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Grafite em Barcelona, Espanha (Foto: redhope / Flickr)

“O ovo da Serpente” e a ascensão do nazifascismo: é possível esmagá-lo?

Como é possível interromper uma psicose (um delírio) em massa? Ou seja, como escapar do contágio do desespero agressivo ou revanchista?
Carlos Russo Jr
Diálogos do Sul Global
Florianópolis (SC)

Tradução:

O que fazemos com o desespero? Com a sensação física de desespero. Quando já não há saída, que nada vai mudar substancialmente a situação em que nos encontramos, que nada pode ser feito?

Segundo Franco Berardi, esta é a principal questão da política hoje. Mas uma política que vai além da política. Porque o desespero não vai desaparecer por decreto-lei, argumentos ou explicações. É algo do corpo, está ligado ao corpo, que contamina toda a alma, e a possui.

Um desespero que se traduz em todos os lugares em agressão. A prepotência dos fortes – “nada é como antes” – transforma-se em guerra contra os mais fracos. E o desespero dos fracos procura revidar, vingar-se. Trump, Netanyahu, Milei, Bolsonaro, Tarcísio e tantos outros nazifascistas eclodem do “Ovo da Serpente”, num círculo que é infernal.

Eles são a ferramenta de agressão dos fortes contra os fracos e uma ferramenta de revanche para os fracos…. Contra quem? Contra a casta política, a classe média, os que têm emprego, a democracia e as suas promessas frustradas, etc..

“O Ovo da Serpente”, de Bergman

“Estamos no dia 3 de novembro de 1923 e um maço de cigarros custa 4 bilhões de marcos. A maioria das pessoas perdeu toda a fé no futuro”.

Este comentário de apresentação abre “O ovo da serpente”, realizado pelo cineasta sueco Ingmar Bergman e o título desse filme indica claramente o significado do seu autor desejou metamorfosear.

Os espectadores mergulham numa Alemanha onde, sobre o fumo da miséria, todas as coisas não passam de objeto de tráfico, inclusive as vidas humanas.

E esse período do pós-guerra (a Primeira), pareceu a Bergman o ponto de partida do nazismo.

Suas imagens mostram o crescimento do antissemitismo, as manifestações de violência nos grupos nazistas, o terror sempre latente, a impotência e o desespero da população num governo democrata, a chamada República de Weimar, que definiu regras democráticas pela primeira vez na história moderna germânica, fruto do desmoronamento do Império Alemão, após a derrota na Primeira Guerra.

O objetivo de Bergman, seguramente, não foi proceder a uma reconstituição histórica fiel aos primeiros anos da República. Ele apresenta, antes de tudo, um fundo de desordem moral que pudesse justificar a situação de confusão, solidão e de angústia sobre a qual se projetavam suas personagens. Desespero, desespero, desespero!

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Como em todos seus filmes, ele está preocupado com a presença do mal no mundo que, segundo ele, se conformou ao esquecimento de Deus. O homem, despojado do sentimento do divino, sem crenças em utopias, não pode deixar de ser presa do medo e da morte. Assim, o herói de “O ovo da serpente”, o acrobata judeu Abel Rosenberg, se encontra natural e drasticamente aprisionado pelos laços das forças do mal. Profetizava ele Netanyahu, cem anos após?

Essa visão fatalista é mais ou menos comandada pela evolução posterior da Alemanha, como se a crise dos anos 1930 se houvesse superposto à evocação dos anos 1920, momento do filme. Ora, o Partido Nazista fora fundado em 1920, e suas sessões de assalto, as SA, em 1921. No entanto, ele conta com apenas 9 mil membros em 1923, e só obtém nas eleições legislativas de maio de 28, insignificantes 2,6% dos votos. A sociedade alemã não estava gerando, quase imediatamente após a Primeira Guerra Mundial, um regime fascista, MUITO PELO CONTRÁRIO, um regime democrático!

Em contrapartida, “O ovo da serpente” consegue traduzir com força e verossimilhança, um aspecto da atmosfera consecutiva ao fenômeno da inflação. Esse aspecto é o da miséria em que se debatiam milhões de cidadãos, reduzidos a expedientes e pequenos delitos para sobreviver!

