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O fim dos cavalinhos de madeira: quando a "evolução" dos brinquedos vira um problema

O maravilhoso balanço, sobrevivente durante séculos e transformado em símbolo da infância protegida, não conseguiu ultrapassar o século vinte
Carolina Vásquez Araya
Diálogos do Sul Global
Cidade da Guatemala

Tradução:

(Escrevi este texto em dezembro de 1994, sem publicá-lo, muitos anos antes da invasão dos aparatos inteligentes que hoje se mantêm nas mãos de meninos e meninas.)

O maravilhoso balanço de madeira em forma de cavalinho, sobrevivente durante séculos e transformado no símbolo da infância protegida, não conseguiu sobrepassar a fronteira do século vinte.  

Os avanços da tecnologia também têm seus bemóis. Apresentam às vezes esse lado escuro, barato e popular próprio dos objetos de consumo de massa, que derivam da necessidade de estender seu campo de influência até os rincões mais escondidos da sociedade do mundo civilizado.

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Os brinquedos, por exemplo, mostram essa característica de forma sumamente ilustrativa. Especialmente quando tentam comunicar os segredos da ciência em uma linguagem adaptada à total ignorância que sobre esses níveis de conhecimento manifesta um público leigo, ávido de surpresas. 

As antigas bonecas que serviam de companhia às meninas e lhes permitiam construir um mundo fantástico ao redor de seres inanimados de trapo, plástico, cerâmica ou madeira e que tinham a grande virtude de conformar uma família obediente e subordinada, foram se transformando em mulheres adultas, sofisticadas e cheias de complicações; belezas convencionais que cumprem perfeitamente o requisito de representar o consumismo em sua mais pura expressão. 

Rodeadas de mansões de vários andares, automóveis de luxo, estolas de pele, joias, canchas de tênis e até noivo, as bonecas-fetiche de hoje pouco a pouco vão transformando a simples brincadeira em uma custosa corrida de obstáculos e em uma competição feroz, que serve – triste vantagem! – como treinamento para a futura vida em sociedade. 

Quando a boneca não se transforma em uma moça de capa de revista, então, se torna uma menininha tonta que repete incansavelmente frases em inglês de uma gravação, ou – como acaba de aparecer no mercado – em uma menina que fala ao telefone uma série de ideias sem graça. 

O maravilhoso balanço, sobrevivente durante séculos e transformado em símbolo da infância protegida, não conseguiu ultrapassar o século vinte

MaxDeVa – Flickr

O que se está perdendo nesse ínterim é a qualidade lúdica desses objetos tão apreciados pelas crianças




Réplicas da mamãe

As bonecas atuais não são mais aquelas figuras silenciosas e aguentadoras de maus-tratos. Agora são elas que ditam as normas e apresentam problemas específicos como o racismo, a sexualidade, os problemas de saúde ou a falta de carinho. Na realidade, se erigem em réplicas convenientes da mamãe, que termina delegando a elas uma parte de sua tarefa formativa. 

O que se está perdendo nesse ínterim é a qualidade lúdica desses objetos tão apreciados pelas crianças. A incorporação de tecnologia na fabricação de brinquedos provocou uma lamentável atrofia da faculdade infantil de desenvolver uma criatividade sem limites, já que cada vez requer maiores estímulos. A diversão pura, a capacidade de abstrair o entorno e penetrar de cheio em um mundo integralmente criado por e para o seu próprio prazer, se contaminou com um absurdo universo de elementos inventados por adultos para alcançar objetivos mercadológicos muito precisos, nos quais não estão incluídas as ilusões infantis. 

O sexismo, que nas últimas décadas foi duramente combatido pelos grupos feministas no que se refere à indústria de brinquedos e que supostamente havia ganhado algumas batalhas no nível mundial, em nossos países se encontra em franca retirada.

Os estereótipos se manifestam e se ratificam nas prateleiras das lojas, onde o único que falta são letreiros que indiquem: “meninos” e “meninas”. E a mensagem para cada um se adequa aos valores vigentes na sociedade terceiro-mundista com sua conotação de anseios frustrados e arrivismo.


Objetos para brincar

Os objetos para brincar – já que é contraditório chamá-los de brinquedos – satisfazem uma ampla gama de paixões humanas e não deixam maior espaço para o exercício de seu labor fundamental, que é tão simples como facilitar o desenvolvimento adequado da personalidade da menina ou do menino através da brincadeira, permitindo-lhe compartilhar experiências e adquirir novas habilidades. 

Esta incapacidade dos adultos de resistir a entrar nesse jogo se aprofunda à medida que os enfrenta às suas próprias limitações. A aquisição de presentes para seus filhos passa por um série de etapas de avaliação, que poderiam ser descritas em termos gerais como: possibilidades econômicas (o quanto podem gastar em cada um); equilíbrio no tamanho e valor dos presentes entre todos os filhos, para que ninguém se sinta relegado; se as finanças permitirem, comprar tudo o que os pais houvessem querido que lhe presenteassem quando era pequenos; se não permitem, então escolher as versões baratas dos brinquedos caros que terão os vizinhos. 

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Em nenhuma parte aparece a análise do que é melhor para as crianças, ou o que lhes poderia fazer mais felizes com um mínimo risco de deformar seu esquema de valores. Em resumo, se efetua uma operação calculada entre a satisfação emocional e social dos pais e as exigências da comunidade infantil, já completamente manipulada pela publicidade.

O maravilhoso balanço de madeira em forma de cavalinho, sobrevivente durante séculos e transformado em símbolo da infância protegida, não conseguiu ultrapassar a fronteira do século vinte. Foi vencido e esquartejado em uma batalha desigual, por uma Barbie desabrida e rija, por um Nintendo alienante e solitário, por uns estridentes carrinhos motorizados que imitam o pior da realidade e por toda uma montanha de objetos que substituíram a imaginação por um par de pilhas alcalinas. 

Carolina Vásquez Araya | Colaboradora da Diálogos do Sul na Cidade da Guatemala.
Tradução: Beatriz Cannabrava.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Carolina Vásquez Araya Jornalista e editora com mais de 30 anos de experiência. Tem como temas centrais de suas reflexões cultura e educação, direitos humanos, justiça, meio ambiente, mulheres e infância

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