A imprensa corrente fala da atual crise econômica como uma calamidade causada pela atual pandemia. Passa por alto que ela começou antes da Covid-19. A pandemia o que fez foi acelerar abruptamente este problema e agregar-lhe vieses inesperados. Em outras palavras, – e suas consequências sociais – em uma dimensão mais agravada.
Um de seus traços é o caráter brutalmente assimétrico do fenômeno; enquanto milhares de pequenos negócios vão à falência e uma massiva quantidade de empregos desaparece, há algumas empresas de ponta – bancos, farmacêuticas, consórcios de telecomunicações e tele comércio – que obtêm lucros enormes. Estamos diante de uma intensa e restritiva concentração de capitais: falências e desemprego em massa junto ao veloz enriquecimento de uma estreita minoria, o que leva a uma extremo agravamento da desigualdade e da insegurança sociais.
Isto já suscitava protestos populares antes da Covid-19, inclusive em países desenvolvidos. Assim, os Coletes Amarelos na França, Black Lives Matter nos Estados Unidos ou as mobilizações nacionais na Catalunha. Na América Latina, as grandes manifestações no Chile, no Equador, no Peru ou na Bolívia, e as de Porto Rico, Honduras e Guatemala. As quarentenas motivadas pela pandemia contribuem para refrear esses protestos, mas isso não vai durar indefinidamente.
Dizimadas a pequena e média empresas, se desgalha um segmento da classe média, que se juntará a dissimiles acompanhantes – desempregados, trabalhadores por conta própria, gente do campo migrada à periferia urbana, e proletários tradicionais -, a engrossar um heterogêneo caldeirão sociopolítico.
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Quem e como determinarão os termos dessa reconstrução?
É fácil prever que quando o drama sanitário amaine, em fins de 2021 ou começo do ano seguinte, ao encontrar-se diante de uma situação socioeconômica intolerável, o inconformismo popular voltará às ruas. E o fará por maiores causas, assim que ao crepúsculo da pandemia seguirá uma nova maré de tensões políticas, ao longo de um controvertido processo de reconstrução socioeconômica, institucional e trabalhista de nossos países.
Esta é a “nova normalidade” que nos espera. Quem e como determinará os termos dessa reconstrução?
O problema tem diferentes dimensões. Além do medular direito dos povos a reclamar melhores condições de vida, a reorganização da economia deverá assumir outro problema: que em não poucos casos o marco geral das instituições, leis e costumes vigentes provém dos tempos da segunda revolução industrial – com eventuais concessões à terceira -, e poucas vezes reflete as demandas e oportunidades suscitadas pelo quarta revolução científico-técnica. Não apenas as necessidades e reclamos populares e o desenvolvimento social demandam mudar esse marco. Também há exigências do capitalismo tecnologicamente mais avançado que urgem reformá-lo, na perspectiva de seus interesses.
Inclusive nos países subdesenvolvidos o capital – local ou de fora – requer novas modalidades da produção e dos serviços, investimento em tecnologias e complementação internacional, que já não cabem dentro das normas preestabelecidas. O desgastado marco institucional –oligárquico ou de um capitalismo mais primitivo – já não facilita, mas sim obstrui melhorar sua competitividade. Sem contar com a digitalização e a automatização que já começavam, o trabalho à distância e a racionalização do trabalho, que durante a pandemia se entronizaram, já não vão ser abandonados. O que implica voltar a cernir e racionalizar a força de trabalho contratada, em prejuízo de uma quantiosa massa de trabalhadores não qualificados, ou com qualificações caídas em desuso.
Não é só se preparar para assumir a atual revolução científico-técnica, como o exige uma política de desenvolvimento. Já não basta denunciar as maldades de um modelo econômico esgotado e corrupto. É necessário prever uma nova estratégia de investimento e trabalho produtivo mais apropriadas a nossas realidades, necessidades e expectativas. Formas de economia e trabalho que requererão antecipar suas respectivas pautas institucionais, culturais e legais, e seus próprios modos de organização. Indignar-se é justo, mas não é suficiente, pois se carecemos de um consistente projeto de transformação do país, protestar desafoga o mal-estar coletivo, mas não basta para construir um futuro diferente.
O mundo, suas populações e demografias, a complexidade social e as condições de trabalho e criação mudaram. Não há um passado ao qual retornar. É imperativo desenvolver outras formas de organização, comunicação e intercâmbio de ideias, o que exige esclarecer quais são as novas propostas socioeconômicas, factíveis e sustentáveis pelas quais se luta. Além de desfraldar desgostos, também é peremptório debater e concretizar o projeto mais inclusivo das mudanças que o país necessita para dar-se outro porvir.
O tempo de denunciar o neoliberalismo cumpriu a maior parte de sua tarefa. Sabe-se que suas ficções e sem-vergonhices foram um desastre tanto social como econômico. Hoje é tempo de explicar com que alternativa vamos substituir essa praga. Não basta denunciar os efeitos da crise agravada pela pandemia; quem os padece já os conhece. O que nos cabe é prever como enfrentá-los e mobilizar-se não apenas para superar os novos desafios, mas sim para conseguir o conhecimento e o consenso social necessários para reconstruir a nação de modos justos e eficazes que possam avançar além do presente marco temporal.
Nils Castro, Colaborador de Diálogos do Sul da Cidade do Panamá.
Tradução: Beatriz Cannabrava
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