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Entenda as ações executivas que Biden assinou logo que ocupou a cadeira presidencial

Novo presidente dos EUA já assinou uma série de ordens executivas. Que ações são essas? Quais são seus objetivos? Quais são as dificuldades em vista?
Neusa Maria Bojikian
OPEU
São Paulo (SP)

Tradução:

Joe Biden prometeu começar imediatamente o apagamento das marcas de seu antecessor. Deu a partida assinando um conjunto de ações. Não parece se tratar de capricho, obstinação, ou de entrar no jogo de disputas e desavenças iniciadas por seu antecessor Donald Trump – jogo este que não terminou nem mesmo no dia da posse do novo presidente.

Mas não deixa de ser também simbólico e uma expressão tanto de seu compromisso de campanha, como da dimensão e complexidade dos desafios herdados ao firmar com sua assinatura tantos documentos no primeiro dia de seu mandato presidencial.

Na visão de Biden, o terreno da obra que dará início está bagunçado, minado, desnivelado. Logo, ele sente que precisa começar imediatamente, interrompendo a bagunça, tirando as armadilhas e nivelando as áreas que lhe parecem prioritárias: (1) saúde; (2) economia; (3) imigração, diversidade e equidade; e (4) meio ambiente e mudança climática.

As ações executivas que Biden assinou logo que ocupou a cadeira presidencial se referem a tais áreas arruinadas pelas chamadas crises convergentes. Que ações são essas? Quais são seus objetivos? Quais são as dificuldades em vista? São essas questões que orientam os destaques abaixo.

Novo presidente dos EUA já assinou uma série de ordens executivas. Que ações são essas? Quais são seus objetivos? Quais são as dificuldades em vista?

Daniel Huizinga/Creative Commons
LOBBY: Placa na Câmara Estadual de Maryland

Saúde

Conforme esperado, os primeiros ofícios têm por finalidade conter o agravamento e o impacto da pandemia da covid-19. As tintas de sua caneta foram depositadas nas ordens relacionadas à obrigatoriedade do uso de máscara em espaços públicos federais, inclusive nas instalações de viagens interestaduais administradas pelo governo federal, como trens Amtrak. Também foi ordenado um plano para se montar uma série de novas clínicas de vacinação, além de contratação de pessoal e de equipamentos de proteção.

Isso representa uma virada na abordagem de Trump para lidar com a pandemia, mas os esforços do governo Biden com potencial de efetividade dependem também de terceiros. Ainda que, no Congresso, conte-se com as lideranças hoje democratas, o apoio efetivo terá de vir de uma maioria qualificada, o que significa atrair um número significativo de republicanos. Os republicanos do Congresso já mostraram que estão pouco dispostos a dar o nível de apoio necessário para combater a pandemia. E, nas instâncias estaduais, há diversos governadores republicanos recusando-se a participar dessa empreitada.

A obrigatoriedade do uso de máscaras emitida por Biden não alcança o contingente necessário, então, resta-lhe o apelo ao patriotismo, à civilidade. Isso provavelmente não funcionará com os céticos em relação ao que recomendam os cientistas. A montagem de novas instalações de vacinação é um outro desafio. Mesmo as agências federais de ação diante de catástrofes naturais, acidentes de grande dimensão e violência, como FEMA e Guarda Nacional, não possuem a devida experiência com vacinação em massa.

E toda operação de grande abrangência necessita de recursos financeiros. Biden vai ter de negociar incansavelmente com o Congresso. O financiamento para medidas de saúde pública de maior aplicação pode ser retardado por discussões sobre itens mais controversos, sejam da área da saúde em geral, sejam de outras áreas trazidas ali para conter o impulso dos democratas mais ambiciosos.

Superadas as dificuldades no Congresso, há outros inúmeros problemas, inclusive relacionados à cadeia de produção e de suprimento farmacêutico. Há uma escassez importante, nos mercados interno e externo, de insumos e produtos acabados necessários para tratar a covid-19. O problema de abastecimento mais urgente no país se refere a vacinas e a suprimentos clínicos, como seringas. Nos últimos dias, autoridades estaduais e locais começaram a reclamar da chamada escassez de vacinas.

