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Custo do sistema de saúde nos EUA está gerando mais doenças e minando democracia, diz médico

Para o doutor Eric Manheimer, a indústria de saúde poderia ser uma das coisas mais responsáveis pela falta de saúde em uma população
David Brooks
La Jornada
Nova York

Tradução:

O doutor Eric Manheimer, diretor médico durante 14 anos do hospital público mais famoso e antigo dos Estados Unidos e autor de Doze Pacientes que narra a partir desse hospital a grande luta pelo bem-estar e resgate de seres humanos diante de condições sociais e econômicas que enfermam – livro em que se baseia a série de televisão New Amsterdam- comenta que após mais de um ano da pandemia fica claro que a luta pela saúde do povo deve rechaçar o modelo estadunidense de saúde, privatizador e que visa o lucro, que se propaga no nível mundial.

A ira digna daquele que foi diretor médico do hospital Bellevue em Nueva York -que atende desde chefes de Estado e executivos de Wall Street a imigrantes indocumentados e réus da prisão Rikers- centra sua crítica na indústria médica e o amor aos seus companheiros que diariamente buscam resgatar e curar. 

La Jornada: o que está no centro da disputa pela saúde no mundo hoje em dia? 

Eric Manheimer: O sistema de saúde dos Estados Unidos está se globalizando, pouco a pouco, em parte por um processo deliberado de privatização de serviços de saúde. 

Conto um exemplo disto no México. Uma amiga veio me ver por que estava preocupada por um diagnóstico de câncer de mama que recebeu de um médico muito querido e que todos recomendam. Chega com umas pastas grandes – resultado que o médico não te vê, mas pede muitos exames e entrega esse arquivo. Se realizamos suficientes exames em qualquer pessoa sempre se vai descobrir algo, mas geralmente são falsos positivos. O que acontece? 

Esse médico tem um negócio que se dedica a pedir exames, 99% dos quais são desnecessários, e daí inicia um processo de canalizar a caso a especialistas. Resulta que essa amiga não tinha o que lhe haviam dito.

O que aconteceu? Não tens um médico, tens uma máquina de exames que gera muita coisa. É só um exemplo de como o sistema no México está imitando o dos Estados Unidos onde há um excesso de exames, o que nutre os temores de pacientes enquanto geram indicações de outros males que requerem ainda mais exames e segundas opiniões.

Neste exemplo nem um só dos especialistas fez um exame físico a essa mulher. Fizeram uma biópsia de sua carteira. Isso é o que está ocorrendo em muitos países. 

A indústria privada de saúde não presta contas sobre a saúde de populações. A única coisa que sabemos é quanto dinheiro ganham as empresas de serviços de saúde a cada trimestre. Só prestam contas aos seus acionistas e isso se mede em ganhos, não na saúde de uma população. 

A indústria de saúde poderia ser uma das coisas mais responsáveis pela falta de saúde em uma população… Hoje em dia, o gasto do setor saúde representa 20% do PIB nos Estados Unidos, 4 trilhões de dólares anuais e continua subindo. É tão grande que segundo algumas pesquisas esse gasto não só limita o que se deveria gastar em educação e infraestrutura, mas poderia ser o maior fator em suprimir a renda da classe trabalhadora, a qual não se elevou em 40 anos, ao ter que pagar custos cada vez mais altos. 

Em resumo, a indústria de saúde tem um componente de elite que oferece tudo de melhor a uns quantos, mas o custo desse sistema poderia não apenas estar gerando mais doenças, mas até minando a democracia.

Para o doutor Eric Manheimer, a indústria de saúde poderia ser uma das coisas mais responsáveis pela falta de saúde em uma população

Instituto Ludwig von Mises Brasil – JusBrasil
"Após mais de um ano da pandemia fica claro que a luta pela saúde do povo deve rechaçar o modelo estadunidense de saúde."

Como diagnosticaria essa luta diária de médicos que se dedicam à saúde de seres humanos dentro deste modelo?

No início de minha carreira eu me dei conta de que muito do que aprendi na escola de medicina não era relevante. É óbvio que os tratamentos e outros conhecimentos médicos, sim, mas não explicava porque as pessoas estavam em um hospital, como chegaram até aí, como e que tanto foram tratadas. 

