A pandemia da Covid-19 não é a causa de uma grande crise econômica, mas só a acelerou. Essa crise já era efetiva antes que esta praga viesse precipitar sua expansão. Por sua vez, para abordar outro aspecto da questão, em abril Richard Haass, presidente do Council on Foreign Relations publicou um corajoso artigo no Foreign Affairs, na qual sustenta que a pandemia, mais do que provocar uma nova situação, desnuda e fortalece certos traços da geopolítica mundial que já estavam presentes. E afirma que quando a pandemia terminar, terá deixado uma liderança estadunidense diminuída, uma cooperação internacional incerta e mais discórdia entre os grandes poderes globais. O que não vai constituir outro cenário, mas sim o seu agravamento, justamente quando mais se necessitará o contrário.
Essa dimensão política e diplomática da crise não começou agora. Antes da Covid-19, recorda Haass, os Estados Unidos já estavam longe de constituir um exemplo capaz de sustentar uma liderança. O modelo estadunidense havia caído pelo persistente estancamento político, pela violência armada, pela má gestão que conduziu à crise financeira mundial de 2008 e pela praga de opioides, ademais da tardia, incoerente e ineficaz resposta estadunidense à pandemia, que motivam a percepção global de que esse país perdeu o rumo. Hoje em dia, conclui Haass, ninguém pode superar sozinho um problema desta magnitude, nem da crise climática, depois que as políticas de Washington prejudicaram as condições para a cooperação com a China e as demais potências.
Embora Haass se centre no caso estadunidense, o faz com uma visão global que também abarca os demais países, em seus acertos e falhas. A pior das quais é dar por consensual que a realidade que virá após a pandemia – seja uma nova ordem mundial, o fim do globalização ou outra fantasia previsível – será um desenlace que acontecerá por si só, em lugar de ser produto da ação humana; ou seja, dos desafios nacionais e transnacionais entre as propostas e iniciativas dos grupos e lideranças que vão querer impor uma ou outra alternativa.
Em todo caso, a praga da Covid-19 que agora precipita estas consequências surgiu encavalada sobre uma ameaça econômica que já tensionava o planeta. Hoje esta pandemia acelera e agrava essa crise e lhe imprime certo viés e prioridades, mas ela continuará ativa quando a ciência conseguir superar o coronavírus. Por outro lado, essa praga contrasta com às nove mortíferas pandemias do século XX, pois nenhuma delas antecipou uma mudança de época, como sucede agora. Por conseguinte, examinar a crise econômica subjacente é indispensável para vislumbrar qualquer futuro.
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Examinar a crise econômica é indispensável para vislumbrar qualquer futuro
Colapso previsível
Este colapso econômico vinha se incubando há anos; é efeito dos grandes desequilíbrios acumulados pelo capitalismo contemporâneo durante as últimas décadas. Como recorda William Robinson, antes desta pandemia os Estados Unidos já mostravam sintomas de uma crise com aspectos de superacumulação e estancamento e, que também na Europa, dava sintomas recessivos. E enquanto grande parte da América Latina e da África entravam em recessão, a Ásia prolongava uma baixa de crescimento. Ao surgir nesse cenário, a Covid-19 paralisou a maior parte da força de trabalho mundial e generalizou uma calamidade que já afetava vários pontos do planeta.
Mas, como agrega o argentino Claudio Katz, diferentemente da crise que emergiu em 2008, desta vez a pandemia disparou o problema desde seu âmbito financeiro – hoje mais centrado nas dívidas das empresas e dos Estados Nacionais – sobre a totalidade do sistema. Em breves dias cortou os fornecimentos nas cadeias globais de valor e resultou na maior queda de Wall Street em 30 anos, e um episódio de superprodução que afundou os preços do petróleo.
Isto é um duro golpe às políticas neoliberais, ao generalizar um intervenção estatal cujo alcance e duração poderão superar os de 2008. Diante do drama sanitário essa intervenção é recebida com alívio pela maior parte das pessoas e vista como alternativa para resolver outros problemas. Os tutores do neoliberalismo têm motivos para temer que isto leve à reversão da exaltação privatizadora e mercantilista das últimas décadas, que tão graves danos têm provocado a outros setores tão sensíveis como os de moradia, transporte público, educação e alimentação popular.
A instrumentação da agenda neoliberal – desnacionalizar e privatizar tudo o que se possa, diminuir o Estado, desregular a economia, desatar sem restrições “as forças do mercado” e facilitar o saque corporativo transnacional –, requereu acabar tanto com as antigas como as recentes conquistas e direitos sociais e democráticos.