O prefeito de Nova York, o democrata Bill de Blasio, alertou que sua cidade poderia ter de cancelar as consultas, apesar de recentemente ter estabelecido novos locais de vacinação em massa. Alguns estados, incluindo Nova York e Michigan, pressionaram a farmacêutica Pfizer para começar a vender suas vacinas diretamente para eles. De fato, não há solução simples para uma produção repentina em larga escala. Precisaria haver mais produtoras aprovadas de vacina nos Estados Unidos. As duas fabricantes, Pfizer e a Moderna, que saíram na frente com a aprovação fornecida pelas autoridades, mostraram sua incapacidade de suprir toda demanda do país.

No âmbito externo, ainda no que diz respeito à saúde, suas primeiras ordens executivas se concentram na suspensão do processo de desembarque do país da Organização Mundial da Saúde (OMS) e na reinstituição de um conselho na Presidência para coordenar a resposta à pandemia.

Anthony Fauci, principal epidemiologista do país, foi escalado para liderar a delegação estadunidense na reunião do comitê executivo da OMS ocorrida em 21 de janeiro e apresentar de forma incisiva as críticas do novo governo estadunidense em relação à atuação desta agência. O governo Biden tem interesse em liderar a diplomacia mundial em saúde pública diante de emergências e eventos pandêmicos.

Tony Blinken, designado secretário de Estado, disse que os Estados Unidos vão participar da Covax, um esforço internacional para fornecer e distribuir vacinas, especialmente em países de baixa e média rendas. Essas iniciativas mostram que o governo Biden está preocupado não apenas com os problemas organizacionais do fórum multilateral, mas, sobretudo, com o espaço que se abriu para novos entrantes, leia-se China, na liderança mundial de questões de saúde e dali para outros subsistemas do multilateralismo.

Economia

O coronavírus deteriorou a economia dos Estados Unidos de tal maneira que tirou a carta decisiva que estava nas mãos do então presidente Trump na disputa eleitoral que o reelegeria. Não, surpreende, portanto, que a rápida recuperação econômica esteja, junto com a saúde, encabeçando as principais prioridades do governo.

Com a contaminação viral praticamente incontrolável e a capacidade da infraestrutura de saúde, limitada, a economia do país continuou sendo duramente afetada. Em 2020, a taxa de desemprego passou de 3,5% em fevereiro para 14,7% em abril, quando atingiu a maior alta. Apesar da queda que se viu a partir de abril, muito em função dos pacotes de alívio, a taxa de desemprego encerrou 2020 muito alta para os padrões econômicos do país: 6,7% em dezembro de 2020.

A perspectiva é que a retomada dos empregos e da economia em geral seja lenta, dependente, em tese, da efetividade da vacinação. Os setores de aviação civil, hotelaria, restaurantes, entretenimento e varejo em geral foram os mais atingidos. E muitas empresas encerraram suas atividades, permanentemente, adicionando problemas de médio e longo prazos à recuperação do nível de emprego e da renda dos trabalhadores.

Além de afetar o mercado interno, orientação principal da economia do país, a falta de renda das famílias as coloca diante do risco iminente de serem despejadas e de não honrarem seus empréstimos, afetando o crédito, outro importante atributo da economia do país.

Os índices de desemprego apresentados acima não refletem o nível do problema em cada classe social, mas já se sabe que a taxa é superior a 20% na base da pirâmide da classe trabalhadora. Para o professor James Butkiewicz, da Escola de Negócios e Economia da Universidade de Delaware (universidade onde Joe Biden estudou), a abordagem do problema precisa ir além dos programas de ajuda e buscar o efetivo combate à pobreza.

Antes da pandemia, essa classe estava obtendo um certo ganho de renda. Com a crise sanitária global, porém, esses ganhos recentes foram aniquilados. Butkewicz argumenta que uma economia crescente e sustentável é a melhor maneira de lidar com muitos problemas, incluindo a desigualdade. E isso poderia ser feito com “estímulo à inovação; melhoria da educação, incluindo treinamento técnico; reconstrução de infraestrutura; aumento da competitividade reduzindo o poder de mercado; e reversão das recentes restrições ao comércio e à imigração”. Para ele, a taxa de crescimento sustentável da economia não apenas promoverá o emprego, como aumentará a receita do governo, necessária para expandir os cuidados de saúde, pagar os benefícios dos aposentados, resolver os problemas climáticos e assim por diante. Note-se que, na avaliação de Butkiewicz, aparecem todas as questões que foram elencadas por Biden como prioritárias.

