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Theotônio e eu: a defesa de um partido trabalhista e da construção da paz

Para alcançar a paz seria necessária uma estratégia de desenvolvimento integral, um projeto nacional com ênfase na soberania nacional
Paulo Cannabrava Filho

Tradução:

Nascemos no mesmo ano de 1936, eu em abril, ele em novembro, ele em Carangola, no sertão das Minas Gerais, eu em Paraíso, no sertão de São Paulo. Tanto lá como aqui, na época, fronteira agrícola.

Carangola fica perto da serra de Caparaó, mais perto de Cachoeiro do Itapemirim, 150 Km, do que de Belo Horizonte, mais de 400 Km. Paraíso, também uns 400 Km de São Paulo, uns 30 Km de Catanduva, região de São José do Rio Preto. Paraíso era vila, agora é município e a população não chega a 3 mil pessoas. Já a de Carangola supera os 30 mil.

Dois caipiras que se ilustraram e viraram cidadãos do mundo.

Quando nos reencontramos no Brasil no início dos anos 1980, retornados após a anistia, tínhamos duas certezas: a necessidade de um Partido e de empunhar a bandeira da construção da paz, com o objetivo de organizar uma frente ampla.

Entendíamos que a condição de Paz não é um cessar-fogo entre duas ou mais partes em confronto. Isso é armistício, ou rendição de uma das partes.

A Paz só se alcança num país como o nosso quando já não houver ninguém com fome, nem nenhuma criança fora da escola. Aprendemos e compreendemos que paz só é possível se não houver exclusão social. Para alcançar a paz seria necessária uma estratégia de desenvolvimento integral, um projeto nacional com ênfase na soberania nacional.

Para alcançar a paz seria necessária uma estratégia de desenvolvimento integral, um projeto nacional com ênfase na soberania nacional

Arquivo Diálogos do Sul
Dois caipiras que se ilustraram e viraram cidadãos do mundo

Lutar pela paz é objetivo ainda a ser alcançado

Para instrumentalizar a luta pela paz criamos a Associação Brasileira pela Paz que teve logo a adesão do José Maria Rabelo, do Betinho entre outros.

Sobre a questão do partido necessário, não tínhamos chance de pensar em outra coisa que não fosse estar com Darcy Ribeiro, Leonel Brizola, Neiva Moreira. Entendíamos que era necessário pegar o trem da história. Em outras palavras: dar continuidade ao processo de formação do Brasil tendo o povo como protagonista. Isso significava retomar o projeto de desenvolvimento nacionalista iniciado por Vargas e interrompido pelo Golpe de 1o de Abril de 1964.

O Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), criado por Getúlio Vargas, consolidado por João Goulart (ministro de Vargas foi o presidente deposto em 1964), continuado por Brizola (o único brasileiro eleito para governar dois estados), instrumento do nacionalismo e do desenvolvimentismo trabalhista, já não era mais possível.

O general Golbery do Couto e Silva, que organizara o Serviço Nacional de Informação (SNI), roubou a sigla e a organização, com toda infraestrutura de um partido organizado nacionalmente. Diante disso, todos nos dedicamos a organizar o Partido Democrático Trabalhista (PDT), partido que já nasceu filiado à Internacional Socialista. O socialismo europeu ainda tinha como projeto a sociedade do bem-estar, dentro do capitalismo que, pensávamos na época, poderia ser um instrumento para conquistar o poder e, na sequência, retomar o projeto nacional desenvolvimentista. A conjuntura mundial era favorável.

Theotônio era da primeira geração da Universidade Nacional de Brasília (UNB), criada por Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro com a ideia de ser a Universidade Necessária para pensar o Brasil a ser refundado. Ali, junto com Vânia Bambirra, Rui Mauro Marini e Victor Nunes Leal, revolucionaram o que até então se conhecia como ensino de sociologia e economia. Esse núcleo, disse André Gunder Frank, foi o fundador da teoria da dependência, uma escola de pensamento de grande repercussão internacional.

Revolução no ensino da economia

De fato, com as críticas iniciadas na UNB, Gunder Frank, alemão; Samir Amin, egípcio; Giovanni Arrighi, italiano; e Theotônio dos Santos, brasileiro, deram continuidade a essa corrente de pensamento e evoluíram a o que se conhece como Teoria do Sistema Mundo, ao qual se incorporou o estadunidense Immanuel Wallerstein, professor na Universidade de Colúmbia, Nova York.

