Atualizada em 25/01/2022, às 16h55
Apesar de ser loucura, há método nela
(Shakespeare, Hamlet: Ato II, Cena II)
Já se disse que o Brasil não é um país desenvolvido nem subdesenvolvido. É um país de contrastes. Enquanto na Europa a Modernidade varreu os valores pré-modernos típicos das teocracias medievais, no Brasil corremos o risco de ver o contrário: depois da Modernidade, a Idade Média!
E, para cúmulo do surrealismo, uma Idade Média capitalista! Como vemos hoje em muitas partes do mundo, o capitalismo convive bem com regimes políticos autoritários e com valores conservadores da era pré-moderna.
O futuro Governo, já delineado, começou a reforçar valores e costumes arcaicos bem como apoiar ideias anti-científicas. Defende o universo ideológico das igrejas evangélicas. Desde o presidente eleito, que nos brinda com absurdos diários, até os Ministros das Relações Exteriores e Educação, com suas cruzadas contra o “marxismo cultural” e a favor da “escola sem partido”, estamos ameaçados de sofrer uma regressão cultural a valores tradicionalistas pré-modernos, fora do campo da racionalidade.
Um jovem na internet diz que a terra é plana e tem mais de 200 mil seguidores. O Messias só retornará à Terra quando Israel recuperar Jerusalém para sua capital. Daí a proposta do presidente eleito de transferir a embaixada brasileira em Israel para Jerusalém. O agronegócio gritou, vai perder seus clientes nos países árabes. E os generais do Governo, Mourão à frente, devem barrar, não são evangélicos. A solução de compromisso é abrir um escritório de representação em Jerusalém. Isso deve atrasar um pouco o retorno do Messias…
Uma das piores propostas do novo governo é violar a decisão da ONU e transferir a embaixada em Israel para Jerusalém. O Brasil vai virar alvo do terrorismo e sofrer atentados. Parece que é isso que Bolsonaro gostaria: clima de guerra para aumentar seu apoio, desviar a atenção da opinião pública para um inimigo externo, e vender armas. A proposta agrada a bancada da Bíblia e da Bala. E agrada sobretudo a Trump.
Carta Maior
Olavo de Carvalho e René Guénon
Estamos em pleno vigor do mundo da pós-verdade. Como se viu na recente campanha eleitoral, as pessoas negam a realidade e só aceitam a informação falsa que coincide com suas opiniões prévias. A indústria de fake news, vitoriosa na campanha de Trump, foi trazida com êxito para a campanha de Bolsonaro.
Por detrás da ideologia dominante no mundo político de Trump e Bolsonaro, existe o que se pode chamar de “platonismo de direita”. Segundo Platão, existe um outro mundo, de “essência pura”, e o nosso mundo não passa de um simulacro, ou seja, de uma cópia degradada da essência. Esta é a ideia por detrás do que diz aquele jornalista guru do Bolsonaro, que se auto intitula “filósofo” e “astrólogo”, Olavo de Carvalho. Sobre ele, remetemos à crítica do filósofo Ruy Fausto na Folha de 2/12/2018, sob o título “A única coisa rigorosa em Olavo de Carvalho são os palavrões”. Olavo é “antes de tudo um mitômano, e o seu discurso é um tecido de disparates, uma enxurrada de embustes”.
O que pouco se conhece é o guru do Olavo de Carvalho, um filósofo metafísico e ocultista francês, René Guénon, que considera a Idade Média como o auge da humanidade (a essência pura). Tudo o que veio depois é a decadência (o simulacro).
Os escritos de Guénon enfatizam o declínio intelectual do Ocidente desde a Renascença e chamam de superstições as afirmações da ciência e do 'progresso'. Influenciado pelo simbolismo e espiritualismo de religiões orientais, como o Hinduísmo e o Sufismo, Guénon critica o materialismo da sociedade ocidental e, com ele, a contribuição da ciência. Acabou adotando a religião islâmica e foi morar no Egito.
