Pesquisar
Pesquisar

O que está por trás da rebeldia andina que derrubou governos neoliberais no Equador?

Cólera anticolonial, combinada com politização dos governos bolivarianos, tem resultado explosivo: população já não aceita os retrocessos e sai às ruas
Almir Felitte
Outras Palavras
São Paulo (SP)

Tradução:

O Equador entrou em chamas nas últimas semanas. Revoltado com as políticas liberais e imperialistas impostas ao país pelo FMI, o povo equatoriano saiu às ruas em uma movimentação massiva que pode culminar com a queda de seu Presidente, Lenin Moreno. Mas a agitação política do país não vem de hoje.

Lenin fora eleito como sucessor de Rafael Correa para continuar a chamada “Revolução Cidadã”, como é conhecido o momento político iniciado pelo ex-Presidente, mais um ligado à corrente bolivariana que ditou os ritmos de boa parte da política sul-americana desde os anos 2000. Porém, desde o início de seu mandato, Lenin Moreno mostrou sua verdadeira face, traindo Correa, seu partido e todos aqueles que acreditaram estar votando na continuidade da “Revolução”.

Tão logo fora eleito, o atual Presidente equatoriano afastou o país da política “Sul-Sul”, desprezando antigos parceiros latino-americanos para aproximar-se, de forma subordinada, aos EUA, adotando posições como o apoio aos intervencionismos na Venezuela, a entrega de Assange às autoridades internacionais e a perseguição política a seu antecessor, Rafael Correa, num processo de Lawfare semelhante ao que ocorre na Lava Jato brasileira.

Lenin Moreno também passou a desmontar sistematicamente os avanços sociais e econômicos garantidos pela “Revolução Cidadã” de Correa, entregando a economia do próprio país ao FMI e adotando políticas neoliberais que atingiram em cheio a qualidade de vida e o bolso dos mais pobres, estopim de toda a revolta que vemos agora tomar o Equador.

Mas se engana quem pensa que o sentimento de revolta pelos ataques aos avanços da “Revolução Cidadã” tenha nascido da noite para o dia entre os equatorianos. Na verdade, toda a agitação que vemos hoje é uma verdadeira aula que nos ensina algo que não fora aplicado ao Brasil durante nossos anos de governo esquerdista, e que os países bolivarianos souberam fazer com maestria: a criação de um sentimento revolucionário entre a classe trabalhadora e a defesa intransigente da autodeterminação de um povo.

Cólera anticolonial, combinada com politização dos governos bolivarianos, tem resultado explosivo: população já não aceita os retrocessos e sai às ruas

Conaie Comunicación
Manifestantes tomaram as ruas de Quito

Quem acompanha a situação latino-americana há tempos sabe bem que a palavra “Revolução” se tornou uma constante no dicionário dos povos de cada um dos países que vivenciaram a experiência bolivariana. E essa talvez tenha sido a principal diferença de países como o Equador, a Bolívia e a Venezuela para outros países sul-americanos atingidos pela onda de esquerda no continente desde o início dos anos 2000, como Brasil, Argentina, Chile e Uruguai.

Na Venezuela, por exemplo, que talvez venha vivendo o caso mais grave de interferência política externa em nosso continente, não é de se espantar que, mesmo em grave crise, ainda haja um apoio maciço do povo ao governo de Maduro. Para além do grande salto econômico e social que o chavismo proporcionou ao país entre 1999 e 2013 (cujos números podem ser vistos neste artigo[1]), o período marcado quase todo por Hugo Chávez foi formado por uma retórica de constante defesa dos avanços revolucionários ante aos seguidos ataques norte-americanos ao país, gerando um grande sentimento de autodeterminação do povo que até hoje tem sido o fiel da balança na política venezuelana.

Na Bolívia, que até mesmo aos olhos de um envergonhado FMI se tornou exemplo incontestável de avanço econômico aliado a avanços sociais, o mesmo sentimento é facilmente visto, podendo se concretizar nas próximas eleições que certamente darão continuidade ao trabalho de Evo Morales a frente do país.

A mesma defesa ferrenha dos avanços conquistados pela esquerda, porém, não pode ser vista nos demais países que participaram da onda progressista sul-americana dos últimos anos. Marcados por discursos mais conciliatórios, como o complicado peronismo argentino ou a política de conciliação de classes petista, países como Argentina e Brasil viram seus ciclos de esquerda traumaticamente interrompidos, enquanto o Chile passou pela falta de continuidade numa alternância de poder com liberais. Exceção à retórica revolucionária com facilidades de se manter no poder, só mesmo a esquerda uruguaia.

Nos três outros países, porém, o que se viu foi o capital aliado a grande mídia em massivas campanhas difamatórias contra qualquer coisa que cheirasse à esquerda. Do discurso de “Chilezuela” aos dados fraudados pelo Banco Mundial no Chile, passando pela campanha criminosa do Clarín pela prisão de Cristina Kirchner na Argentina, até o inflamado apoio ao golpe parlamentar no Brasil por todas as grandes redes de comunicação, ficou o sentimento de que, mesmo com grande apoio, faltava algo mais às esquerdas populares destes países para que estas saíssem com mais energia às ruas defendendo os avanços conquistados. Um algo a mais que, agora, o bolivarianismo de outros países parece nos revelar.

Vemos, agora, a diferença entre uma esquerda que chega ao poder sem medo de falar em “socialismo” e “revolução”, e uma esquerda que tem orgulho em dizer que garantiu grandes lucros aos bancos. Se há uma lição que podemos tirar do povo equatoriano, hoje, é a de que não dá pra continuarmos invejando movimentos populares massivos como o do Equador enquanto continuamos apostando tudo em discursos conciliatórios dentro do nosso próprio quintal.


[1] http://www.justificando.com/2017/07/17/apesar-da-crise-venezuela-deve-seguir-pelo-caminho-bolivariano/

Veja também


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Almir Felitte

LEIA tAMBÉM

Biden tira Cuba da lista de terror e suspende algumas sanções (3)
Biden tira Cuba da lista de terror e suspende algumas sanções; analistas avaliam medidas
Tensões criadas por Trump impõem à América Latina reação ao imperialismo
Trump exacerba as contradições entre EUA e América Latina
Política fracassada Noboa mantém Equador como país mais violento da América Latina
Política fracassada de Noboa mantém Equador como país mais violento da América Latina
Venezuela Maduro reforça poder popular, desafia oligarquias e combate o imperialismo (2)
Venezuela: Maduro reforça poder popular, desafia oligarquias e combate o imperialismo