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Celso Furtado (Imagem: Arquivo Nacional)

Os obstáculos externos ao desenvolvimento da América Latina

A economista Ceci Juruá apresenta uma síntese do pensamento de Celso Furtado com base em sua obra de 1968: "Subdesenvolvimento e Estagnação na América Latina", capítulo 2: Obstáculos externos ao desenvolvimento (AL)

Ceci Juruá
Diálogos do Sul Global
Rio de Janeiro (RJ)

Tradução:

“Na comunidade de nações que constituem o Terceiro Mundo – nações para as quais os problemas de desenvolvimento prevalecem sobre todos os demais – os países da América Latina ocupam uma situação particular, em razão da peculiaridade de suas relações com os Estados Unidos. (p. 21)

(…)

Os Estados Unidos se diferenciam de outra qualquer nação moderna pelo fato de que sua formação histórica realizou-se em condições ideais de segurança exterior. (…) Os ingleses preservaram o Canadá, mas ao mesmo tempo transformaram a sua poderosa frota no principal instrumento da segurança exterior dos Estados Unidos. Como nenhuma nação americana, ou grupo de nações americanas, constituía perigo real ou potencial para os Estados Unidos, desde que a frota inglesa pudesse ser utilizada para prevenir a interferência de qualquer outra nação europeia no Hemisfério, os Estados Unidos gozavam de condições ideais de segurança, sempre que renunciassem a quaisquer pretensões sobre o Canadá. Esse sistema de segurança foi definido na chamada Doutrina Monroe, para cuja formulação contribuíram decisivamente os ingleses. Essa Doutrina tanto pode ser interpretada em termos de definição de uma área de segurança por parte dos Estados Unidos, a qual somente tem sentido se toma-se em consideração o papel que cabe ao poder naval inglês, como em termos de política inglesa decidida a afastar das Américas as demais potências europeias, com vistas a formar um espaço econômico sob sua hegemonia. Com efeito, os dois objetivos foram perfeitamente conciliáveis durante todo um século. (p. 23)

O mundo do pós-guerra nasceu, portanto, marcado por dois fatos fundamentais: a polarização do poder e uma divergência fundamental entre as duas superpotências com respeito à forma de autolimitar-se no exercício do próprio poder a fim de criar condições de convivência internacional. A União Soviética partiu para a criação de uma “esfera de influência”… os Estados Unidos, por seu lado, orientaram-se no sentido de organização de uma sociedade internacional “aberta” dentro da qual o seu enorme poder econômico lhe permitiria assumir facilmente a liderança. (p. 23)

(…)

Era da essência da “guerra fria” o não reconhecimento da esfera de influência da União Soviética. (…) (p. 29)

(…)

Uma nova ordem internacional se está gestando, na medida em que se tornam obsoletos os processos da guerra fria. A forma que assumirá o novo sistema de organização internacional ainda não pode ser vislumbrada com nitidez. (…) (p. 33) 

(…)

A América Latina confronta-se, presentemente, com a necessidade iniludível de ter que introduzir profundas modificações no seu marco institucional a fim de abrir-se o caminho do desenvolvimento. Essas modificações terão de orientar-se em três direções: (…) (p. 39)

Portanto, é fácil inferir que, na América Latina, o desenvolvimento não pode ser simples resultante das forças que operam espontaneamente nos mercados. (…) (p.40) 

O principal problema que se coloca, do ponto de vista da América Latina, é o de indagar que tipo de organização política poderá ser compatível, nos países latino-americanos, com um sistema econômico regional principalmente controlado por poderosas sociedades anônimas norte-americanas. É fácil inferir que os setores produtores de bens e serviços, em que o avanço tecnológico desempenha papel mais relevante, serão os preferidos por essas grandes empresas… as grandes sociedades anônimas norte-americanas são poderosas burocracias privadas, que exercem funções públicas ou semi-públicas, cuja integração na sociedade política dos Estados Unidos constitui, até o presente, um problema de solução indefinida… até o presente não se encontrou uma forma de integrar essas grandes organizações, cujas funções são cada vez mais de natureza pública, na estrutura de uma sociedade política pluralista… o governo torna-se cada vez mais impotente em face dessas grandes empresas… a direção de uma grande sociedade anônima não deriva o seu poder de ninguém, senão dela mesma: é uma oligarquia que automaticamente se autoperpetua.” (A. Berle) O grande poder que enfeixam, presentemente, as grandes empresas, não tem o menor título de legitimidade. (…) (p. 43)

Convocadas para atuar na América Latina com uma série de privilégios, fora do controle da legislação antitruste dos Estados Unidos e com a cobertura político-militar desse país, as grandes empresas terão necessariamente que transformar-se em um superpoder em qualquer país latino-americano. (…) (p. 44)

Esse “projeto” de desenvolvimento regional, tendente a tornar obsoleta a ideia de nacionalidade como principal força política na América Latina, apresenta muito atrativo para importantes setores das classes dirigentes locais, que veem aí uma fórmula hábil para esvaziar o nacionalismo, ao qual atribuem grande responsabilidade pela presente inquietação social. (…) (p. 44)

(…) Existem amplas razões que levam a crer que um tal “projeto de desenvolvimento” é inviável nas presentes condições históricas da América Latina. E que a grande empresa norte-americana parece ser um instrumento tão inadequado para enfrentar os problemas do desenvolvimento latino-americano quanto um poderoso exército motorizado resulta ser ineficaz ao enfrentar uma guerra de guerrilha. (…) (p. 45)

(…) Ao contrário do que se pretende veicular, o princípio da nacionalidade é vital na atual fase de desenvolvimento latino-americana. Toda autêntica política de desenvolvimento retira a sua força de um conjunto de juízos de valor nos quais estão amalgamados os ideais de uma coletividade… Toda medida que se venha a tomar no sentido de enfraquecer os estados latino-americanos como centros políticos capazes de interpretar as aspirações nacionais e de aglutinar as populações em torno de ideais comuns, terá como resultado limitar as possibilidades de desenvolvimento da região. (…) (p. 45 e 46) 

Ceci Juruá, ICF / APD
Rio de Janeiro, 30 de junho de 2025.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Ceci Juruá

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