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“Não colem em mim esse discurso da meritocracia”, diz Conceição Evaristo

Aos 72 anos e com diversos livros publicados, a escritora ocupa espaços onde poucas mulheres, nenhuma delas negras, ocuparam até hoje
Redação Mídia Ninja
Mídia Ninja
São Paulo (SP)

Tradução:

O racismo estrutural e a falta de oportunidades para a grande maioria da população negra em nosso país são questões que incomodam profundamente a escritora Maria da Conceição Evaristo. Nascida e criada numa periferia de Belo Horizonte (MG), mulher negra e pobre, trabalhou como empregada doméstica e já vivenciou na pele o preconceito da nossa sociedade.

Hoje aos 72 anos, doutora em Literatura Comparada pela UFF, tem diversos livros publicados e é chamada para eventos em vários países. No entanto, assim como ela lutou muito para chegar onde chegou, milhares de mulheres negras se esforçam a vida inteira e permanecem vivendo em meio a dificuldades. É o falso discurso da meritocracia brasileira, segundo ela.

Vencedora do prêmio Jabuti em 2015 com o livro Olhos D’Água, seu nome foi muito falado no ano passado quando oficializou sua candidatura à Academia Brasileira de Letras. Poucas mulheres, nenhuma delas negras, ocuparam até hoje a cadeira dos imortais. E frente a muitas críticas, foi eleito o cineasta Cacá Diegues.

Nesta entrevista, ela fala sobre o machismo impregnado não só na academia e instituições, mas também na sociedade brasileira como um todo. Assim como Carolina Maria de Jesus, escritora negra que morreu pobre e era considerada muito talentosa, ainda não foi a vez de Conceição no pantheon da casa da literatura nacional.

Conceição Evaristo, como é conhecida, estreou na literatura em 1980 e desde então milita em defesa da negritude. Seus textos tratam de discriminação racial, gênero e classe, além de diversas outras mazelas em nossos territórios. Trata-se, na sua opinião, de escrevivências, pois seus personagens de alguma forma são inspirados na realidade. Estes temas estão na conversa abaixo, assim como uma análise sobre a mídia e a conjuntura política atual. Para ela, a intelectual letrada tem um compromisso ético e político, na medida em que vivemos num país extremamente desigual.

Mídia Ninja – Em termos de literatura brasileira, tivemos algumas épocas rotuladas: barroco, romantismo, parnasianismo, modernismo, etc. É possível caracterizar o momento atual?

Conceição Evaristo – Se considerar a literatura como um todo e incorporar as traduções literárias das classes populares, do que se chama periferia, a autoria negra, de mulheres e homoafetiva, por exemplo, temos um período muito rico. Na história da literatura brasileira não vemos esses setores, se ela foi uma literatura diversificada em termos de criação não foi em divulgação. Vemos um discurso literário em que a autoria preponderante é de homens brancos. Hoje temos uma autoria mais diversa, embora ainda não tão conhecida. Vivemos um momento que, por força desses grupos, tende a uma democratização maior. Pelo protagonismo deles temos um discurso literário mais amplo, que dê mais conta de realmente desenhar o rosto do que seria esta nação brasileira.

Isso se reflete na linguagem dos textos?

Reflete tanto no ponto de vista de linguagem quanto do enredo, da construção do personagem e do próprio conteúdo. Se antes tinha uma literatura que narrava os grandes centros ou os acontecimentos vistos por autores que olhavam de baixo pra cima, hoje temos um discurso literário criado a partir de dentro. É muito diferente, por exemplo, um texto de Adolfo Caminha, o Bom Crioulo, em que ele coloca um personagem negro gay do que um texto hoje de um gay que vai criar um discurso a partir de sua própria experiência.

Essa diversidade contempla a qualidade do texto?

Depende do que você considera como parâmetro ou bom. A qualidade está relacionada à própria questão do cânone, o que ele vai considerar como literatura? E quem tem essa voz e define o que é a boa literatura? Posso considerar um texto de excelente qualidade pois, a partir desse momento, o que eu vivo o texto me convoca, e para você não significar nada. Hoje temos um texto que pode agradar um número maior de leitores, e quando você pensa em qualidade está fazendo comparações, é algo muito subjetivo.

Foto: Marcelo Costa Braga

E como o mercado está reagindo a isto, num cenário em que livrarias estão fechando?

