A “onda rosa” ou progressista que se desencadeou na América Latina nas primeiras décadas deste século apontava, por um lado, para mudanças nos modos de vida e de ser das sociedades latino-americanas, marcadas por governos que buscaram a conjugação entre crescimento econômico e justiça social; por outro, as contradições deste movimento revelaram o tensionamento das aparências de transformação pela via de reformas, as quais, na prática, expressavam as razões de ser do capitalismo neoliberal.
Historicamente, a questão social se encara sob a lente dos instrumentos diretos de repressão estatal. Desse modo, a ressaca da onda impulsionada no início dos anos 2000 tem um ponto nodal na conjuntura em que a crise desvelada passa a ensejar o que, para Andrew Reitter (2019), se buscou chamar de remilitarização social da América Latina. Tal concepção é curiosa, pois parece trazer uma conotação de algo que já foi (que em algum momento se extinguiu) e que retorna, negando a continuidade e o caráter permanente do fenômeno que se estabelece e se enraíza na organização social como instrumento à colonização e ao imperialismo (e, portanto, da expansão comercial inerente ao capitalismo).
Palácio do Planalto
O fenômeno de militarização da vida social persistiu mesmo após a queda das ditaduras latino-americanas.
Nesse sentido, vale reproduzir um trecho da obra Os condenados da Terra de Frantz Fanon, que retrata a organização da realidade social no contexto de colonização francesa da Argélia, no qual Fanon (1968, p. 28) aponta a compartimentação das cidades dentro de um espaço posto sob jugo colonial. Ele afirma que “a linha divisória, a fronteira, é indicada pelos quartéis e delegacias de polícia. Nas colônias, o interlocutor legal e institucional do colonizado, o porta-voz do colono e do regime de opressão é o gendarme ou o soldado”.
Não é a proposta deste texto realizar uma análise mais profunda sobre as razões militares do processo de afirmação histórica do capitalismo dependente na América Latina, o que remonta ao colonialismo europeu e que, igualmente, permeou as ditaduras civil-militares do século XX, assim como as políticas públicas contemporâneas destinadas a promover o genocídio e a higienização social no espaço urbano por meio da atuação das polícias militares e das forças armadas na segurança pública. Não se trata, portanto, de um fenômeno social que se encerre em um período histórico e ressurja ou retorne posteriormente, mas da condição própria da sociabilidade presente, cujas bases se firmam desde a colonização e que se mantêm em uma constante (em atual escalada) na formação política e social da América Latina sob a égide do capital.
A segunda metade do século 20, sobretudo entre as décadas de 1960 e 1980, foi marcada por brutais ditaduras civil-militares no Cone Sul, depostas por processos de transição democrática ocorridos ainda nos anos 1980, por meio dos quais se instauraram regimes políticos centrados no paradigma da democracia liberal. O fenômeno de militarização da vida social persistiu mesmo após a queda das ditaduras latino-americanas.
Para o sociólogo Ruy Mauro Marini (2018), a transição democrática preservou a essência do Estado de contrainsurgência por meio da institucionalização da determinação do capital na política econômica e da subordinação estatal às forças militares, as quais exerceriam funções de controle e vigilância sobre o conjunto das instituições estatais.
Covid
O cenário de crise social, agudizado sob a vigência de uma situação de calamidade pública internacional, expõe as contradições da sociabilidade presente, tornando ainda mais evidente o contínuo caráter militar de nossas sociedades. A pandemia global da Covid-19 está agravando o processo de militarização social na América Latina, o que não é um fenômeno novo, como já mencionamos, mas que está sendo intensificado.
A análise da militarização da vida social na atual pandemia parte dos governos de direita a partir das reações aos recentes processos de insurreição popular que ocorreram (e que ainda estão ocorrendo) com o intuito de refletir de que maneira o atual processo de militarização desencadeado sob o pretexto do combate à pandemia pode também servir (especialmente) à contenção dos movimentos contestatórios da ordem capitalista na região.
Como aponta Raúl Zibechi (2020), o controle social provocado pelo enfrentamento da pandemia contribui no intento das classes dominantes de “manter os de baixo na linha, em períodos de profundas convulsões econômicas, sociais e políticas” características da crise do sistema capitalista”.
Em muitos países latino-americanos, as Forças Armadas desempenham funções cotidianas, desenvolvendo ações voltadas à segurança pública, à repressão ao tráfico de drogas e ao crime organizado. Contudo, no atual contexto pandêmico, os militares têm ganhado ainda mais protagonismo, atuando no enfrentamento da crise da coronavírus de forma repressiva e autoritária contra a população, sob o pretexto de garantia da ordem e do isolamento social.