Para atacar o problema econômico e, ao mesmo tempo, a desigualdade, o governo Biden ordenou ações para melhorar a recuperação financeira das pequenas empresas, restabelecendo o Programa de Proteção à Folha de Pagamento (PPP, na sigla em inglês), mas tentando corrigir a forma desordenada com que foi implementado na gestão Trump.

O plano é estender os programas de alívio financeiro para as pequenas empresas e para os trabalhadores desempregados. Promete-se ainda que as empresas de propriedade de cidadãos negros e as comunidades rurais serão priorizadas. Certamente, isso terá de ser negociado com os congressistas, em especial os republicanos contrários à extensão do alívio e à abrangência dos programas de incentivo.

Biden também emitiu ordens para prolongar a pausa nos pagamentos de empréstimos estudantis. Com isso, milhões de tomadores de empréstimos estudantis do país podem continuar se abstendo dos pagamentos. No começo da pandemia, o governo Trump suspendeu os pagamentos de empréstimos estudantis, congelou os juros e disse aos agentes de crédito para interromperem seus esforços de cobrança. A pausa dada pelo governo Trump terminava em janeiro, mas, agora, com a medida de Biden, esse prazo foi prorrogado.

O plano do governo é trabalhar junto ao Congresso para a aprovação de uma lei para perdoar dívidas de estudantes contraídas no âmbito federal. A princípio, o teto do perdão seria de US$ 10.000 por pessoa, mas há pressão para que isso possa chegar até US$ 50.000 em determinados casos e possa ser feito por meio de uma Ordem Executiva.

De acordo com dados do Federal Reserve (Fed, o Banco Central dos EUA), os americanos detêm cerca de US$ 1,7 trilhão em dívidas de empréstimos estudantis. E, segundo o Institute for College Access and Success, estudantes que se formaram em 2019 em faculdades públicas, ou privadas sem fins lucrativos, tinham em média US$ 28.950 em dívidas.

O endividamento estudantil é mais uma questão da agenda de negociações do governo junto ao Congresso. Os que se opõem ao perdão, grupo em que há tanto democratas quanto republicanos, argumentam que eliminar essas dívidas beneficiaria injustamente uma parcela da população, qual seria, aquela que possui educação universitária e que normalmente têm condições de auferir maior renda. Se tal argumento se sustentar, a proposta de Biden de reduzir as desigualdades tende a ser impactada.

Por fim, ainda na área econômica, vale mencionar as medidas relativas às restrições nacionais a despejos e execuções hipotecárias. Uma Ordem Executiva de Biden prorroga imediatamente a moratória federal de despejo até pelo menos 31 de março de 2021. Ele também instrui os Departamentos de Assuntos de Veteranos, Agricultura e Habitação e Desenvolvimento Urbano que considerem a extensão das moratórias de execução hipotecária para hipotecas garantidas pelo governo federal.

Imigração

A questão imigratória ganhou grande relevância na agenda do novo governo. Os ditos inimigos de Trump não são inimigos de Biden, pelo menos não quando se trata de grupos específicos de imigrantes. Vários documentos foram emitidos tão logo Biden se revestiu de poder presidencial. As ordens executivas incluíram a revogação das ações do governo Trump para excluir não-cidadãos norte-americanos do censo e da distribuição de cadeiras na Câmara dos Representantes. Segundo Biden, essa tradição é fundamental para a democracia representativa do país, garantindo a representação no Parlamento dos interesses de todas as pessoas que residem nos Estados Unidos e são afetadas pelas leis.

Além disso, o secretário de Segurança Interna e o procurador-geral foram instruídos a preservar e a fortalecer o programa Ação Diferida para Chegadas na Infância (Deferred Action for Childhood Arrivals, mais conhecido por seu acrônimo, DACA). O programa fora criado em 2012, pelo governo Barack Obama, para regularizar temporariamente a situação irregular de imigrantes que chegaram ao país quando eram menores de idade. Com isso, essas pessoas foram autorizadas a adquirir um número de seguro social, equivalente a um Cadastro de Pessoa Física (CPF), válido por dois anos, mas renováveis. A principal garantia do programa é impedir que pessoas nessas condições sejam deportadas imediatamente. E, ainda que de forma temporária, até 2017, quando o governo Trump revogou esse programa, as pessoas eram autorizadas a morar, a trabalhar e a dirigir no país. Biden também instruiu seus partidários a convocarem o Congresso a promulgar legislação que forneça status permanente e um caminho para essas pessoas obterem cidadania.