O grande mercado livreiro, que ainda está propenso a pegar as “grandes autorias”, os clássicos, está sofrendo um choque porque está percebendo que editoras pequenas estão se impondo. Eu mesma, por exemplo, só tenho publicado em editoras pequenas: Mazza e Nandyala, de Belo Horizonte, que nascem com objetivo de publicar autoria negra devido a nossa dificuldade de penetrar no mercado.

Aqui no Rio de Janeiro publico com a Malê, uma editora que nasceu também com esse objetivo, e a Editora Pallas que tem também divulgado e vendido muito minha obra, inclusive via PNLD (Política Nacional de Livros e Distribuição), é de médio porte. Tenho transitado entre editoras que poderiam até ser chamadas de alternativas, e outras um pouco maiores. Vemos hoje, inclusive nos prêmios literários, que editoras pequenas estão surgindo e conseguem colocar seus autores na mesma concorrência que as já definidas no mercado.

Existem muitas plataformas hoje que possibilitam novos autores publicarem seus livros, inclusive sites interativos. Como é essa questão da tecnologia e o livro de papel?

Gosto do livro de papel, porque tenho o vício antigo de ler, marcar, brigar com o texto. Mas essas possibilidades via e-book, dentre outras ferramentas, também são importantes na democratização. Muitos jovens estão lendo em função disso, não acho que um mercado exclui o outro, são complementares e têm público. Mas a minha preferência ainda é o livro de papel, até porque tenho dificuldade de ficar muito tempo com olho na tela.

A tendência é a publicação de papel ser extinta? No jornalismo existe esse debate tem tempo.

Espero que não dê tempo pra ver isso acontecer, porque vou ficar muito triste. Não saberia te dizer, mas podemos pensar que há todo um processo também de conquista desses objetos culturais. Ainda existem comunidades que não têm nem condição de acessar um livro, então imagina a internet se pensarmos só no Brasil. Está longe do livro acabar, acho que tem espaços, pessoas, grupos, coletividades, que o livro ainda é a grande novidade.

E o desafio ao escritor frente a um grau elevado de analfabetismo e pouco costume de leitura?

Ontem na Abralic (Associação Brasileira de Literatura Comparada) falamos sobre isso. Mas não é só o livro, o grande desafio é que muitos grupos não chegaram nem a este processo de alfabetização ainda. Grande parte das pessoas que acabam servindo de inspiração da minha escrita não tem condição de adquirir este bem. Muitos ainda não atingiram o processo de alfabetização, e por outro lado temos livros de artes ou mesmos simples caríssimos. A gente quer um livro bem feito, a ilustração também sai cara, então tem várias questões envolvidas. Primeiro teríamos que ter uma política de alfabetização, outra de distribuição de livros, desde acessar na sua casa até os equipamentos públicos como bibliotecas.

Você diz ter subsídios para produção e distribuição deste material?

Uma política pública que garanta o livro chegar às pessoas. Outra questão, que é mais difícil, é parar de pensar no livro como objeto de luxo. Uma das experiências mais bonitas que vivi em termos de leitura foi em Cuba, num festival de literatura em que o Brasil era o país homenageado e fui pelo Ministério da Cultura, na época do Gilberto Gil. Vários livros eram feitos de papel jornal, o objetivo era baratear o custo facilitando o acesso. Mas nós já temos essa visão que o livro tem que ter uma capa colorida, então se você faz um livro muito simples não chama muito atenção porque ele é um objeto de luxo. Para criança isso é válido porque desperta curiosidade, mas porque nossas crianças já são criadas com essa visão. Precisamos desse incentivo de modo que a fabricação de um livro pudesse baratear esse custo e fazer uma distribuição melhor.

Na Academia Brasileira de Letras (ABL) demorou um século para uma mulher chegar à presidência, a Nélida Piñon (1997), e até hoje só teve mais uma, a Ana Maria Machado. Qual sua avaliação sobre isso enquanto mulher negra?

A ABL, como qualquer instituição brasileira, repete o modo de ser das demais instituições. Nas grandes empresas, por exemplo, você vai encontrar poucos negros em papeis de gerência. Na alta hierarquia do exército também, pouquíssimos reitores de universidade negros, assim como nos bancos, etc. A ABL repete e confirma os modos de relações raciais e sociais na sociedade brasileira. Nos causa certo estranhamento pensar que é uma instituição que congrega escritores, pensantes, intelectuais, onde você espera caminhos diferentes. Mas não, essa pouca presença de mulheres e de negros, apesar de ser fundada por um escritor negro (Machado de Assis), reflete direitinho a estrutura social dominante.

