerda é de raramente apoiar qualquer pessoa. Você vota contra o pior. Você mantém a pressão e o ativismo.
Dada essa mobilização popular da qual você fala, quero perguntar sobre uma liderança. Eu me questiono se você considera que uma figura como a deputada Alexandria Ocasio-Cortez pode se tornar presidente neste país.
Bom, se dez anos atrás você tivesse me perguntado se alguém como Bernie Sanders poderia ser a figura política mais popular do país, eu teria chamado você de louco. Mas, de fato, isso aconteceu em 2016 e Bernie continua criando um movimento significativo. Existem possibilidades reais. Acho que se você olhasse para os Estados Unidos na década de 1920 e perguntasse: “Será que algum dia vai haver um movimento de trabalhadores?” você também teria parecido louco. Como poderia haver? Ele tinha sido esmagado.
Mas isso mudou. A vida humana não é previsível. Depende de escolhas e vontade, que são imprevisíveis. Agora, por exemplo, estamos no processo de formação de uma Internacional Progressista. Baseada no movimento Sanders nos EUA e no movimento DiEM25 de Yanis Varoufakis na Europa, que é um movimento europeu transnacional que busca preservar e fortalecer o que faz sentido na União Européia e superar suas gravíssimas falhas.
Se você me perguntasse agora se há alguma perspectiva, seria muito difícil responder. Se você observar de forma objetiva, verá onde o poder está concentrado no mundo. A Internacional Progressista é composta pelas forças que mencionei, e ao lado há uma “internacional reacionária” sendo criada na Casa Branca com Trump à frente. Esses quase-ditadores como Bolsonaro — um clone de Trump — fazem parte disso. Os ditadores do Oriente Médio, famílias ditadoras dos estados do Golfo. O Egito de Sisi, a pior ditadura da história egípcia. Israel, que está se movendo tanto para a direita que você mal consegue ver, são parte disso. A Índia de Modi que, em seu esforço por destruir a democracia indiana, transformou-a em uma quase-ditadura hindu fundamentalista. Orban na Hungria.
Ao compararmos essas forças pode surgir uma ideia do tipo: “Nessas condições, não pode haver nem luta?”. Mas esse é o cálculo errado. Existem pessoas, e elas fazem a diferença.
Podemos revisitar o meu filósofo favorito, David Hume. Seu livro Of the First Principles of Government [“Dos Primeiros Princípios do Governo”], um tratado político do final do século 18, começa dizendo que devemos entender que o poder está nas mãos dos governados. Aqueles que são governados são os que têm o poder. Qualquer que seja o tipo de Estado, militarista ou mais democrático, como a Inglaterra estava se tornando. Os chefes governam apenas por consentimento. E se esse consentimento for retirado, eles perdem. Seu poder é muito frágil.
Devo dizer que os atuais mestres do universo, como eles modestamente se referem a si mesmos, entenderam isso muito bem. Todo mês de janeiro, em Davos, a estação de esqui da Suíça, os grandes e poderosos se reúnem para esquiar, se divertir e se parabenizar por serem maravilhosos. Os principais executivos-chefes, figuras da mídia e figuras do entretenimento, e assim por diante.
Mas este ano foi diferente. O tema era: Temos problemas. Os camponeses estão chegando com suas forquilhas. Nas palavras que eles preferem, estamos enfrentando “riscos de reputação”. Eles estão vindo atrás de nós. Nosso controle é frágil. Temos que passar uma mensagem diferente. Portanto, a mensagem em Davos foi: Sim, percebemos que cometemos erros durante todo esse período neoliberal. Vocês, a população em geral, sofreu. Nós entendemos isso. Estamos superando nossos erros. Agora vamos nos comprometer com vocês, as partes interessadas e as comunidades trabalhadoras. Estamos realmente comprometidos com o seu bem-estar. Estamos nos tornando profundamente humanitários. Lamentamos nossos erros. Vocês podes botar fé em nós. Nós assumiremos a responsabilidade e trabalharemos para seu benefício.
(…)
Como a esquerda trabalhar melhor em termos de comuicação? Tanto pela linguagem que usa qunto pelos apelos políticos que faz, para alcançar um grupo mais amplo de pessoas que não são engajadas? Com frequência, parece que os republicanos têm muito talento em fazer as pessoas votarem em coisas que não serão boas para elas, enquanto os democratas precisam se esforçar muito para tentar fazer as pessoas votarem em coisas que seriam muito, muito boas para elas.
Pois bem, o movimento de Sanders teve um sucesso notável. É algo que rompeu com mais de 100 anos de história política americana. Fazer com que um candidato chegasse próximo de ser escolhido para disputar a Casa Branca, sem nenhum apoio da mídia, nem de grandes doadores ou do setor corporativo. Nunca antes aconteceu nada parecido com isso. Poderia ir mais longe? Acho que sim.