Outra medida encaminhada por Biden procura reverter as restrições do governo Trump dirigidas a indivíduos, principalmente de países muçulmanos e africanos. Na proclamação emitida pelo novo presidente, destaca-se que os Estados Unidos foram construídos com base na liberdade religiosa e na tolerância. Princípios que, embora consagrados na Constituição, foram desrespeitados pelo governo antecessor, contrariando “a longa história [do país] de acolher pessoas de todas as religiões e sem religião alguma”. A nova proclamação diz ainda que as solicitações de entrada serão verificadas de forma rigorosa e individualizada, mas sem discriminação: “não viraremos as costas aos nossos valores com proibições discriminatórias de entrada nos Estados Unidos”.

Foi também emitida uma ordem executiva revogando as ações do governo Trump que enrijeceram as leis civis de imigração e afirmando que a nova política será “proteger a segurança nacional e de fronteira, enfrentar os desafios humanitários na fronteira sul e garantir a saúde e segurança públicas”. A ordem também sublinha o dever do cumprimento do “devido processo legal para salvaguardar a dignidade e o bem-estar de todas as famílias e comunidades”.

Biden assinou ainda uma proclamação pondo fim à emergência relativa à fronteira sul dos Estados Unidos e ao financiamento da construção do muro de fronteira entre Estados Unidos e México. O tal muro “intransponível” que Trump disse que iria impedir a “invasão de hordas mexicanas”, pela fronteira sul, será atingido pela suspensão da obra até que se verifiquem os contratos de construção e as fontes de financiamento. Devemos lembrar que o Congresso já não havia autorizado a construção durante o mandato de Trump, tampouco agora seria isso aprovado.

Por fim, no que diz respeito à imigração, cabe mencionar a ordem de prorrogação para a Deferred Forced Departure (DED), aplicável aos liberianos, até 30 de junho de 2022. Conforme o memorando assinado por Biden, desde 1991, os Estados Unidos “fornecem abrigo seguro para os liberianos que foram forçados a fugir de seu país em decorrência de conflitos armados e de conflitos civis generalizados, em parte por meio da concessão do Status de Proteção Temporária (TPS)”. Desde que terminou tal status, o governo dos Estados Unidos vinha adiando o cumprimento da saída forçada dos liberianos do território dos Estados Unidos. Com as sucessivas renovações, eles estiveram amparados legalmente, inclusive com autorização de trabalho, até 10 de janeiro de 2021. Biden acaba de assinar uma nova concessão. Nela, afirma que é do interesse da política externa dos Estados Unidos adiar até 30 de junho de 2022 a autorização para a permanência dessas pessoas, incluindo a permissão para trabalhar nos Estados Unidos.

Diversidade e equidade

O compromisso de Biden com a defesa da diversidade começou a ser institucionalizado com a ordem executiva sobre Prevenção e Combate à Discriminação com Base na Identidade de Gênero, ou Orientação Sexual. Por meio do documento, Biden, além de proibir a discriminação no local de trabalho, com base na orientação sexual e na identidade de gênero, orienta as agências a garantirem que os estatutos federais contra a discriminação sejam cumpridos.

Diz ainda que o governo pretende emitir diretivas específicas consistentes com a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, proferida em 2020, a qual estende as proibições previstas pela Corte, de modo a abranger orientação sexual e identidade de gênero. Biden também declara compromissos adicionais com vistas a revogar a ordem executiva emitida por Trump, em setembro de 2020, limitando a diversidade no local de trabalho e o treinamento de inclusão (OE 13950). Esta ordem já havia sido suspensa por meio de uma liminar nacional emitida em 22 de dezembro de 2020.

Um outro tema que ganhou prioridade na pauta do governo Biden diz respeito à desigualdade socioeconômica. A ordem executiva sobre Promoção da Equidade Racial e Apoio às Comunidades Desfavorecidas por meio do Governo Federal é o instrumento normativo emitido para amparar as ações subsequentes.

