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ToggleA Faixa de Gaza se tornou o retrato mais cruel do fracasso moral da comunidade internacional. Desde outubro de 2023, mais de 50 mil palestinos foram mortos pelas Forças Armadas de Israel. Mulheres, crianças, civis indefesos — alvos deliberados de uma máquina de guerra que bombardeia escolas, destrói hospitais, ataca comboios humanitários e silencia jornalistas. A cada dia, uma tragédia humanitária se renova. E a cada dia, os governos do mundo escolhem o silêncio. Inclusive o nosso.
A Corte Internacional de Justiça já reconheceu indícios de genocídio. A Organização das Nações Unidas (ONU) denuncia violações do direito internacional. E, ainda assim, grande parte dos líderes mundiais — com a ajuda indispensável da mídia hegemônica — insiste em tratar a matança como um “conflito”, como se fosse possível equiparar um povo sitiado e faminto a uma das maiores potências militares do planeta. Não há simetria. Há massacre.
Declarações fortes, mas ausência de ações concretas
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi uma exceção. Em fevereiro deste ano, em uma declaração histórica, afirmou que o que Israel fazia com os palestinos era comparável ao que Hitler fez com os judeus. Foi uma fala corajosa, em um mundo que evita nomear o crime. A resposta israelense veio rápida: Lula foi declarado persona non grata em Israel, enquanto a direita brasileira ensaiava escândalos patrióticos em defesa do “Estado democrático” que bombardeia crianças. Parecia, naquele momento, que o Brasil se colocaria à altura da sua tradição diplomática soberana, altiva, humanista. Parecia. Mas o tema desapareceu da pauta presidencial. Gaza virou nota de rodapé. Lula voltaria a usar a palavra “genocídio” para definir os crimes de Israel em Gaza: na Rússia, em 10 de maio, no âmbito das celebrações do Dia da Vitória; na China, em 13 de maio, durante encontro entre o país e líderes da América Latina; e neste domingo (1º), na convenção nacional do PSB, em Brasília. Fato é, porém, que nenhuma dessas falas se converteu em ações concretas: nenhuma medida efetiva foi tomada; nenhuma ruptura com Israel; nenhum embargo; nenhum gesto simbólico de repúdio, além da retórica.
Por que Lula recuou?
Há muitas explicações possíveis para esse recuo — e, a meu ver, nenhuma delas é digna de absolvição. A primeira diz respeito a um suposto isolamento internacional, visto que a fala de Lula, embora moralmente justa, contrariou os interesses dos EUA e da União Europeia — principais parceiros comerciais e políticos do Brasil. Washington e Bruxelas não perdoam desvios narrativos sobre Israel. Pressões diplomáticas e econômicas não declaradas podem ter sido exercidas com força.
Em segundo lugar, podemos destacar o “cálculo eleitoral” — uma equação amarga, onde os princípios cedem lugar à preservação política. No Brasil contemporâneo, as forças mais conservadoras da direita continuam a deter forte capilaridade social e midiática. São setores que, mesmo fora do poder formal, seguem ditando o tom do debate público, impondo narrativas e ameaçando a estabilidade institucional. Nesse ambiente, qualquer crítica a Israel é prontamente rotulada como antissemitismo, alimentando o moralismo seletivo de um campo político que nunca demonstrou qualquer empatia real com o povo judeu, mas usa Israel como fetiche ideológico para alimentar seu projeto reacionário.
Nesse cenário, Lula pode ter optado pela contenção estratégica, evitando atritos que poderiam ser explorados eleitoralmente por adversários que já o acusam, de forma distorcida, de alinhamento com “terroristas”. A direita, aliada a grupos evangélicos pentecostais com fortes vínculos com o sionismo cristão, trata Israel como símbolo sagrado, transformando qualquer crítica legítima ao Estado israelense em blasfêmia política. São fiéis, pastores, empresários e parlamentares que atuam como uma frente de pressão moral e eleitoral. Essa força simbólica não é desprezível. Representa milhões de votos e influência direta sobre o Congresso Nacional. Em tempos de reformas frágeis e de uma base aliada instável, não é difícil imaginar que a Presidência tenha optado por se resguardar.
Mas aí está o ponto mais doloroso: essa escolha custou vidas. Porque não há “cálculo eleitoral” que justifique o silêncio diante de uma carnificina como a que ocorre em Gaza. O pragmatismo que se diz necessário para manter a governabilidade perde toda legitimidade quando o preço é a naturalização da matança de civis. A política não pode ser apenas o jogo das possibilidades: deve ser, acima de tudo, o campo das escolhas morais. Lula, que em tantos momentos de sua trajetória soube afrontar os donos do poder, agora se curvou ao ruído da chantagem religiosa e à intimidação da extrema-direita. E ao fazer isso, deixou os palestinos sozinhos — não apenas diante das bombas, mas também diante da covardia internacional.
Em terceiro lugar, temos a dependência comercial — talvez o argumento mais cínico e, ao mesmo tempo, mais revelador da tragédia da política externa contemporânea. O Brasil é hoje um dos maiores exportadores de carne para Israel, sobretudo carne bovina e de frango, produtos que partem em grande parte das gigantes do agronegócio que moldam a agenda econômica nacional. Em contrapartida, Israel fornece ao Brasil tecnologia de ponta nos setores de defesa, cibersegurança e vigilância, incluindo drones militares, softwares de espionagem e equipamentos utilizados pelas polícias e forças armadas em operações internas — especialmente em contextos de repressão a populações periféricas. O vínculo, portanto, não é apenas econômico: é também ideológico e estratégico. Israel é modelo de um Estado securitário, que vende ao mundo sua experiência em “controle populacional” como expertise militar. O Brasil, por sua vez, compra essa tecnologia — e a aplica contra sua própria população pobre, negra e favelada. Há, aí, uma simbiose perversa entre o colonialismo internacional e o autoritarismo doméstico.