O semiólogo Umberto Eco, em seu livro “Os Limites da Interpretação”, dedicou um subcapítulo a Guénon: René Guénon: Deriva e Navio dos Doidos. Ele criticou o fato de Guénon defender a existência de um suposto “centro espiritual oculto”, governado por um “Rei do Mundo”, que direcionaria todas as ações humanas. Esse centro se localizaria no reino subterrâneo de Agarta, que se encontraria na Ásia, provavelmente no Tibete. Para Umberto Eco, esses textos carecem de toda confiabilidade científica.
Parece que há uma linha direta de Guénon e Olavo de Carvalho a Bolsonaro que, embora ignorante, absorveu princípios evangélicos que se harmonizam com a ideia de uma essência pura, fora da Modernidade e da Ciência. Provavelmente, Bolsonaro vê nos EUA o “centro espiritual oculto” e em Trump o “Rei do Mundo”, na mesma linha do Gurú do Gurú.
Ao mesmo tempo, de forma surrealista, o presidente eleito defende o que há de pior no capitalismo selvagem. Em recente artigo, “Distopia Brasileira”, o professor de Economia da Unicamp, Fernando Nogueira da Costa, recorre à metáfora de um quadrúpede chamado Brasil apoiado por quatro patas. “Para ganhar a eleição, as duas patas dianteiras: bíblia e bala, tendo na retaguarda o boi e a banca. Para governar, trocam de posições, adiantando-se o agronegócio e os bancos de negócio, e colocando o projeto sob a garantia ou do evangelismo ou do armamentismo”.
Lula e o desafio de conciliar a mudança reclamada pelas massas com a união nacional…
Essa associação do capitalismo neoliberal extremado, na pessoa do Ministro da Economia, com valores morais medievais de outros Ministros, principalmente o de Deseducação e o de Relações Exteriores, sem desconsiderar o conservadorismo sectário dos demais e o beneplácito dos ministros militares, configura o monstrengo de um desgoverno pronto a destruir a democracia, associando capitalismo e tirania.
Tudo indica que, enquanto o ministro da Economia vai tentar privatizar toda instituição pública que der lucro ao mercado, o presidente eleito vai atacar seus fantasmas, começando pelas leis de proteção ao meio ambiente, aos índios e à comunidade LGBT.
Ou seja, vai tentar conciliar o conservadorismo moral pré-capitalista, e seus valores tradicionalistas pré-modernos, com uma política econômica neoliberal agressiva que vai aumentar ainda mais a desigualdade social. Tudo isso com o apoio de boa parte do Judiciário – que já dispensou muitas vezes as formalidades e garantias legais – da mídia e do Congresso.
Esta é a luta que a Oposição e a Sociedade Civil vão travar nos próximos anos para defender a democracia no Brasil. Uma luta que terá de conciliar a perspectiva econômica de defesa dos interesses dos trabalhadores com a perspectiva sociocultural de defesa dos direitos relacionados à identidade de grupos discriminados. Em seus vários livros e artigos, a filósofa americana Nancy Fraser sempre insistiu que a justiça implica, ao mesmo tempo, a redistribuição e o reconhecimento.
A derrota da direita e da esquerda frente à extrema direita nas últimas eleições coloca um novo horizonte político face à ameaça de destruição das instituições democráticas. Para além dos partidos e do sistema político representativo, que não representa mais, as forças vivas da sociedade civil, com todas suas Associações e Movimentos Sociais, tenderão, até mesmo para sobreviver, a formar uma Frente Democrática, unida ou dispersa, a fim de enfrentar as lutas pela redistribuição econômica e pelo reconhecimento de identidades, ambos ameaçados pelos Chicago boys e pelos Inquisidores ansiosos para queimar na fogueira os direitos e liberdades democráticas no Brasil.
*Liszt Vieira – Professor Universitário, Doutor em Sociologia
Matéria publicada originalmente em 13/12/2018, às 14:25
Atualizada em 25/01/2022, às 16h55
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