O Pakapaka — site e canal públicos de televisão argentino com programação dedicada a crianças de 2 a 12 anos e suas famílias — no fim de maio trouxe uma novidade que, apesar do tom de celebração, acendeu luzes de alerta. Na publicação, feita em sua conta oficial no X, o portal anunciou que, em julho, chegará a “nova programação pensada para divertir, surpreender e acompanhar crianças de até 12 anos… sem linha ideológica e com foco nos valores”.
O esclarecimento, por si só, já era uma confissão às cegas: o canal infantil criado em 2010 passará por uma forte reconversão libertária. O que se lia em seguida não deixava dúvidas: anunciavam que Zamba, o icônico menino de Clorinda que sempre foi o anfitrião da tela, estava sendo “arrumado” (!). E como se isso não fosse suficiente, entre os títulos internacionais, quase de passagem, divulgaram que a série Tuttle Twins se somaria à programação — um programa que, em sua biografia, se autodefine como um ciclo “que ensina às crianças ideias sobre liberdade e economia”, utilizando inclusive a hashtag #Bitcoin. O que não se disse, porém, é que não há dinheiro para a produção nacional, mas sim para pagar centenas de milhares de dólares na aquisição de séries animadas.
A contradição entre o que foi anunciado e o conteúdo mostrado no trailer da nova programação é absoluta. Enquanto o canal afirma que a renovada grade que estreará em julho não terá “linha ideológica”, estreiam uma série cujo único objetivo é reivindicar e divulgar — sem meias-palavras — as ideias econômicas do liberalismo extremo. Tuttle Twins é uma série em que uma avó em cadeira de rodas viaja no tempo para levar seus netos a distintas “aventuras para aprender sobre liberdade e economia”, segundo a descrição oficial. Assim, por exemplo, em um dos episódios, aparece Ludwig von Mises — um dos maiores expoentes do movimento libertário — ensinando sobre os efeitos negativos dos subsídios, ou criticando o protecionismo. Todos os episódios são voltados à divulgação das ideias libertárias que o governo de Javier Milei apresenta como panaceia.
Mas o universo libertário não se faz presente apenas nos episódios. Em sua conta oficial no X, @TuttleTwinsTv, a série “sem linha ideológica” milita abertamente e sem pudor por toda uma cultura, a saber: retuitou o anúncio da conferência “Bitcoin2025”, realizada de 27 a 29 de maio em Las Vegas, e respondeu com um emoji “100” a uma mensagem que afirmava que o maior problema da atualidade é a “falta de masculinidade” na sociedade. E isso não é tudo: na conta oficial do desenho, produzido pela empresa de conteúdo religioso Angel Studios, foi realizada, no dia 1º de maio, uma enquete com a pergunta “O que é pior?”, oferecendo duas opções: a) Água com gás; b) Pagar impostos. A opção “Pagar impostos” venceu com 94%. A brutal doutrinação se multiplica na conta no X do desenho animado “pensado para divertir, surpreender e acompanhar crianças de até 12 anos”, conforme anunciou a atual gestão de Pakapaka em suas redes institucionais.
Mas a série libertária não é a única contradição evidente em Pakapaka sob a intervenção de Eduardo González. Há outro fato que não se pode ignorar: por trás do brutal ajuste imposto aos trabalhadores e à produção de conteúdos próprios, há muito dinheiro destinado a outras coisas. Assim, por exemplo, foi anunciado com estardalhaço que a programação contará com Dragon Ball Z, a clássica série de anime criada por Akira Toriyama. Um desenho animado de alta qualidade, pelos direitos de transmissão do qual, segundo confirmou o jornal Página/12, o Estado Nacional desembolsará 163 mil dólares (mais IVA). Um valor elevado para um desenho que pode ser assistido em outras plataformas (Prime Video, YouTube) e meios (o Cartoon Network o transmitiu até há pouco tempo), e levando em conta que só por essa franquia gastou-se mais do que todo o orçamento anual que o Pakapaka teve em 2023, que foi de 120 milhões de pesos. A comparação com 2023 é pertinente porque, além disso, foi o último ano em que o canal contou com orçamento próprio.