Romper relações com Israel implicaria perdas econômicas? Sem dúvida. Mas que tipo de democracia ou soberania nacional se sustenta quando a ética é refém do lucro agroexportador e da engenharia da morte? Quando a política externa é moldada por balanças comerciais e acordos de segurança que silenciam diante de massacres, o país deixa de ser sujeito de sua própria história para se tornar cúmplice funcional da barbárie globalizada. Ao escolher preservar contratos com frigoríficos e negócios com a indústria bélica, o governo brasileiro envia um recado claro: a vida palestina vale menos que o gado nos portos. O Estado que diz defender a justiça social não pode aceitar que seu silêncio esteja lastreado em exportações de carne e importações de armas. É o limite da hipocrisia.
O Brasil tem todas as condições de buscar novos mercados, de investir em tecnologias alternativas, de romper com a lógica de submissão que nos coloca como fornecedores de commodities e consumidores de repressão. O que falta não é viabilidade — é vontade política de dizer: “não aceitaremos mais ser cúmplices de crimes contra a humanidade em nome da estabilidade econômica”.
O silêncio do governo diante de Gaza não é neutro. Ele é uma escolha econômica, política e moral — e, por isso mesmo, profundamente condenável.
Por fim, há o peso do Itamaraty — essa engrenagem diplomática que, mesmo sob governos ditos progressistas, continua operando sob a lógica da moderação permanente. A política externa brasileira tem uma longa tradição de conciliação, de aposta no multilateralismo, na negociação, na linguagem calculada. Tudo isso pode parecer prudência diplomática — e em muitos casos é. Mas, diante de crimes atrozes como os que vêm sendo cometidos em Gaza, essa prudência se transforma em cumplicidade revestida de protocolo.
Após a fala contundente do presidente Lula em fevereiro de 2024 — quando comparou a ação de Israel ao extermínio promovido por Hitler — houve uma reação imediata e previsível de Tel Aviv. Mas o que se seguiu dentro do próprio governo brasileiro foi ainda mais sintomático: setores do Itamaraty trataram de apagar o incêndio, revisando o tom, desautorizando entrelinhas, e voltando à velha retórica morna e ambígua, feita de “preocupações”, “apelos à paz” e “esperança de diálogo”. Essa postura revela um conservadorismo estrutural, quase visceral, da diplomacia brasileira — uma máquina que prefere o silêncio à fratura, o equilíbrio aparente à justiça efetiva. O medo de se “isolar internacionalmente”, de romper com alianças comerciais, de ser visto como radical, acaba convertendo o Brasil em mais um ator inerte em meio a uma tragédia com proporções de genocídio. É a neutralidade como fetiche institucional, mesmo quando o sangue corre aos montes. Sob a justificativa de que “o Brasil não rompe pontes”, o Itamaraty tem se recusado a erguer a única ponte que realmente importa neste momento: a da solidariedade concreta com um povo massacrado, privado de tudo, até da própria existência. A diplomacia que outrora foi instrumento de altivez soberana — como nos tempos em que o Brasil recusou a guerra do Iraque, ou enfrentou sanções injustas contra países do Sul Global — hoje se esconde atrás de notas oficiais que, no fundo, apenas legitimam o status quo.
Trata-se, portanto, de uma postura burocrática que falha em reconhecer a excepcionalidade da situação palestina. Quando o direito à vida está sendo sistematicamente violado, a neutralidade vira uma forma de conivência. E o Itamaraty, ao se apegar a manuais e tradições, contribui para o esvaziamento ético da política externa brasileira — que se apresenta ao mundo como mediadora imparcial, mas se recusa a nominar o opressor e agir com coragem histórica.
Mas, o que Lula poderia ter feito — e ainda pode fazer?
Não se trata de exigir de Lula um heroísmo isolado, mas de cobrar coerência. O Brasil, com seu peso geopolítico, poderia ter proposto sanções no âmbito do Brics; rompido relações diplomáticas com Israel; suspendido acordos militares e comerciais; denunciado formalmente os crimes de guerra no Tribunal Penal Internacional; conduzido uma frente latino-americana de apoio ao povo palestino; oferecido asilo aos refugiados. Porém, nada disso foi feito. Lula, que ousou falar, preferiu depois o silêncio. E o silêncio diante do horror é posicionamento!
A história está observando. Gaza está em ruínas. Crianças são enterradas todos os dias sob escombros e promessas de paz que nunca chegam. A história registra quem se calou. O Brasil não pode continuar como espectador de um genocídio televisionado. Lula ainda pode — e deve — corrigir sua postura. Ainda há tempo de estar ao lado certo da história. Porque o povo palestino não pode se calar. Eles estão sendo assassinados.
E nós (o Brasil, o povo brasileiro, o Presidente Lula), vamos continuar em silêncio?
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* Imagens na capa:
– Gaza: Hosny Salah / Pixabay
– Lula: Ricardo Stuckert / Flickr