O resumo da ópera é mais ou menos o seguinte. Com relação à teoria da dependência, se trata de pensar a partir da constatação de que o atraso tem como causa a dependência dos países subdesenvolvidos às antigas metrópoles e/ou às grandes potências imperialistas. Isso leva ao pressuposto de que o desenvolvimento requer romper com essa dependência, livrar-se do neo colonialismo, do imperialismo. Atualizando nos dias de hoje, libertar-se do pensamento único imposto pela ditadura do capital financeiro. E mais, com o olhar crítico e criativo formular um projeto de país, uma estratégia de desenvolvimento capaz de superar o subdesenvolvimento.

Uma verdadeira escola de pensamento para refletir e propor as alternativas para superar o subdesenvolvimento. Uma das consequências na obra de Theotônio é a minuciosa pesquisa sobre a presença e a influência dos Estados Unidos no processo político e econômico brasileiro. Ou seja, sobre a presença neocolonial dos EUA como obstáculo à independência e, portanto, ao desenvolvimento.

No exílio e no Brasil, Theotônio teve uma produção fecunda, traduzida para uns dez idiomas, entre eles, chinês, japonês e russo… deu conferências em muitas universidades e instituições mundo afora. No Brasil, claro, incompreendido pela pequenez e mediocridade intelectual reinante, foi e continua sendo demonizado. Ao abandonar a visão crítica da realidade, a atmosfera nas universidades tornou-se irrespirável para os livres-pensadores.

Como estamos tratando de teoria da dependência, vale aqui um parêntesis, pois não se pode deixar de falar em Fernando Henrique Cardoso, tido como um dos teóricos dessa teoria. Ledo engano (de quem gosta de ser enganado).

FHC: A triste história de um entreguista

Image caption

De fato, em algumas páginas na Internet e em bibliografias, Enzo Faletto (1935-2003), sociólogo e historiador, era professor na Universidade de Chile, junto com Fernando Henrique Cardoso, aparecem como sendo os formuladores da teoria da dependência. Isso depois de ambos publicarem o ensaio “Dependencia y Desarrollo en América Latina”.

O que poucos sabem é que esse livro foi publicado no contexto das ações no meio intelectual da CIA. Ela financiava intelectuais que pareciam ser de esquerda para contrariarem as teorias desenvolvidas por pensadores marxistas. O império, através de suas fundações, publicou o livro e levou o “príncipe” para passear pela Europa e pelas Américas, proferindo conferências bem pagas.

Quando voltou ao Brasil, FHC fundou o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (o Cebrap, um think thank à moda ianque). Os professores da Universidade de São Paulo (USP onde FHC se formou) convidados a integrarem a organização, ficavam espantados diante de tanto dinheiro que rolava.

De fato, as mesmas fontes que o financiaram para lançar a teoria da dependência, financiaram não só o Cebrap a fundo perdido. Financiaram também parte da campanha para elegê-lo senador, outra vez para elegê-lo presidente da República, e outra vez para comprar cada um dos votos no Congresso Nacional que aprovou a emenda da reeleição. Dinheiro a fundo perdido. Vocês sabem o que é isso? É muito dinheiro sem que você tenha que prestar contas.

E quem são esses caras tão bonzinhos e o que tem o livro escrito por Falleto e Cardoso? Aí é que está a grande enganação. Enquanto Theotônio e demais intelectuais teorizavam que a dependência era a causa do subdesenvolvimento e que, portanto, era necessário livrar-se da dependência primeiro para poder trilhar a senda do desenvolvimento, Fernando Henrique financiado (vocês já estarão desconfiando por quem) pregava que só através da dependência aos países mais desenvolvidos (leia-se submissão à política expansionista dos Estados Unidos), seria possível o desenvolvimento para nossos pobres países subdesenvolvidos.

O mesmo pensamento orientava a Doutrina de Segurança Nacional formulada pelo general Golbery do Couto e Silva que pode ser resumida assim: sendo os Estados Unidos a maior potência bélica do ocidente, não havendo possibilidade de competir, é melhor deixar a cargo deles a segurança externa e cuidarmos da segurança interna. Através da Junta Interamericana de Defesa (JID) essa doutrina se expandiu pelos países da América Latina e Caribe e sustentou mais de um capítulo da eterna guerra dos Estados plutocráticos contra a grande e sonhada nação bolivariana.

Rui Mauro Marini e Theotônio dos Santos desmascararam no ato a desonestidade de Fernando Henrique Cardoso. Quase ninguém acreditou e deu no que deu. FHC assumiu a Presidência e aplicou minuciosamente sua teoria da dependência, abrindo portas e janelas para Estados Unidos e as transnacionais. Diálogos do Sul está publicando série de matérias que mostram como a aplicação das teorias de FHC estão transformando o Brasil numa colônia de fato dos Estados Unidos.

Observem que tinha razões e atualidade a proposta de utilizar a bandeira da construção da paz para induzir à formação de um frente ampla em torno de um projeto nacional. Observem também que em todos os seus livros, Theotônio se dedica a apontar caminhos para a libertação e a denunciar, minuciosamente a presença dos Estados Unidos como causa da dependência e do subdesenvolvimento.

