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ToggleNo Paraguai, nos dias 2 e 3 de fevereiro, mudou o regime político, mas se manteve inalterada a matriz corrupta do Estado.
A ditadura encabeçada por Alfredo Stroessner e alentada pela Doutrina da Segurança Nacional no marco da Guerra Fria, sustentada firmemente pelo imperialismo estadunidense constitui um dos exemplos extremos de terrorismo de Estado.
O sucessor, Andrés Rodriguez, surgido da própria ditadura, manteve a aliança que lhe deu suporte: Governo – Forças Armadas – Partido Colorado, com a ideia-força de que “governar é sinônimo de delinquir”. (ña manda há ña monda)
No tempo transcorrido a democracia se degradou juntamente com as condições de vida do povo trabalhador e da vexação de seus direitos civis e políticos.
Afirmou-se a política neoliberal com a forte expansão do empresariado da soja e pecuária, o apoio dos bancos privados, e as contas no exterior e em paraísos fiscais às quais derivam os exorbitantes ganhos que nunca foram investidos em benefício da população em geral.
Assim uma das regiões mais arborizadas do planeta foi se deteriorando pondo em risco o Aquífero Guarani por causa do contínuo e criminoso desmatamento.
Os Povos Originários são vítimas permanentes de deslocamento ante a presença de novos patrões com títulos ilegais para se beneficiarem das indústrias extrativistas. O mapa social do Paraguai deixou de ser camponês, a luta pelo direito à terra continua de forma sustentada por suas organizações, mas não se vê uma solução a curto prazo. Entretanto, os desalojados do campo, continuam acrescentando as margens dos centros urbanos – sem infraestruturas adequadas – em condições de enorme fragilidade humana.
As contínuas inundações tornam visível o problema com a acumulação de casas de plástico e chapa em praças e ruas de Assunção que contrastam com os anúncios oficiais. Praças gradeadas e o traslado do centro histórico comercial tentam capturar investidores para muito perto da sede da CONMEBOL…sem maiores resultados. É difícil de explicar a febre de construções de altos edifícios sem desenho compatível com o clima tropicalizado.
A Promotoria de Direitos Humanos esqueceu sua missão de investigar cada um dos membros das Forças Armadas e de Segurança
A Constituição de 1992 e os direitos humanos
Trinta anos com avanços jurídicos: uma Constituição de 1992 que consagra os Direitos Humanos em um contexto de impunidade permanente. O primeiro e maior acervo documental do Terrorismo de Estado que permite compreender as origens e finalidades dos ataques atuais suportados pelos países da Pátria Grande.
O acervo documental que tive a honra de descobrir em 22/12/1992 – Arquivo do Terror do Plano Condor – e os outros que fomos aportando depois, permitiram julgamentos em vários países, mas nenhum no Paraguai. As provas que possibilitaram a sentença histórica do Tribunal Oral Federal de Buenos Aires, em 27/05/2016, saíram desses arquivos e veio confirmar a existência de uma aliança de governos latino-americanos para a morte e à qual chamaram de “Condor” e que foi um autêntico plano trabalhado, com o saldo de milhares e milhares de mortos e desaparecidos. Até o momento, 100 paraguaios na Argentina, mais os quase 500 registrados no Paraguai.
Com Stroessner se instaurou o reinado da impunidade sob um estado de sítio durante mais de 35 anos com leis liberticidas ironicamente chamadas de “Defesa da Democracia”, “Defesa da Paz Pública e da Liberdade das Pessoas”. Stroessner pensou haver conseguido assim a “democracia sem comunismo”.
Nestes últimos meses, voltamos a escutar palavras e observar condutas preconceituosas que na ditadura serviram para condenar e converter em vítimas a inúmeras pessoas. Os trinta anos nos obrigam a ver a realidade nacional desde diversos planos, e o desejo de destacar alguns de origem positiva.
Comissão da Verdade e da Justiça
A criação de comissões investigadoras. A primeira foi a do Congresso Nacional. Depois, diante da ineficácia da Justiça, as vítimas e organizações especializadas conseguiram criar a Comissão da Verdade e da Justiça (2003/2008) mediante a Lei nº 2225/03. Em seu Relatório Final se encontram as cifras oficiais de mortos, desaparecidos, exilados e os nomes de mais de 600 repressores identificados; e o testemunho de mais de 7.851.295 de hectares de terras improdutivas que seriam destinadas para a reforma Agrária, entregues a militares, amigos da ditadura e empresários nacionais e estrangeiros.
Conclusões definitivas e 270 recomendações, escassamente cumpridas no breve parêntesis do governo Fernando Armindo Lugo… e cada vez mais esquecidas oficialmente.
A nova Constituição possibilitou a criação da Defensoria do Povo, recém em 2001, quando o governo Colorado conseguiu impor seu corrupto candidato Manuel Maria Páez Monges. O Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura, depois que a tortura foi incorporada ao Código Penal do Paraguai e mesmo assim, os crimes de lesa humanidade – que não prescrevem – continuam impunes. O Mecanismo também contribuiu para fazer visíveis os milhares de pessoas encarceradas no país, em condições desumanas e sem processo (irracionalidade da prisão preventiva neoliberal).
