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Lula e a desdolarização: após décadas, mundo pode se ver livre do dólar como arma de guerra

Ofensiva da política do dólar ganhou força com o fim do campo liderado pela União Soviética, com as pretensões do projeto neoliberal à univocidade
Osvaldo Bertolino
O Outro Lado da Notícia
São Paulo (SP)

Tradução:

Quem decidiu pelo dólar como lastro do comércio internacional depois que desapareceu o ouro como paridade? A indagação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na cerimônia de posse de Dilma Rousseff para comandar o Banco dos Brics – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul –, dia 13 de abril, em Xangai, China, transcende a Conferência de Bretton Woods, realizada em 1944, quando os Estados Unidos tomaram a rédea da economia do chamado “mundo ocidental”.

A pergunta remete à complexa relação entre economia e política. Em Bretton Woods nasceu, junto com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, uma nova ordem capitalista, definida pelo Plano Marshall e o bloqueio de Berlim. Ou seja: os Estados Unidos impuseram parâmetros econômicos aos seus aliados – ou dominados – e determinaram regras políticas que estabeleceriam fronteiras de aço para isolar os países que ingressavam na via socialista, liderados pela União Soviética.

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Quando George Catlett Marshall, secretário de Estado dos Estados Unidos, anunciou o plano de ajuda financeira aos países capitalistas europeus, estava em andamento a operação para a criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), que seria o braço armado do sistema. Fervilhavam as manobras que definiriam a Doutrina Truman, a chamada Guerra Fria, como expansionismo dos Estados Unidos sob o comando do presidente Harry Truman.

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Aquelas amarras definiriam o comportamento imperialista no pós-Segunda Guerra Mundial, como os genocídios na Coreia e no Vietnã para conter a influência soviética e da Revolução Chinesa de 1949. Na América Latina, também deram banhos de sangue com intervenções militares e organização de movimentos golpistas. Os países que seguiram pelo caminho de sua libertação – especialmente Cuba – pagam o preço da rebeldia, resistindo com bravura aos cercos militares, bloqueios econômicos e sabotagens políticas.

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A imposição do dólar vem daí. Com esse arcabouço político e militar, os empréstimos a juros baixos ou até mesmo doações em dinheiro do Plano Marshall estavam condicionados às exigências econômicas norte-americanas, como a compra de seus produtos. Os Estados Unidos vetaram a criação de uma instituição que regulasse o comércio internacional, fechando as portas para a multilateralidade e questionamentos como o que acaba de fazer o presidente Lula.

Em 1948, os países signatários de Bretton Woods firmaram um contrato para estabelecer diretrizes para o comércio exterior – o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt), que tratava apenas de bens industriais. Suas primeiras rodadas de negociação abordavam basicamente a redução de tarifas de importação. Com o tempo, as discussões englobaram também políticas antidumping e barreiras não-tarifárias e confluíram para a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC).

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O último capítulo do Gatt foi escrito na Rodada do Uruguai, entre 1986 e 1994, que, entre outras coisas, definiu a criação da OMC, irmã tardia do FMI e do Banco Mundial. O triunfo da ideia da OMC quase 50 anos depois de ter sido aventada pela primeira vez, no entanto, não mudou a forma de pensar dos Estados Unidos. Como não havia mudado quando o presidente norte-americano Richard Nixon anunciou, na noite de 15 de agosto de 1971, em rede de televisão, o rompimento do padrão ouro como lastro do sistema financeiro internacional, aspecto importante da Conferência de Bretton Woods.

Foi um choque. Por 25 anos, os países capitalistas viveram acreditando que a relação entre o ouro e o dólar era inabalável. Os Estados Unidos forçaram a desvalorização do dólar para socorrer seus déficits recorrentes na balança de pagamentos. Japão e Alemanha não queriam o câmbio flutuante, pois ostentavam superávit em sua balança de pagamentos por conta das reservas em dólares. Desde então, o mundo capitalista mergulhou numa nova fase de crises, sendo a mais forte delas a desencadeada em 2007-2008.

Ofensiva da política do dólar ganhou força com o fim do campo liderado pela União Soviética, com as pretensões do projeto neoliberal à univocidade

Freepik
Por trás da moeda, estão as armas políticas e militares do imperialismo

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A China conseguiu escapar daquela agonia da especulação financeira por ter um sistema imunológico melhor definido basicamente pelo superávit externo e o bloqueio da conversão da moeda local, o yuan, para sujeitá-la à pressão do dólar. O país também havia tirado lições da experiência pós-1971. Para os chineses, tanto do ponto de vista econômico como geopolítico, quanto mais puderem ajudar outras nações a se fortalecerem, melhor será o mundo para eles.

Segundo disse o consultor norte-americano Joshua Cooper Ramo, a China também aprendeu com os erros da América Latina nos anos 1990. Por encomenda do governo, a Academia Chinesa de Ciências Sociais publicou, em 2004, um livro chamado Análises do neoliberalismo. A obra, uma compilação de artigos de respeitados acadêmicos chineses, escrita sob um ponto de vista marxista, considera a Rússia e a América Latina como áreas do “desastre” do neoliberalismo.

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Os estudos mostram a importância que a China atribui ao papel de sua moeda. O governo chinês reage energicamente às pressões dos Estados Unidos e da União Europeia pela conversibilidade do yuan e sua valorização frente ao dólar. “O sistema de troca de moedas é um assunto interno. Nenhum país ou organismo internacional têm o direito de interferir em nossa política monetária”, afirmou recentemente um representante do governo chinês no jornal China Daily.

A ofensiva da política do dólar ganhou força com o fim do campo liderado pela União Soviética, com as pretensões do projeto neoliberal à univocidade. Muitas tensões antes abafadas pelo jogo internacional afloraram e foram reduzidas à pura expressão militar. Novos inimigos, reais ou forjados, entraram em cena e passaram a ser considerados pela estratégia imperialista como alvos, uma tática belicosa fundada basicamente num imaginário “choque de civilizações”, ideia expressa por Samuel Huntington em seu livro homônimo.

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Segundo o autor, a conjunção da “civilização confuciana com a islâmica” seria a maior ameaça ao “ocidente”, conceito que liga a economia à geopolítica. Os principais países capitalistas asiáticos estão umbilicalmente ligados à economia norte-americana, com um crédito monumental em títulos do Tesouro dos Estados Unidos, recursos que financiam os gigantescos déficits do império. Foi o repatriamento de uma parte dessas aplicações que provocou a “crise asiática” do final dos anos 1990. Com a ofensiva neoliberal, aquelas nações externamente vulneráveis, dependentes de mercados e de fontes de matérias-primas externos, beijaram a lona.

São acontecimentos que levam naturalmente a questionamentos sobre o papel do dólar. Mas, por trás da moeda, estão as armas políticas e militares do imperialismo. A presença militar dos norte-americanos e seus aliados às portas das fronteiras da China e da Rússia – agora ostensivamente demonstrada no conflito na Ucrânia – é óbvia manobra para criar um clima de ameaças, gerando tensões cujos desdobramentos são imponderáveis.

Osvaldo Bertolino | O Outro Lado Da Notícia


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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