Ampla rede de solidariedade

 Bombardeio ao Palácio de la Moneda, durante o golpe de Estado no Chile, em 1973

O golpe que instaurou o fascismo no Chile, em setembro de 1973, induziu à formação de uma ampla e magnífica rede de solidariedade. Eu estava em Lima e participava de uma organização de amplo espectro de solidariedade com o povo brasileiro. Ampla mesmo. Participavam dirigentes de vários partidos, das federações sindicais e sindicatos independentes, associações de profissionais, intelectuais de várias tendências, e era presidida por Augusto Salazar Bondy, vice-ministro da Educação, diplomatas de alta hierarquia como Alberto Ruiz Eldredge, médicos, psicólogos, jornalistas… No dia seguinte ao golpe de 11 de setembro tudo isso passou a ser de solidariedade ao povo chileno.

Nesse mesmo dia, em Santiago do Chile, os fascistas jogavam de helicópteros, panfletos que incitavam ao ódio aos estrangeiros e pedindo que denunciassem os comunistas traidores da pátria. Quem escapou de ser morto nas ruas ou nas residências, ficou preso no Estádio Nacional, ou em campos de concentração, ou se asilou em alguma embaixada disposta a assumir o que realmente era um grande risco.

Theotônio, que jamais deixou de ser um ativista, refugiou-se com alguns amigos, na embaixada do Panamá. Uma casa modesta, porém protegida pelas leis internacionais que asseguram inviolabilidade às missões diplomáticas. Os refugiados eram militantes bolivianos, uruguaios, argentinos e brasileiros, todos fugindo de perseguição movida por ditaduras em seus países e agora confrontados com as tropas do fascismo facínora do general Pinochet. O contingente de brasileiros no Chile era o maior com mais de 10 mil pessoas.

Logo a situação se tornou dramática. Com a superlotação as pessoas se revezavam para dormir algumas horas nos corredores e quartos. Sobre as questões de higiene, melhor nem falar, vocês podem imaginar, o drama das questões sanitárias. Terrível.

Diante dessa situação Theotônio propôs uma solução que foi imediatamente aceita pelo embaixador e principalmente pelos refugiados. Colocar a bandeira panamenha em sua casa, oficializada a inviolabilidade, transferir a maioria das pessoas para lá. De um desconforto total essa gente passou a viver, não com total conforto, mas com a dignidade restabelecida.

A primeira providência, com relação a esses refugiados que conseguiam sair do Chile, tanto em Lima como na Cidade de Panamá, era atendimento médico e psicológico, pois quase todos chegavam física e mentalmente estropiados. Alguns chegavam com o destino final já acertado com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) e o país que os receberiam, outros chegavam absolutamente sem rumo.

Feito esse parênteses, voltemos ao tema em questão

Impressionante o prestígio intelectual que Theotônio adquiriu no exílio. No Chile integrou o Centro de Estudos Socioeconômico da Faculdade de Economia da Universidade do Chile e, paralelamente, assessorava o governo da Unidade Popular, presidido por Salvador Allende. Com a ascensão do fascismo no Chile em 1973, foi para o México.

Lá chegando, foi convidado para a UNAM (Universidad Nacional Autónoma de México) onde logo assumiu como titular da Divisão de Pós-graduação de Economia, da Faculdade de Economia e Filosofia, e em 1975 assume a coordenação do Doutorado em Economia, e em 1978, tornou-se chefe da divisão de pós da Unam, e da direção do departamento do Seminário Permanente sobre América Latina, do México.

Ainda no México, Neiva Moreira e Beatriz Bissio, com apoio do Centro de Estudos do Terceiro Mundo, da UNAM, conseguiram relançar Cadernos do Terceiro Mundo em espanhol. Foi um sucesso em todo o continente. Logo a revista em português foi também lançada em Lisboa, sob o comando do capitão do Exército brasileiro, Altair Campos, também asilado político.

Theotônio desde o primeiro momento esteve vinculado à revista Cadernos do Terceiro Mundo, que em seu auge teve três edições simultâneas, em português, espanhol e inglês. Terminado o exílio a revista se fixou no Rio de Janeiro, comandada por Beatriz Bissio e Neiva Moreira, até acabar em 2005. Desde o surgimento da revista fui seu representante e repórter onde quer que eu estivesse. Theotônio também, apoiou a revista enquanto existiu e apoiou o surgimento da revista Diálogos do Sul, continuadora do projeto na era digital.