Ao longo dos seguintes 10 anos tive que aprender mais sobre sociologia, antropologia médica, economia, história, todos os aspectos do contexto dos pacientes, suas comunidades, incluindo a estrutura socioeconômica, raça, o tema da disparidade de gênero. Fui percebendo que o que necessitava fazer era aprender através dos meus pacientes, escutá-los, entender suas histórias. 

Para ilustrar isto: estás em um consultório onde há um médico e um paciente. Estão sozinhos, isolados, a porta fechada. Mas a realidade é que há inúmeras forças gigantescas presentes dentro desse consultório. 

No consultório está o lugar de onde veio o paciente, seu código postal, a história de sua família, a história de sua migração, sua educação, o tema do alcoolismo e drogas ou não, entre outras coisas. Para o médico também estão presentes vários fatores, incluindo alguns que limitam sua visão, sua capacitação, o sistema em que trabalha o médico e se este é público ou privado, como ele é pago, entre outras variáveis infinitas.

O que tive que fazer durante os anos seguintes foi detectar esses campos gravitacionais invisíveis [em encontros entre pacientes e médicos], os quais podem ser manifestações de desigualdade, racismo, todas as construções sociais da saúde. Ao atender um paciente tinha que levar tudo isso em consideração e não só com o bloco de receitas em mãos e ordenando mais e mais exames – de fato, justo aprendendo a não fazer isso. Quando cheguei ao meu máximo ponto de maturidade como médico é quando conseguir dizer a mim mesmo que não, já basta”.  

Faz mais de um ano que explodiu a pandemia – o que aprendemos e o que não?

“Primeiro, a pandemia foi uma pandemia prognosticada. Não foi um acidente, não foi um evento surpreendente, não foi um meteorito que chegou de repente. O vírus Covid tem sido muito estudado por mais de 20 anos, e é porque tem havido outras manifestações do vírus em 2003 e outro mais. Supõe-se que o vírus foi transmitido de animais a humanos, como funciona a pandemia de influenza a cada ano. De fato, 60 por cento de todas as infecções em humanos se originam em animais, isto tem sido assim desde sempre. Não há nada de estranho nisso. 

Mas, por que estamos padecendo estas pandemias? Tem que ver com a invasão da população humana no habitat animal. Cruzamos os limites. Haverá outras pandemias, algumas recorrentes, outras novas. Sabemos o porquê. 

Mas, a pergunta é se podemos, como agrupamentos de nações, conseguir que instâncias como a Organização Mundial da Saúde tenha a capacidade para enfrentá-las. Até gora, não existe a vontade política para conseguir isso. Vejamos: o montante de dinheiro que os Estados Unidos gastam para construir um porta-aviões facilmente poderia pagar, e várias vezes, tudo o que se necessita fazer de maneira coletiva para lográ-lo – não estamos falando de nada extraordinário, mas sim fazer o que já fazemos com a influenza. 

O que mais aprendemos? Que foi possível produzir todas essas vacinas, mas o problema é de quem tem acesso. Estamos vendo taxas de mortalidade enormes em países onde não estão disponíveis. Não sabemos se haverá acesso universal à vacina – isso de termos que pagar a quem a tem, a quem tem a patente ou a licença, tudo isso está na conta da pergunta sobre se a pandemia é um assunto monetário e não de saúde pública. 

A outra coisa que aprendemos é que governos autoritários são um grande problema. Estados Unidos, quando estava governado por Trump causou meio milhão de mortes excessivas (ou seja, desnecessárias). Fazer disso um tema político, brincar com a questão das máscaras e muito mais – como faz Bolsonaro.

* Doze Pacientes (Twelve Patients) será publicado em espanhol proximamente pelo Fundo de Cultura Económica. A série New Amsterdam, do qual Manheimer não só é a inspiração, mas o principal assessor médico, pode ser vista em Netflix.

** Manheimer sobre a pandemia em La Jornada: https://www.jornada.com.mx/2020/05/02/politica/008a1pol

*** La Jornada, especial para Diálogos do Sul — Direitos reservados.

**** Tradução: Beatriz Cannabrava


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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David Brooks Correspondente do La Jornada nos EUA desde 1992, é autor de vários trabalhos acadêmicos e em 1988 fundou o Programa Diálogos México-EUA, que promoveu um intercâmbio bilateral entre setores sociais nacionais desses países sobre integração econômica. Foi também pesquisador sênior e membro fundador do Centro Latino-americano de Estudos Estratégicos (CLEE), na Cidade do México.

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