As instruções são para que as agências federais revisem o estado de equidade dentro de suas jurisdições e apresentem um plano, no prazo de 200 dias, ao Assistente do Presidente para Política Interna (APDP, da sigla em inglês) para pôr fim às eventuais barreiras. As comunidades negras, carentes e sub-representadas devem passar a ter prioridade nas ações e na alocação de recursos do Escritório de Administração e Orçamento (OMB, na sigla em inglês) do governo federal. As instruções são para que os graus de eficácia e efetividade dessas ações sejam mensurados regularmente.

De acordo com as definições apresentadas na Ordem Executiva em referência, equidade significa “o consistente e sistemático tratamento justo e imparcial de todos os indivíduos, incluindo indivíduos que pertencem a comunidades carentes, às quais esse tratamento foi negado, como negros, latinos, e Indígenas e nativos americanos, asiático-americanos e ilhéus do Pacífico e outras pessoas de cor; membros de minorias religiosas; lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e queer (LGBTQ +); pessoas com deficiências; pessoas que vivem em áreas rurais; e pessoas afetadas adversamente pela pobreza, ou pela desigualdade persistente”.

A normativa de Biden também coloca fim à Ordem Executiva 13958, emitida por Trump em 2 de novembro de 2020 e que instituiu a chamada Comissão Consultiva 1776 para “promover a educação patriótica” no país. Não é casual que a comissão tenha surgido depois da projeção que obteve a coletânea de ensaios sobre a história afro-americana dos últimos quatro séculos, intitulada Projeto 1619.

Laureada pelo Pulitzer Center, a obra publicada pela New York Times Magazine discute a contribuição da comunidade negra na construção da nação desde aquela época da escravidão aos tempos modernos. Em plena campanha eleitoral para se reeleger, Trump criticou a obra, dizendo que se tratava de revisionismo histórico falso. No Congresso, o senador Tom Cotton (R-AR) já havia apresentado, em julho de 2020, um projeto de lei intitulado Salvando a História Americana, procurando negar fundos federais para escolas que aderissem ao Projeto 1619 no currículo escolar.

A parte que suscitou o grosso da crítica é o ensaio introdutório do Projeto 1619, em que a autora Nikole Hannah-Jones sugere que os líderes fundadores da “América” lutaram pela liberdade do Império Britânico, em grande parte, para preservar a instituição da escravidão, e não por conta de ideais elevados.

Meio ambiente e mudança climática

Nesta categoria, as primeiras iniciativas de Biden também já eram esperadas, sobretudo, o ato de reingressar no Acordo de Paris. Os termos do aceite foram estritos, sem qualquer condicionalidade: “… tendo visto e considerado o Acordo de Paris, celebrado em Paris em 12 de dezembro de 2015, por meio deste, aceito o referido Acordo e todos os artigos e cláusulas do mesmo em nome do Estados Unidos da América”.

Para completar sua marca sobre as pegadas de Trump em matéria ambiental, assinou uma ordem executiva sobre Proteção da Saúde Pública e do Meio Ambiente e Restauração da Ciência para Enfrentar a Crise Climática. Nesta ordem, instruiu todas as agências executivas a revisarem e a tomarem medidas necessárias para garantir que as regulamentações e ações executivas do período Trump sejam, primeiramente, “baseadas na ciência”. Isso quer dizer que ele reconhece, indubitavelmente, que as ações humanas impactam o meio ambiente e as condições climáticas de modo a ameaçar a vida na terra. Ele pretende ver preservados: a saúde pública, o acesso a ar e água limpos. Para isso, mostrou-se disposto a responsabilizar os poluidores e priorizará a justiça ambiental.

Também instruiu o Departamento do Interior a exercer papel de guardião das terras federais. Ordenou, em especial, uma revisão das condições dos Monumentos Nacionais Marinhos da Grand Staircase-Escalante, Bears Ears, Northeast Canyon e Seamounts Marine e uma moratória temporária nas atividades de arrendamento de petróleo e gás natural no Arctic National Wildlife Refuge.

