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A mutilação genital feminina é apenas uma das violências que as mulheres enfrentam no país (Foto: Flickr)

Mutilação genital feminina: a violência silenciada que atinge 9 em 10 mulheres na Somália

Discurso de Zainab Jama no Miss Mundo rompeu o silêncio sobre uma prática brutal que, sob o véu dos costumes, traumatiza e mata mulheres na infância

Arantza Díaz
Cimacnoticias

Tradução:

Ana Corbisier

Em 31 de maio, Zainab Jama, representante da Somália no Miss Mundo, realizou um dos atos políticos mais poderosos: nomear a violência e narrar, a partir da própria experiência, uma das práticas de violência extrema mais frequentes em seu país de origem: a mutilação genital feminina. 9 em cada 10 mulheres somalis foram submetidas à infibulação – processo de corte do clitóris, dos pequenos e grandes lábios durante a infância.

Zainab Jama usou o microfone para contar de forma detalhada como esse fato ocorreu quando ela tinha apenas 7 anos. Tirar uma conversa como essa do espaço privado representa uma revolução, pois, embora essa seja a realidade de milhões de meninas e mulheres em todo o mundo, há um profundo desconhecimento sobre a mutilação genital feminina, sua permanência e a morte de dezenas de meninas que definham diante da dor.

Zainab Jama advertiu ao júri que entendia que o que iria dizer seria algo desconfortável, mas que era necessário nomear, pois sua experiência constitui o motor de sua vida como ativista pela erradicação da mutilação genital feminina.

A Miss Somália relatou que guarda na memória o momento em que um grupo de três mulheres a agarraram à força enquanto ela brincava e a despiram violentamente, cortando suas roupas. Ao seu redor, havia lâminas e tesouras, o ambiente era insalubre e nada estava esterilizado. As mulheres também não tinham qualquer formação médica, no entanto, pediram que ela fosse corajosa e, de forma direta, cortaram todos os seus genitais externos. Ela ainda recorda a dor agonizante e a tristeza que carregou por toda a vida em razão de um episódio traumático que não podia sequer nomear, pois assim exigiam os costumes do povo somali.

Cortaram meus lábios internos, externos, meu clitóris (…) lembro de chorar e suplicar, mas me disseram para ficar calada. Costuraram minha pele com uma linha grossa, fui colocada num quarto escuro com as pernas fechadas (…) todos aqueles dias fiquei trancada, sem brinquedos, sozinha, sangrando. Esse momento mudou minha vida para sempre e eu sobrevivi, mas muitas meninas não têm a mesma sorte. Na Somália, 98% das meninas foram submetidas a algum tipo de mutilação, e os outros 2% são meninas que ainda não têm idade suficiente.Zainab Jama

O episódio gerou opiniões controversas sobre o que há por trás da mutilação genital e por que, sendo uma crise que atenta contra os direitos humanos de mulheres e meninas, não houve até hoje uma intervenção das autoridades internacionais para prevenir e erradicar essa prática que se esconde em usos e costumes. No entanto, algo urgente a evidenciar é que a mutilação genital feminina é apenas uma das violências que as mulheres enfrentam no país: existe uma série de estruturas que fazem da Somália um ambiente brutal e profundamente misógino. Graças a Zainab e a seu poderoso discurso diante das câmeras internacionais, o tema entra no debate público sobre este país do Leste da África, atravessado pela pobreza, pelo conflito, pela fome e pela violência.

A Miss Somália não ganhou a coroa nesta edição do Miss Mundo, que foi ao ar em 31 de maio – a vencedora foi a Tailândia –, mas a palavra de Zainab Jama se tornou um marco emblemático, não apenas por transformar seu discurso em uma narrativa pessoal, mas também porque ela lembra que escutar sua experiência, sua perspectiva, sua dor e o que ela pensava enquanto criança, significa transformar o que é considerado “privado e pessoal” em um ato político. Além disso, mostra que nenhuma experiência na vida das mulheres é isolada: são vivências estruturais que podem ser chave para evidenciar questões maiores, como abuso sexual, violência doméstica, estupro ou a própria mutilação genital.