Um ponto que chama a atenção é que a compra da série japonesa, que segue as aventuras guerreiras de Goku e seus amigos, não seguiu o trâmite habitual pelo qual o canal adquire material audiovisual para sua grade. De fato, para adquirir um conteúdo, o caminho usual tem como primeiro passo a realização de um pedido formal à área de compras da empresa Contenidos Públicos (Conteúdos Públicos, em tradução literal), dando início ao processo; em seguida, o diretor (Walter Gómez) assina, depois o documento vai ao departamento jurídico para definir termos e condições, retorna ao setor de compras, onde o contrato é finalizado e o pagamento é feito conforme acordado. Mas algo aconteceu nesse processo…
Segundo se depreende da documentação à qual teve acesso o Página/12, o diretor do canal, Walter Gómez, solicitou a abertura do processo administrativo em Contenidos Públicos no dia 30 de abril deste ano (NO-2025-45620428), para a “contratação direta dos direitos não exclusivos” de diferentes capítulos e temporadas de Dragon Ball Z, que são listados com nomes, episódios e duração. Na solicitação, o diretor da emissora detalha que o fornecedor da série é a “Trinity Distribuição e Produção S.A.”, uma empresa “reconhecida internacionalmente por fornecer material de alta qualidade” e legítima detentora dos direitos de comercialização e distribuição da obra audiovisual japonesa. Segundo argumenta Gómez, para justificar a compra, o anime “contribui com conhecimentos, espaços de reflexão e cultura à tela de Pakapaka”. A contraprestação pela aquisição dos direitos também está claramente especificada: “O orçamento total corresponde à soma de USD 163.000 + IVA”.
“Este expediente foi aberto na Contenidos Públicos, mas em algum ponto foi interrompido. E pelo que parece, foi canalizado por outra área, provavelmente Rádio e Televisão Argentina, embora possa ter sido qualquer outra”, afirmou uma fonte do canal que prefere permanecer no anonimato para evitar represálias. A pergunta é óbvia: por que o contrato de aquisição de Dragon Ball Z começou na Contenidos Públicos, com um desembolso final próximo dos 200 mil dólares, mas acabou sendo executado por outra área? O Página/12 tentou entrar em contato com algum funcionário da área para obter detalhes sobre a contratação do conteúdo estrela do relançamento, mas não obteve resposta.
Vale lembrar que, em 2021, após uma denúncia recebida pela Defensoria Pública da Argentina, o Cartoon Network decidiu retirar Dragon Ball Z da sua programação. Naquela ocasião, o canal considerou que a denúncia tinha fundamento, já que o episódio em questão continha uma “cena de abuso e submissão por parte de um homem adulto mais velho em relação a uma adolescente”, o que “é extremamente inconveniente frente à problemática do abuso sexual na infância e adolescência, pois naturaliza o abuso”. No episódio, o Mestre Kame pede a um aluno que lhe permita usar os “serviços” de sua mascote mágica, para que “se transforme em uma bela jovem”, porque, acrescenta: “meu ponto fraco são meus pensamentos pervertidos, que desejo superar”. Em seguida, aparece uma cena explícita de violência sexual e ausência de consentimento entre a mascote transformada em mulher e o Mestre Kame. “Com quem não gosta de Dragon Ball, eu nem converso”, afirmou recentemente — com a liberdade que caracteriza o governo — Gómez, o diretor de Pakapaka, em uma entrevista concedida ao streaming libertário Carajo, sob aplausos e comemorações de apresentadores e comentaristas.
A situação de Pakapaka é complexa. À falta de produção própria, soma-se a situação dos trabalhadores de planta da Contenidos Públicos, que passaram de 172, em dezembro de 2023, para atuais 130, após o programa de demissão voluntária promovido pelo governo. A situação se agrava ao considerar que estão com reajuste salarial zero desde outubro do ano passado — o que contrasta com os novos cargos hierárquicos que foram criados nesse período na Contenidos Públicos, onde o atual porta-voz presidencial e deputado eleito pela Cidade de Buenos Aires, Manuel Adorni, exerce particular influência. Desde que a gestão do governo Milei assumiu o Pakapaka, foram criadas a Gerência de Jornalistas (sob responsabilidade de Rodrigo Calegari), a Gerência Institucional (Pablo Lamon), a Gerência (Daiana Astobizia), a Coordenação (Federico Fernández Valenti), além do caso de Ezequiel Acuña, que, com salário de diretor, é responsável pelas redes sociais. A nova gestão levou muito a sério o jogo “de esconde-esconde”, significado em quéchua do nome Pakapaka.
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* Imagens na capa:
– Javier Milei: Gage Skidmore / Flickr
– Pakapaka: Reprodução / Facebook