Entre inúmeras outras revogações de ordens executivas da área ambiental , uma se destaca pelo histórico de controvérsias. Trata-se da revogação da licença presidencial concedida ao oleoduto Keystone XL, um projeto proposto originalmente em 2008, pela TC Energy, envolvendo a cifra extraordinária de US$ 8 bilhões. Tal revogação bate de frente com os interesses de determinadas lideranças políticas, especialmente o governo de Alberta, província canadense, e de investidores privados. Isso já havia acontecido em 2015, quando o governo Obama, também por questões ambientais, interrompeu o avanço do projeto. Em termos práticos, a nova revogação interromperá a arrecadação de fundos para financiar o projeto do oleoduto e suspenderá qualquer parte já em andamento.

As implicações ainda podem se estender sobre o que já foi gasto. Isso poderia resultar em reclamação jurídica sob as disposições de acordos comerciais envolvendo EUA e Canadá. Entretanto, o governo federal do Canadá teria de apoiar Alberta em qualquer ação judicial. Resta saber se o primeiro-ministro Justin Trudeau está disposto a confrontar o governo Biden em um tema tão sensível. Em princípio, os países vizinhos devem reiniciar um relacionamento estável e deve-se esperar concessões de ambos os lados em múltiplas questões e áreas.

O “pacote ambiental” inclui as seguintes “medidas provisórias”: OE 13766 (Agilização de Revisões e Aprovações Ambientais para Projetos de Infraestrutura de Alta Prioridade), OE 13778 (Restauração do Estado de Direito, Federalismo e Crescimento Econômico ao Revisar a Regra “Águas dos Estados Unidos”), OE 13783 (Promoção da Independência de Energia e Crescimento Econômico), OE 13792 (Revisão de Designações sob a Lei de Antiguidades), OE 13795 (Implementando uma Estratégia de Energia Offshore na América), OE 13868 (Promoção de Infraestrutura de Energia e Crescimento Econômico), OE 13927 (Aceleração da Recuperação Econômica da Nação a partir da Emergência da COVID-19, acelerando investimentos em infraestrutura e outras atividades), OE 13834 (Operações Federais Eficientes) e OE 13807 (Estabelecimento de Disciplina e Responsabilidade na Revisão Ambiental e Processo de Autorização para Projetos de Infraestrutura).

Ética

Biden estabeleceu regras de conduta para si e para os integrantes de seu governo. Isso não é uma marca autoral, pois governos anteriores já o fizeram. Mas, após o governo Trump e todo contexto conturbado no qual o último processo eleitoral se enquadrou, o tema ganha destaque. A confiança nos políticos se torna cada vez mais frágil de um modo geral, mas o “telhado de vidro” dos democratas tende a estar mais exposto, e Biden tem plena consciência disso. Ele e qualquer integrante de seu governo podem ter a reputação questionada por qualquer falta, ou erro. Ou seja, estarão mais suscetíveis ao escrutínio e à avaliação negativa (sem surpresa) dos republicanos, especialmente dos trumpistas, assim como do público em geral.

Sendo assim, ele prometeu restaurar e manter o nível de confiança no governo. Para isso, fez todos os integrantes, nomeados em seu mandato, assinarem um termo de compromisso com a responsabilidade governamental. O conjunto de dispositivos que configura o código de ética imposto por Biden, por meio da Ordem Executiva de Compromissos Éticos por Pessoal do Poder Executivo, começa pelos seguintes termos:

“Reconheço que esta promessa faz parte de um plano mais amplo de ética no governo, projetado para restaurar e manter a confiança pública no governo, e me comprometo a ter uma conduta consistente com esse plano. Comprometo-me a tomar decisões de acordo com o mérito e exclusivamente no interesse público, sem consideração para ganho privado, ou benefício pessoal. Comprometo-me a uma conduta que defenda a independência das autoridades policiais e impeça a interferência indevida nas decisões investigativas, ou judiciais, do Departamento de Justiça. Eu me comprometo com escolhas éticas de emprego pós-governo que não deem a impressão de que usei meu serviço governamental para ganho privado, incluindo o uso de informações confidenciais adquiridas e relacionamentos estabelecidos para o benefício de futuros clientes”.

Na sequência do preâmbulo, aparece uma série de cláusulas específicas que vão da proibição do recebimento de presentes de lobistas registrados, ou de organizações de lobby, enquanto o contemplado estiver no exercício do cargo, passando pelas cláusulas que estabelecem período de quarentena para todos os integrantes nomeados em seu governo que venham eventualmente a assumir algum papel em assuntos passíveis de conflitos de interesse: Revolving Door Ban, até a proibição de integrantes de seu governo fazerem parte de contratos do tipo Golden Parachute, ou seja, de se receber compensações de ex-empregadores justamente por estarem indo fazer parte do governo.