O Ministério da Defesa Pública e o Ministério Público com resultados lentos e pouco eficazes, ante o aumento da pobreza estrutural e da corrupção impune contrastada com os anunciados planos de transparência e portais digitais de acesso cidadão à informação.
Graças a investigações impulsionadas pela cidadania foi possível conhecer a dramática realidade da educação; a analfabetismo e a escassa relevância da educação técnica. Uma Reforma Educativa financiada pelo Banco Mundial foi um paliativo de muitos anos. O direito à palavra na língua guarani foi um avanço a felicitar.
O espectro comunicacional ampliou-se com a urgência de liberdade e surgiram centenas de rádios comunitárias de grande benefício para os pequenos povoados, mas altamente combatidas pelos organismos oficiais. Surgiram novos periódicos, e meios manejados do entorno do poder ou da oposição, mas também estimulantes propostas independentes e até estudos universitários para a formação de comunicadores para o desenvolvimento.
Novas Universidades brindam acesso a numerosos estudantes em todo o país. A qualidade delas é muito variada, mas a abertura e generosa e promissória. A qualidade se constrói.
Os bens mal havidos não foram recuperados para contribuir de algum modo para a reparação que estabelece a Resolução 60/147 da ONU. Por isso, as ações dormidas na Justiça Nacional passaram a ser casos da Corte Interamericana de Direitos Humanos, e várias com sentença firme, embora com a firme reticência do Estado Paraguaio para cumpri-las.
Paraguai percorreu o caminho da Justiça de Transição com julgamentos éticos, investigações, arquivos, ações, julgamentos civis, comissões da verdade, mas 30 anos são escassos para mudar uma cultura autoritária e corrupta, que consegue estar em vigência agora, precisamente porque seus pais conseguiram, com suas fortunas mal havidas, sustentar os altos estudos de seus filhos que não têm competência para dominar com influência os espaços cedidos à meritocracia.
A resistência nas ruas, como aquela histórica Marcha do Silêncio de 1988, permitiu o julgamento de alguns deputados e senadores integrantes da trama mais sólida do poder corrupto. Aqueles que não querem impostos ao tabaco, à soja e à melhor carne de exportação. Isso juntamente com Governadores e Chefes Municipais que derivaram para as campanhas eleitorais e para bolsos burocráticos os aportes originados em um fundo especial dos ganhos da represa binacional de Itaipu para reforma de edifícios escolares, melhorias na educação e alimentos para escolares, constituem alguns dos mais horríveis casos de corrupção. Muitas escolas ruíram, e não se sabe até agora se foram restabelecidas.
Massacre de Curuguaty e impunidade
O massacre de Curuguaty em junho de 2012 sobre a qual já se falou muito, conseguiu um segundo julgamento que anulou o anterior, mas não as consequências nas vidas dos camponesas e camponeses presos durante anos. Os responsáveis nacionais e internacionais ainda estão impunes. Outros seis líderes camponeses continuam em injusta prisão há anos.
Com as possibilidades dadas pela nova estrutura judicial, as provas do Arquivo do Terror, hoje foi elevado à categoria de Museu da Justiça ou INJUSTIÇA; a Promotoria de Direitos Humanos não avançou nas investigações de sua responsabilidade contra os membros das Forças Armadas e Policiais. E inclusive freou o recurso da Jurisdição Internacional deixando a denúncia iniciada nos tribunais da Argentina, em 2013, em um pesado silencio, na esperança da Promotoria que algum desses homicidas indiciados se apresente.
A ideia de Desenvolvimento Sustentável, evidentemente parece não ter bom prognóstico; seguirão usando glifosato e a empresa de eletricidade continuará colocando suas estações no meio da cidade e seus bairros. E isso sem falar nas telefonias digitais que invadem tetos para saturar o espaço para que se comunique melhor com internet, o que facilita a contaminação eletromagnética.
A Promotoria de Direitos Humanos com a abertura democrática esqueceu sua missão de investigar cada um dos membros das Forças Armadas e de Segurança retirados ou em atividade por sua participação durante a vigência do Terrorismo de Estado (1954/1989).
O trabalho infantil perpetua o ciclo da pobreza para crianças analfabetas envolvidas, suas famílias e comunidade. Os patrões dessas crianças são os mesmos dessa minoria parasitária que goza de IMPUNIDADE, geradora de mais corrupção e violência estatal.
No Fórum Económico de Davos 2019, o Poder Judicial do nosso país foi qualificado como o pior da Região Latino-americana, e igualmente foi qualificada a educação. Repetimos que a IMPUNIDADE é caminho do esquecimento.
Os que nos negaram o direito a vida e à liberdade hoje gozam dela como se não tivesse acontecido nada e estão todos nos três poderes do Estado, protegendo as vacas da Associação Rural e a Associação dos Produtores de Soja que devoram o campesinato paraguaio.
Como ainda não se descobriu o projétil que possa matar um ideal, nossa obstinação é a busca da verdade e nosso empenho em não ceder ao esquecimento para evitar a IMPUNIDADE e alcançar a Justiça, porque na Justiça está a vida.
(*) Vítima do Plano Condor e descobridor de seus Arquivos Secretos / Arquivos do Terror Prêmio Nobel Alternativo 2002. Colaborador de Diálogos do Sul