“Não vou parar até que o mundo inteiro fale sobre isso”, finalizou Zainab Jama.

Dessa forma, conclui-se que reconhecer o que atravessa a vida das mulheres não significa uma “revitimização” – como muitas vezes se tenta nomear –, que busca desmerecer as experiências de outras pessoas, mas sim trata-se de construir sociedades mais justas, tirando da esfera do doméstico, do familiar ou do vergonhoso os episódios das nossas vidas, como afirma a teórica feminista Carol Hanisch: “O pessoal é político”.

Somália: entre guerras, violência de gênero e crise humanitária

De acordo com a ONU Mulheres, há 20 anos a Somália enfrenta guerras civis de forma intermitente, resultando em graves crises humanitárias e no extremismo violento, levando a uma infraestrutura institucional precária com pobreza, fome e condições adversas causadas pelas mudanças climáticas.

Como resultado, a Somália possui uma das maiores taxas de pessoas deslocadas em todo o mundo. A seca e a violência são os principais motivos pelos quais a população deixa o país. Estima-se que aproximadamente 7,7 milhões de pessoas necessitem de assistência humanitária.

Ainda segundo estatísticas da ONU Mulheres, estes são os principais dados para entender o panorama de gênero na Somália:

  • A Somália ocupa o quarto pior lugar no mundo em termos de igualdade de gênero;
  • Está entre os primeiros países em taxas de mortalidade materna e infantil;
  • 99,2% das mulheres entre 14 e 49 anos já foram submetidas ao procedimento de mutilação genital;
  • A violência sexual é uma das formas de violência com maior número de ocorrências no país;
  • Em contextos de conflitos civis, as necessidades das mulheres não são atendidas e elas tampouco participam da tomada de decisões;
  • Apenas 2 em cada 10 pessoas na Câmara do Povo são mulheres;
  • Devido à interpretação da sharia, as mulheres são limitadas ao espaço doméstico e os regimes judiciais tendem a ser discriminatórios em relação a elas.

De acordo com documentação da Human Rights Watch (2024), a Somália ainda não ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres nem o Protocolo à Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos sobre os Direitos das Mulheres na África (Protocolo de Maputo).

Estamos em 2025 e mulheres e meninas ao redor do mundo continuam vivendo em condições cruéis, desumanas e degradantes (Foto: Flickr)

Os conflitos constantes na Somália estão relacionados às disputas entre grupos de milícias, clãs e militares, além das tensões com o país vizinho, a Etiópia, que se recusa a reconhecer a soberania somali. O principal agente promotor da violência é um grande grupo chamado Al Shabaab, que mantém confrontos diários com as forças armadas da Somália pelo controle territorial.

Segundo registros da Human Rights Watch, o Al Shabaab realizou atentados suicidas, além de bombardeios contra civis, causando centenas de mortes e ferimentos. Não apenas comunidades rurais são alvo, mas também espaços públicos de grandes cidades, como no ataque de 2 de agosto do ano passado, quando 37 pessoas foram assassinadas em um restaurante e mais de 200 ficaram gravemente feridas.

Violência sexual, perda de direitos, invisibilidade: o impacto das guerras no corpo feminino

A Anistia Internacional documentou que, em 18 de março de 2024, dois drones causaram a morte de 23 pessoas, das quais 14 eram crianças. Em meio aos ataques e à violência, as mulheres permanecem no centro desses crimes: cresce o abuso sexual, os feminicídios, a mortalidade materna, a insegurança alimentar, o assédio e os estupros de meninas e adolescentes. Os responsáveis não são apenas membros do Al Shabaab, mas também integrantes das próprias forças militares da Somália.

O contexto atual da Somália é um debate urgente. Um país onde praticamente todas as meninas são submetidas à mutilação genital, ao sangramento – e muitas vezes à morte –, onde a violência sexual é constante e os corpos de meninas, adolescentes e mulheres são usados como troféus de guerra, exige o reconhecimento de que a agenda feminista, longe de ser um capricho contemporâneo, é uma necessidade. Estamos em 2025 e mulheres e meninas ao redor do mundo continuam vivendo em condições cruéis, desumanas e degradantes.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Arantza Díaz

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