“América está irremediavelmente dividida”

A frase acima foi proferida inúmeras vezes nos Estados Unidos, sobretudo nos últimos meses, como forma de expressar, ou de se questionar, a falta de esperança na reconciliação e nas soluções bipartidárias para os inúmeros problemas que se enfrenta no país. O ímpeto do presidente Biden no uso do Poder Executivo, evidenciado no maior número de ordens executivas assinadas em menos de 24 horas no cargo, se comparado ao de seus antecessores desde Bill Clinton (1993-2001), parece, no entanto, indicar grande desejo de enfrentar o problema. Para ele, o momento é um “ponto de inflexão” na recuperação da “alma da América”. No discurso de posse, o democrata disse ser necessário acabar com a “guerra incivil que opõe o vermelho ao azul, o rural ao urbano, o conservador ao liberal”.

Nas análises de Francis Fukuyama, que afirmara no passado o triunfo da democracia liberal, o governo dos Estados Unidos não enfrenta apenas lutas políticas internas, como se encontra diante de poderosos grupos de elite que colocam a política a serviço de seus interesses privados, corrompendo o rígido regime como um todo. Em tempo, Fukuyama disse que o “fim da história” foi desviado por forças imprevistas.

Já Graham Allison, professor da Universidade de Harvard e autor, entre outros, de Destined for War: Can America and China Escape Thucydides’s Trap?, sugere que Biden, por acreditar no pensamento de Abraham Lincoln – “Uma casa dividida contra si mesma não pode subsistir” – é, na verdade, a solução. A despeito da violência que emoldurou a transferência de poder presidencial em janeiro de 2021, Allison avalia que o sistema prevaleceu, ou seja, resistiu ao teste de estresse.

Como visto nas colocações ao longo do texto, no entanto, os resultados efetivos das ações da Presidência de Biden esbarram em limites institucionais importantes. Joe Biden, conforme indica seu histórico como congressista e como vice-presidente, é considerado um bom negociador e profundo conhecedor do Congresso, mas isso será o bastante?

Mesmo em maioria nas duas casas congressuais – Câmara dos Representantes e Senado –, os democratas precisam da cooperação dos pares republicanos, especialmente no Senado. Os republicanos do Congresso já sinalizaram que se opõem ao ambicioso plano de alívio econômico e de saúde proposto por Biden. E, se não houver um apoio robusto, o governo Biden terá grandes dificuldades para entregar resultados no âmbito de sua agenda de combate à desigualdade socioeconômica, o que está no centro dos problemas estruturais do país.

Mitch McConnell, figura importante do Partido Republicano no Senado, provavelmente não fará concessões sem contrapartidas significativas. Ele já indicou que aceita democratas de tendência centrista para ocupar cargos no governo Biden, como Tony Blinken, que foi aprovado para o cargo de secretário de Estado, mas certamente representará uma força inamovível diante das pautas dos congressistas mais à esquerda da sigla adversária. Embora tenha um relacionamento respeitoso com Biden, McConnell já demonstrou que será forte opositor das pautas ambientais dos democratas e foi contundente crítico do Acordo e Paris e, portanto, contra o ato de reingresso do país ao pacto sobre o clima.

Além da natureza da política, deve-se destacar que uma esmagadora maioria dos republicanos acredita que o processo eleitoral foi fraudado. Isso pode alimentar a luta partidária por muito mais tempo do que esperam os democratas e alguns republicanos. E pode prejudicar os planos dos democratas em avançar com a agenda do Day One de Biden.

 

Neusa Maria Bojikian é pesquisadora do INCT-INEU, host do programa Diálogos INEU e professora colaboradora do Programa San Tiago Dantas de Pós-Graduação em Relações Internacionais (UNESP, UNICAMP e PUC/SP).

Tatiana Teixeira é editora do Opeu, pesquisadora do INCT-INEU e do NEAI (Ippri-Unesp) e editora-assistente da revista Sul Global, do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (Irid/UFRJ)


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

   

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