Não pretendo fazer um grande alarido sobre o assunto, mas tenho sido um pouco crítico em relação a Sanders apresentar-se como um socialista. Ele não é socialista, em minha opinião. Ele é um democrata do New Deal. Um social-democrata moderado. Suas políticas não teriam surpreendido muito Eisenhower. Que suas posições sejam consideradas revolucionárias é um sinal da guinada para a direita, de ambos os partidos, durante o período neoliberal.
Qual é o sentido de se autodenominar socialista? Essa é uma palavra muito assustadora para os Estados Unidos. Os EUA são uma sociedade incomum. Em todos os outros países do mundo, um socialista é como um democrata. Alguém é socialista, tudo bem. Você pode ser comunista e ter espaço no sistema político. Os Estados Unidos são uma sociedade extrema, conduzida pelo mercado, com um conjunto de controles muito rígido. Portanto, palavras como socialista são assustadoras. É sinônimo de gulag. Comunista então, você nem pode falar.
Tudo bem, essas são realidades sobre os Estados Unidos. Devemos fazer algo a respeito. Mas você não vai mudar estes preconceitos no tempo de uma eleição, certo? Portanto, na minha opinião, essa é uma posição duvidosa.
(…)
Quando um democrata de centro, como Joe Biden, assume a plataforma de que você falou, mas começa a campanha dizendo que, com ele, nada mudaria muito para os plutocratas, você não acha que a proposição é falsa? Ou eles tem uma espécie de realismo cuidadoso?
Eu não estou muito interessado na personalidade dele. Não tenho nenhuma opinião sobre isso. Me interessa saber como as coisas são feitas. E a maneira como as coisas são feitas não ocorre porque Biden vai passar por uma conversão religiosa e, de repente, dizer: “Oh, realmente temos que trabalhar nas questões climáticas.” Isso não acontece. É provável que os democratas odeiem o programa, mas eles não têm escolha, porque sua base popular não está apenas exigindo isso, mas está trabalhando árdua e constantemente para forçá-los a fazê-lo. Isso é política. Não a personalidade dos líderes. Eu não sei o que passa na cabeça. E eu francamente não me importo.
Por causa da pandemia e das crises relacionadas a ela, as questões das quais você passou a vida falando estão, finalmente, em destaque no discurso público. Elas estão na política; elas estão no ativismo; elas são inevitáveis. Sei que provavelmente não é o tipo de pergunta de que você gosta, mas me pergunto como você pensa sobre seu legado — o que você acha que tentou fazer e em que ponto estamos?
Na verdade, eu não penso em um legado. Me interessam mais as pessoas que estão realizando coisas. A maior parte de seus nomes nunca será conhecida. Tenho certeza de que você não saberia me dizer, e eu não saberei mencionar a você os nomes dos garotos que entraram e se sentaram numa lanchonete de Greensboro [Referência a um episódio na luta antirracista dos EUA. Em julho de 1960, quatro jovens negros sentaram-se num balcão de lanchonete em quer sua presença não era permitida. Não foram atendidos e recusaram-se a sair. Sua atitude gerou uma série de protestos contra as leis discriminatórias, que terminariam revogadas poucoa anos depois (Nota da Tradução)]. São essas pessoas que levam as coisas adiante. Se existe um legado das pessoas que tentaram fazer o que estava ao seu alcance para estimular a transformação, é o legado deles. Não consigo lembrar o nome daqueles que mais respeito no mundo. Pessoas em campos de refugiados no Laos. Camponeses do sul da Colômbia, no esforço de evitar ataques paramilitares e se proteger de corporações que buscam destruir seu abastecimento de água com minas de ouro. Pessoas em áreas curdas na Turquia.
Vou te dar um exemplo. O auge da repressão turca aos curdos foi muito cruel. Foi a pior fase da década de 1990. Foi fortemente apoiado por Clinton. E ele praticamente despejava armas durante a pior parte da repressão. Aconteceu de eu estar lá no final desse conflito. Eu dei uma palestra.
Era proibido falar curdo. Era crime. Você podia desaparecer e nunca mais ser visto. Fui cauteloso ao falar para não despertar muita ira do pessoal da segurança.
Ao final da minha palestra, quatro crianças vieram, segurando um grande livro, e me deram. Era um dicionário curdo-turco. Eles queriam dizer: “Vamos continuar lutando”. Não sei o que aconteceu com eles. Mas são essas pessoas em qualquer parte do mundo que você pode realmente respeitar. Elas é que são importantes, para qualquer legado que venha a surgir.
Noam Chomsky, entrevistado por Anand Giridharadas, no The.Ink | Tradução por Simone Paz