Como sustentava o mexicano Alejandro Nadal, o setor financeiro impôs sua racionalidade à economia para incrementar sua rentabilidade mediante a especulação, e assim a política macroeconômica passou a responder às demandas do capital financeiro, e não às necessidades e expectativas sociais. Com isso o mercado internacional, tutelado pelo capital financeiro através das transnacionais, hegemonizou o processo de globalização. Como observa o panamenho Guillermo Castro Herrera, isto implicou em um incremento sustentado de circulação de capitais e mercadorias até pôr em crise os organismos de tutela internacional criados na segunda metade do século anterior.
Não obstante, no fim o manejo neoliberal da globalização causa uma gradual desaceleração e estancamento econômicos, ao priorizar a taxa de lucros, suscitando a queda do investimento. Além disso, marginaliza o setor produtivo e desestimula as inovações tecnológicas e competitivas oferecidas pela terceira e quarta revoluções industriais, e com isso os segmentos mais inovadores do capital são prejudicados por uma política econômica que dificulta o desenvolvimento e o aproveitamento das forças produtivas.
Nos últimos anos, a ofensiva política e ideológica das direitas procurou uma saída estatal a esses fatores de estancamento e crise. No entanto, apesar de haver ocasionado derrotas políticas às esquerdas, seu esforço por restaurar a hegemonia liberal germinou em terreno instável. A gestão neoliberal agrava o desemprego e a informalidade, a carestia, o deterioração dos serviços públicos, a insegurança social, o deterioração ambiental. Apesar do refluxo das esquerdas, o inconformismo social cresce e demanda orientação política.
Antes da aparição do coronavírus já proliferavam os protestos populares na Catalunha, na Colômbia, no Chile, no Equador, na França, no Haiti, em Hong Kong e Porto Rico, aparte do incremento dos degelos polares e dos grandes incêndios na Amazônia, na Austrália, na Bolívia, na Califórnia e na Sibéria. Embora o grande capital, servindo-se da política e dos preconceitos conservadores, domine os meios de comunicação de maior difusão, é óbvio que quando amaine a epidemia ressurgirão as rebeliões sociais, posto que durante este período suas causas se agravarão.
Resulta trivial o estribilho sobre o “regresso” a uma “nova normalidade”. Haverá por acaso um passado ao qual voltar com apenas um certo verniz de novos hábitos? Não foi na passada “normalidade” que foram engendradas as causas o presente desastre? E, quem implantará essa “nova ordem”? Se o mais apregoado dessa normalidade é lavar as mãos – e volver ao mesmo, como em 2008 – então o que propõem é retornar a Pôncio Pilatos.
Não em vão, o drama e o desafio do qual hoje todos somos parte – diante da questão sanitária e uma maior polarização social – antecipa maus sinais, como o emprego repressivo da quarentena e do “distanciamento social” (como no Chile, na Bolívia e no Equador) para impedir assembleias e reclamações, ou como a sutil afloração de certo novo autoritarismo aplicado em outros países. Além disso, o desejo de voltar à “normalidade” é usado para promover uma “nova” direita populista.
Mas a atual conjuntura também move relevantes reivindicações, como a revalorização da saúde como bem público e, com ele, a de outras reivindicações igualmente humanitárias, como a alimentação popular, a segurança social e trabalhista, o controle da usura e do despejo, e as exigências de equidade econômica e castigo à corrupção. Mas estas expectativas só se concretizarão onde as organizações sociais envolvidas desenvolvam, com a mobilização cidadã, o poder popular necessário para se materializar.
Além da pandemia que hoje realça a questão, o assunto é que, além da crise econômica, nós estamos no meio de uma transição que não dará marcha a ré: enrolados entre o refluxo de uma época e a emergência de outra. E a visão das vicissitudes políticas e socioculturais dessa virada estará mais cheia de incertezas quanto mais demorarmos em dirimir o essencial: que mudanças desejamos, quais não estamos dispostos a aceitar, e com que forças de apoio popular poderão contar as opções para que essa transição tome o rumo desejado.
Essas forças têm que ser reunidas. Em tempos de crises históricas, surgem novas demandas emancipatórias, outros modos de pensar e fazer política, e novas formas de liderança. O impulso progressista que agora o anseio de fazer a revolução democrática que as passadas gerações não puderam nos legar, não vem de uma proposta ideológica dominante. Mas pode construir uma convergência de forças com base em um conjunto de reivindicações comuns, como esforço de libertação e reconstrução nacionais.
Se queremos compartilhar um futuro que valha a pena depois da Covid-19, há muito por fazer.
Nils Castro, Colaborador de Diálogos do Sul desde o Panamá