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Panteras Negras modernos: conheça a NFAC, milícia negra que está fazendo barulho nos EUA

A coalizão defende que a comunidade negra deve estabelecer sua própria polícia, a fim de se proteger da segurança Estado e das milícias de supremacistas brancos
Ana Livia Esteves
Sputnik Brasil
Rio de Janeiro (RJ)

Tradução:

No início deste mês, protestos contra a morte do afro-americano Trayford Pellerin, assassinado por um policial na cidade norte-americana de Lafayette, contou com a participação de um grupo bastante diferente de manifestantes.

Cerca de 400 membros da milícia negra Not Fucking Around Coalition (NFAC) marcharam pela cidade portanto armas semiautomáticas.

Liderada pelo ex-candidato independente à presidência dos EUA, John Fitzgerald Johnson, a milícia defende que a comunidade negra deve estabelecer sua própria polícia, a fim de se proteger de forças de segurança do Estado e das milícias supremacistas brancas.

Nesse contexto, o grupo encoraja negros a fazerem valer seus direitos sob a Segunda Emenda à Constituição norte-americana, que garante o direito ao porte de armas por particulares.

“A questão da Segunda Emenda é central para membros de milícias [nos EUA]”, disse Amy Cooter, doutora em sociologia e professora da Universidade de Vanderbilt (EUA), à Sputnik Brasil. “Eles a consideram a base de seus direitos fundamentais.”

A questão do porte de armas é “um ingrediente muito importante para o mito fundador norte-americano”, explicou a socióloga.

Para Cooter, apesar da NFCA “fazer claramente o uso visual e simbólico das armas “, o grupo “se auto intitula uma coalizão, e não uma milícia”.

“Eles não parecem ter treinamento regular e privado para o uso de armamentos entre seus membros […] o que é considerado um elemento importante para a definição acadêmica de milícia”, disse Cooter.

No entanto, eles “usam as armas em locais públicos a fim de passar uma mensagem política”.

Em entrevista recente ao portal Complex, o líder da milícia, também conhecido como Grandmaster Jay, diz que ela é uma reação ao recrudescimento do racismo nos EUA.

“Ao que tudo indica, a NFAC é uma reação a grupos da direita que vêm se organizando nos últimos meses, especialmente aos grupos abertamente racistas que, por vezes, também andam armados”, notou Cooter.

Panteras Negras modernos?

À primeira vista, a atuação da NFAC lembra o lendário grupo Panteras Negras, que se destacou nas décadas de 60 e 70 na luta pelos direitos civis nos EUA.

“A ideia do uso das armas para os Panteras Negras era a legítima defesa no enfrentamento ao racismo”, disse a doutoranda em antropologia social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Jaqueline Conceição à Sputnik Brasil.

O intuito do grupo era “se defender tanto da polícia quanto das pessoas brancas, se valendo do direito ao porte de armas nos EUA”.

Comício dos Panteras Negras na cidade de Filadélfia, Estados Unidos,
em 6 de setembro de 1970

“Eles eram patriotas, como todo norte-americano, mas traziam para o debate a ideia de que não havia uma América para os negros”, explicou Conceição.

Segundo ela, existem várias vertentes dentro do movimento negro nos EUA: “Uma vertente propõe a saída dos negros dos EUA, outra propõe a formação de um Estado negro dentro dos EUA e uma terceira propõe uma sociedade para brancos e negros nos EUA.”

“O que os Panteras Negras propunham era uma sociedade na qual brancos e negros pudessem conviver dentro dos EUA […] a discussão era superar o racismo e criar condições de vida dignas para as pessoas negras”, disse Conceição.

Ao contrário dos Panteras Negras, a NFAC defende que, quando as condições forem atingidas, os negros possam emigrar dos EUA e construir um novo país para si próprios.

“Essa ideia está muito mais próxima do pensamento de Marcus Garvey, que é um líder anterior ao movimento dos Panteras Negras”, disse Conceição.

“Garvey pregava a construção de um Estado negro, com economia, sistema de educação e religião próprios e uma forma de vida apartada do modelo branco norte-americano.”

Segundo ela, “o pensamento de Garvey continua sendo repensado e replicado nos mais diversos movimentos negros nos EUA”.

“Um exemplo é o movimento que a [cantora norte-americana] Beyonce faz, de pensar em uma autonomia negra, criando empresas negras, no intuito de formar uma identidade negra”, explicou a professora.

Movimentos como a NFAC partem do mesmo pressuposto de que é necessário criar autonomia, mas “principalmente econômica e militar, que são as bases do próprio poder norte-americano”, disse Conceição.

Autonomia vs inclusão

De acordo com a professora, o debate no movimento negro norte-americano “gira em torno das ideias de autonomia e inclusão”.

A ideia de inclusão, presente em movimentos como os Panteras Negras, “é a de que você deve criar formas de colocar o diferente dentro do seu próprio regime, mas sem modificar o seu modo de vida para que o outro faça parte”.

“Do ponto de vista tático e filosófico, o Vida Negras Importam está mais próximo dos Panteras Negras” do que de movimentos como a NFAC, que enfatizam a ideia da autonomia.

“A autonomia, baseada na filosofia do Marcus Garvey, enfatiza que a comunidade negra possa criar uma forma de vida a partir dos seus próprios critérios […] para que se consiga ter uma forma de produção sem a dependência do outro, que no caso seria o homem branco nos EUA”, disse Conceição.

Uso de armas

De acordo com a Liga Antidifamação, os EUA contavam com mais de 500 milícias no ano de 2008.

Com a pandemia, a venda de armas no país aumentou. De acordo com dados do governo, mais de 12 milhões de armas foram vendidas até agora em 2020.

Segundo uma pesquisa realizada pela Fundação Nacional de Esportes de Tiro dos EUA, houve um aumento de 58% na venda de armas para cidadãos negros, o maior dentre todos os grupos étnicos norte-americanos.

“A tendência nas próximas décadas é de que a formação de milícias deve se fortalecer”, disse Conceição. “Isso nos EUA é mais relevante do que no Brasil, até porque eles têm o exemplo histórico dos Panteras Negras.”

“No Brasil temos uma comunidade negra fortemente armada nos morros, o que não há direcionamento político para o que fazer com esse armamento, que fica a serviço da disputa do mercado de drogas”, notou a professora.

Para ela, o uso de armas é temerário, “porque nunca sabemos aonde uma disputa armada pode levar e quais os reflexos práticos que isso pode acarretar”.

“A questão racional é que, se pensarmos em políticas de inclusão, de educação, acessibilidade, representatividade, a gente vai conseguir combater o racismo. Mas já estamos nessa luta há mais de 150 anos, desde a abolição”, lamentou Conceição.

Por isso, ela acredita que o uso de armas no contexto da luta racial deve se fortalecer nos últimos anos.

“Esse é um movimento que vai tensionar e cada vez mais se fortalecer, uma ideia de olho por olho, dente por dente”, concluiu a especialista.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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