O teórico Giorgio Agambem (2020, p.19) aponta como um elemento a ser considerado o fato de que o estado de medo empreendido e disseminado, consciente e inconscientemente, nas pessoas significa a expressão da “necessidade real de estado de pânico coletivo” e, nesse sentido, a pandemia cumpre um papel importante, pois representa o pretexto para a intensificação de generalização do temor social. O controle social intensificado, sobretudo por medidas pautadas na presença do Exército e de forças policiais nas ruas, revela que a limitação da liberdade das pessoas por meio de medidas de isolamento social ganha aceitação em razão de um sentimento de segurança.
A gestão da crise tem acelerado o processo de militarização do controle exercido sobre a população, permitindo às corporações militares o controle ostensivo dos espaços públicos, muitas vezes realizado de modo violento e abusivo. A configuração de determinados traços característicos de “estados de exceção” aponta para o risco de uma escalada autoritária em muitos países latino-americanos governados por partidos políticos liberais e conservadores.
O vocabulário bélico tem sido muitas vezes invocado para caracterizar as medidas de contenção da pandemia. Fala-se em uma “guerra contra o coronavírus”, ou ainda na necessidade de aprovação de um “orçamento de guerra” (para se referir ao aumento de gastos públicos no enfrentamento da crise). São vastas as expressões do fenômeno da militarização social decorrentes da gestão da crise sanitária vivida em Nuestra América. Nesta conjuntura, qualquer cidadão que circule pelos espaços públicos é considerado um possível vetor de propagação do vírus, podendo caracterizá-lo desta maneira como “inimigo interno” em potencial da ordem e da segurança nacional.
As desigualdades sociais e a existência de grandes contingentes populacionais vivendo em condições precárias em toda a América Latina faz com que a região seja umas das mais vulneráveis à propagação viral. Desse modo, medidas de prevenção e isolamento social têm se mostrado necessárias e eficazes ao controle da pandemia. Todavia, é preciso alertar sobre o papel atribuído e desempenhado pelas forças militares na administração da crise provocada pela Covid-19, assim como suas possíveis implicações para a vida social no pós-crise.
A militarização social e as políticas de isolamento não são indissociáveis nem coabitam impreterivelmente o mesmo espaço (no sentido de ser possível existir um isolamento sanitário não militarizado), mas entendê-las como sintomas da crise se mostra um caminho para a compreensão de tal problemática. Políticas de enfrentamento da crise que contem com a participação ativa de militares têm tido espaço em muitos governos, assinalando a intensificação de processos de militarização das sociedades e das crises na América Latina.
Nesse sentido, especialmente, a pandemia tem “justificado” contornos de aceitação de um certo protagonismo das Forças Armadas, acentuando não apenas o controle social formal, mediante o aparelho repressivo do Estado (que, sob o véu de promoção de medidas de segurança nacional detém o monopólio legítimo do uso da força), mas também o papel garantidor da reprodução e do desenvolvimento da ordem capitalista na periferia do sistema.
Gabriel Dib Daud De Vuono é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (PROLAM/USP). Pesquisador associado do Centro Latino-Americano de Estudos em Cultura (CLAEC Brasil). E-mail: gabriel.devuono@usp.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9856-1575.
Fernanda Durazzo de Oliveira (Universidade de São Paulo – Brasil) é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (PROLAM/USP). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: fernandaduoli@usp.br
Suzana Maria Loureiro Silveira e mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação stricto sensu da Faculdade de Direito (PPGD) da Pontifícia Universidade de Campinas (PUCC). Integra o Grupo de Pesquisa Direito e Realidade Social. E-mail: suzanamlsilveira@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8454-9532.
Referências bibliográficas
AGAMBEM, Giorgio. La invención de una epidemia. IN: AGAMBEM, Giorgio, et al. Sopa de Wuhan. ASPO, 1ª ed, 2020.
FANON, Frantz. Os condenados na Terra. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968.
MARINI, Ruy Mauro. O Estado de contrainsurgência. Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas, v. 12, nº 3, 2018, p. 1-15.
REITER, Andrew G. A remilitarização da América Latina. Jacobin Brasil, 2019. Disponível em: https://jacobin.com.br/2019/08/a-remilitarizacao-da-america-latina/. Acesso em 31 de maio de 2020.
ZIBECHI, Raúl. Coronavírus: a militarização das crises. In: DAVIS, Mike, et al: Coronavírus e a luta de classes. Terra sem Amos: Brasil, 2020.
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