É uma pena, a própria ABL perde com isso, porque se ela é uma casa que guarda a literatura brasileira, a língua nacional, tem que estar atenta às diversidades. Falta, por exemplo, uma representatividade dos sujeitos indígenas. Vamos ver quando ela realmente vai dar conta do papel que representa.

A Carolina de Jesus, por exemplo, teve muita repercussão na época dela e não entrou na ABL.

Gostaria de falar sobre o que represento hoje, no momento sou um das escritoras mais acessadas para entrevista e para tudo. Em relação à Carolina Maria de Jesus, certo tempo ela representava o que parte da classe média brasileira precisava para expurgar suas próprias culpas. A própria Igreja Católica procurava estar junto aos pobres, a classe média num momento de contracultura, surgia a bossa nova e outro discurso que procurava captar a realidade brasileira. E a vida de Carolina de Jesus representava o mais alto grau de pobreza. O país representava um processo de modernidade com a construção de Brasília e surge aquela mulher que simboliza um Brasil que caminhava para modernidade, mas com pessoas ainda passando fome. Ela foi muito necessária naquele momento para contradizer todo aquele discurso.

Minha preocupação é que eu como mulher negra, escritora, que vem da periferia das classes populares, sou o exemplo de um discurso muito perigoso: a meritocracia. Tentam desconstruir a necessidade e justeza das ações afirmativas, que estariam favorecendo certas pessoas. Mas na verdade é uma dívida que a nação tem tanto com os africanos escravizados, quanto às nações indígenas. Esse discurso da meritocracia diz que se você estudar ou se esforçar consegue. Tenho muito medo disso, porque conheci pessoas que fizeram isso e não conseguiram. Por que determinados sujeitos têm que estudar e se matar tanto, se outros já nascem com tudo garantido?

Para uns a escola é luta e conquista, já alguns nascem com esses direitos garantidos. Toda vez que você ver uma exceção, pergunte quais são as regras porque ela muitas vezes só confirma as regras. Então não me tomem como exemplo, não colem em mim esse discurso da meritocracia. Claro que estou feliz pelas minhas conquistas, mas por que uma mulher de 72 anos está conquistando isso a duras penas, e a grande maioria das mulheres não?

Tiveram muitas mulheres que foram muito midiáticas, como Clarice Lispector e Cecília Meireles, dentre outras, que mesmo assim não entraram na academia. Por quê?

Tem uma questão também do machismo, a maioria da academia é formada por homens. Já começo a pensar a ABL não por quem está nela, mas por quem está fora. Não sei se estas que você citou não demonstraram o desejo de entrar, ou já sabiam dessa estrutura.

Se nos voltarmos aos negros homens, por exemplo, Lima Barreto dizem que tentou mas falaram que não era lugar de moleque. Pensando que lá não são só escritores, como Ivo Pitanguy ou Sarney, por exemplo, por que Abdias Nascimento nunca foi convidado? Lélia Gonzales, Beatriz Nascimento, o próprio professor Muniz Sodré, que foi diretor da Biblioteca Nacional? Por que Milton Santos não está na ABL, se teve livros traduzidos no mundo inteiro e ganhou um prêmio na área de geografia que corresponderia ao Nobel de Literatura? Não dá bem para entender, e não sei quando a academia vai conseguir dar esse passo à frente.

Você acha que o Brasil é um país racista? O que de concreto lhe leva a crer que sim ou não?

Tenho certeza que o Brasil é racista. Desde os anos 1980 o movimento social negro teve um papel muito importante na desconstrução do mito da democracia racial. Hoje qualquer brasileiro dizer que não somos um país racista ele tem que ser muito alienado ou muito cínico. O grande salto do Brasil foi ter tido a coragem de por o dedo na ferida. O primeiro discurso oficial de um chefe da nação nesse sentido foi do FHC, mas também não por ele ser consciente e sim por pressão dos movimentos sociais. As denúncias nas conferências e tratados internacionais até a gente chegar às ações afirmativas.