É possível esmagar o nazifascismo que volta a assombrar o mundo?

Como é possível interromper uma psicose (um delírio) em massa? Ou seja, como escapar do contágio do desespero agressivo ou revanchista?

Esta é uma questão central de uma política que vai além da política, uma política que sabe ouvir e dialogar com os corpos, com o que acontece nos corpos e através de suas necessidades básicas, chegar às almas!

Sim, é possível!

O povo precisa voltar às praças, às associações, às assembleias de bairro. O desespero social, face aos cortes, às privatizações e à precariedade selvagem, em vez de se traduzir em vitimização e vingança, pode transformar-se em ação, solidariedade, pensamento, reconexão.

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O efeito dessa transformação será SEMPRE a alegria em vez da ira!

A visão da esquerda tradicional tenta interpretar tudo como apenas mais um movimento político, perguntando-se sobre a organização política dos Partidos, os programas e seu líder.

Uma nova esquerda, sem esquecer os exemplos bons e maus do passado, deve optar por uma espécie de terapia social que abarque a igualdade de gêneros e de raças. A defesa por um meio ambiente mais sustentável. Um saber-fazer algo, criativo e coletivo, que trabalhe com o mal-estar, dos corpos e das almas, com as vidas que já foram danificadas, sacrificadas.

A melhor saúde mental vem da perspectiva de um dia a dia melhor! Um sentir-se seguro!

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Os “novos” partidos e coletivos políticos devem converter o Desespero em Esperança!

Sim, é possível… vencer. Vencer, Venceremos!

Todos os que enlouqueceram fascinados pela linguagem do triunfo sobre o próximo, se farão a pergunta: Ganhar o quê? O mundo é controlado, manipulado pelo 1% de milionários e estes, teleguiados por 0,1% dos mesmos! Somente eles podem ganhar!

A ilusão, como sempre, terminou em decepção. Grandes expectativas levam a novas frustrações. A Esperança recaiu no Desespero. Um desespero que hoje, como no passado, dá um giro para a direita. É sabido que desesperados votaram massivamente em Trump, em Milei: os humilhados, os quebrados, os arruinados, material e mentalmente.

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Eleições, como forma de acesso ao poder? Somente isto será possível através da batalha psicocultural, daquela disputa pela crença num futuro possível! Através de líderes que convoquem o entusiasmo dos desgraçados sociais!

Acreditar, acreditar de novo. A terapia social, essa tessitura de ações concretas, pensamentos, vínculos e solidariedade, que enfraqueceu e desapareceu! Mas a esperança permanece no acreditar!

O desespero pode ser radicalizado? Não se pode tentar escapar do Desespero através da Esperança, daquela “imaginação que preenche o vazio”, como diz Simone Weil em “A Gravidade e a Graça”, um dos melhores livros escritos sobre a mecânica do desespero: é necessário sustentar o vazio!

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O que significa sustentar o vazio? Diante da promessa de poder, da vontade de triunfar e do triunfo da vontade, é aceitar que não podemos (tudo) e que ninguém pode por nós, sem nós.

Nossos tempos estão doentes com o “sim, é possível”. Diante do “querer é poder” como mandato da época que nos estressa e esgota, assumir a impotência como alavanca, comparar-se com o impossível e o trágico.

Resignação? Radicalização do desespero, isso sim. A descrença em todas as consolações, nas ilusões voluntárias, nas promessas políticas. É possível imaginar um político que não peça a nossa ilusão, a nossa fé? Um político que diga “não é possível”, decepcionando crenças e libertando-se assim dos deveres?

Destruir a Esperança como expectativa e crença, para que as esperanças possam talvez ressurgir em letras minúsculas, como atividade e a partir do vazio. Isto é o que Herbert Marcuse leu em Samuel Beckett (“Sim, é possível”): “somente no extremo do desespero, uma vez destruídas todas as ilusões, é possível reencontrar a esperança novamente”.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Carlos Russo Jr Carlos Russo Jr., coordenador e editor do Espaço Literário Marcel Proust, é ensaísta e escritor. Pertence à geração de 1968, quando cursou pela primeira vez a Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades, com Monografia sobre “Helenismo e Religiosidade Grega”, foi discípulo de Jean-Pierre Vernant.

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