Todas as nações construídas através das diásporas Africanas enfrentam esse racismo. A América Latina, as Américas Centrais, os EUA, fora os próprios países africanos com a chegada dos colonizadores, como o grande exemplo do apartheid na África do Sul. Nos engana justamente a falácia da democracia racial e que seríamos o grande exemplo dessa possibilidade. Nós negros sabemos muito bem que há uma diferença imensa, por exemplo, entre você e um homem negro. A sua cor te permite uma passagem que ao homem negro não é permitida, e eu ao lado de uma mulher branca. Não podemos pensar a questão racial só nas relações sociais, e sim no sistema.

Você tem, por exemplo, o sistema carcerário como um sintoma claro neste sentido.

Justamente, e aí é interessante como os próprios artefatos culturais ou a própria mídia são também responsáveis por esta situação. Quando se prende, por exemplo, um rapaz branco com droga e um negro você repara a diferença de linguagem. O branco atenua, já o negro criminaliza. É como se fosse um círculo vicioso, a mídia cria determinados imaginários.

A gente pode pensar, inclusive, na própria mídia de diversão nas novelas. Em Mulheres Apaixonadas o personagem batia na mulher com a raquete, e termina dizendo que esse sujeito tinha uma questão psicológica e de educação redimindo seu comportamento. Ele vai fazer análise não porque era ruim, mas tinha uma questão que a análise resolvia. Na Senhora do Destino o personagem negro cigano agredia a mulher e ainda era traficante. Para ele não tem salvação, não tem psicanálise que dê conta porque era ruim de natureza e extremamente nocivo. A própria mídia vai trabalhando certos estereótipos, assim como a literatura também.

O escritor tem o dever de produzir arte relacionada à política? Perguntei isso ao escritor Milton Hatoum e ele citou o escritor Antônio Callado, que abordava muito o tema.

Depende da própria concepção de política porque todo ato é político, como esta minha entrevista. A literatura pode funcionar como um discurso que celebra o status quo e ser um belo texto literário, assim como o contrário. Quando você considera que determinadas obras fazem sentido e outras não, ou quando você não percebe esse valor político da literatura, acha que tudo que você escreve ou fala é imune. Todo escritor (a) na obra literária tem que ter certa ética, tem um compromisso com a realidade não é só ficção.

Me assusta muito alguns escritores (as) pensarem que estão acima do bem e do mal, já ouvi alguns falando que quem começa a ler gibi ou o que é considerado má literatura nunca vai chegar aos clássicos ou ser um bom leitor. Isso me incomoda profundamente, porque meu primeiro contato com a literatura foi com a oral e lendo revistinhas infantis. Então quando pensamos que a literatura é política, é porque o escritor (a) tem também uma função social sem precisar muitas vezes fazer um discurso explícito.

Num país como o nosso em que a intelectualidade ainda tem uma função, ela não pode ser omissa de pensar que o que escreve não tem consequência. Os intelectuais que conseguiram ter o domínio da escrita e são produtores desses bens culturais têm uma responsabilidade política.

E sobre a política nacional, o que você pensa a respeito do momento atual levando em consideração nossa história?

Vou partir de uma experiência histórica, que sintetiza este momento. Quando os africanos escravizados fugiam para o quilombo, homens, mulheres ou crianças, não tinham certeza nenhuma de ter a liberdade garantida. Sabiam que estavam correndo risco, porque se fossem capturados seriam castigados. Teria um sentido duplo, primeiro por ser escravizados, que não têm o direito de traçar o próprio destino, e segundo por se rebelarem diante daquele destino e cometerem a audácia de fugir. Mesmo assim iam, o único desejo e certeza era o direito à liberdade. Hoje não temos certeza de nada, mas sabemos que temos esse direito à vida. Temos uma dignidade a ser conservada, e nos mínimos detalhes com nossos direitos garantidos: alimentação, educação, moradia, aposentadoria, etc.

Mais do que nunca temos que pensar nessa práxis quilombola, e também como vamos reunir forças. Pensar também que somos responsáveis por esse momento que está aí, se eu não votei nele alguma coisa também aconteceu. Achamos que tudo já estava resolvido? Ou até que ponto aquelas pessoas em quem confiamos estavam realmente do nosso lado? Então, acho que somos vítimas e algozes ao mesmo tempo.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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