De volta ao Brasil, Theotônio atuou como consultor da Unesco, e do Sistema Econômico Latino-americano (Sela), é membro do conselho da Associação Latino-americana de Política Científica e Tecnológica, e da Maison des Sciences de L’Homme da Universidade de Paris I. Na universidade federal de Minas tentou implantar um centro de investigação vinculado à Clacso. Em 1994 assume como titular de economia na Universidade Da Economia Global e Desenvolvimento Sustentável da Unesco, onde permaneceu até sua morte. Sua maior frustração foi não poder implantar, aqui na sua terra, nenhum dos projetos que realizou com sucesso no Chile, no México, em toda parte onde esteve. Com a anistia de 1979 pode se reintegrar à UNB, mas não lhe deram condições para assumir e fazer o que era capaz.

Se este nosso país fosse sério, levasse a sério a educação como indispensável para o desenvolvimento e soberania do país, Theotônio teria um departamento, ou uma cátedra permanente na UNB ou na Federal do Rio, e porque não, também na USP. A mediocridade é incompatível com a genialidade. Para não se deixar ofuscar, demoniza os gênios. Quem perde com isso é o Brasil, claro. E você, caro leitor, sendo um dos poucos caras que ainda pensam com a própria cabeça, se não leu, leia a obra de Theotônio. Ajudará você a entender porque a nossa (do povo) bandeira de luta deve ser a de libertação nacional, única via para alcançar a paz que não seja a dos cemitérios.

Com relação à ONG da Paz, ele presidente, eu secretário, fizemos algumas conferências e seminários para debater nosso ponto de vista. Uns dois eventos em São Paulo, outros tantos no Rio, uns quatro em Belo Horizonte. A coisa não andava… morreu de inanição. Como divergíamos do pensamento único, fomos logo demonizados por intelectuais e acadêmicos.

O empenho pela refundação do trabalhismo

Com relação à necessidade de estar num partido político, não podia ser outro o caminho senão o de estar com Brizola. Theotônio foi um dos signatários da Carta de Lisboa. Redigida por personagens que vieram do Brasil ou de seus países de exílio para debater sobre os caminhos que se abriam para o país e para o trabalhismo. Um encontro de mais de uma geração, entre jovens oriundos das organizações de luta armada, políticos e intelectuais militando nas duras condições impostas pela ditadura no Brasil.

Brizola, para nós, tinha uma trajetória impecável. Como prefeito de Porto Alegre, fez uma revolução na educação. Como governador do Rio Grande do Sul fez duas revoluções, na educação, semeando o Estado de boas escolas, e na agricultura, assentando os Sem Terra e assessorando a criação de cooperativas de produção agrícola, que até hoje garantem segurança alimentar do Rio Grande e sobra para alimentar muitos brasileiros, com arroz, trigo, carne, etc. Foi o deputado federal mais votado na história do legislativo. De regresso ao Rio de Janeiro, logo organizou o partido trabalhista, agora Partido Democrático Trabalhista (PDT) e foi eleito governador por duas vezes.

Além disso, Brizola expropriou as transnacionais de telefonia e de energia, sem indenizá-los, com o argumento de que deviam ao povo brasileiro pelo não cumprimento dos contratos de concessão, que as obrigava a investir.

Brizola durante a Campanha pela Legalidade | Foto: Wikicommons

E fez outra revolução, em agosto e setembro de 1961, quando empolgou a nação inteira ao dar armas ao povo para defender a legalidade quando da renúncia do presidente Jânio da Silva Quadros. Defender a legalidade e a democracia era repudiar o golpe já em andamento e garantir a posse de João Goulart, vice-presidente que fora eleito sem ser da chapa vitoriosa. O voto era separado e você podia votar no vice de sua preferência.

Durante o governo de Goulart, Brizola já deputado federal, era quem o fazia inclinar-se à esquerda, radicalizando ou exigindo a radicalização das reformas. Sabendo e conhecendo a ideologia da plutocracia desalojada do poder, Brizola apelou ao povo para que se organizasse, através dos Grupos de Onze, que se reuniam para debater sobre a conjuntura e se preparar para resistir ao golpe.

Perpetrado o golpe de 1o de Abril de 1964, Brizola foi o primeiro que chamou o povo à resistência armada. Passou os 14 anos de exílio conspirando empenhado em reconstruir o trabalhismo e à formação de uma frente ampla.

De regresso ao Brasil Theotônio dedicou-se ao desenvolvimento intelectual e ao ensino (escreveu vários livros) e a ajudar a formação do novo trabalhismo. Entendíamos que não bastava fazer um partido de massas. Além de amplas bases o novo partido tinha que ser implantado e desenvolvido em torno a um projeto nacional, uma estratégia de desenvolvimento e um plano de governo.

Theotônio, Moniz Bandeira, Darcy Ribeiro, e uns poucos mais, elaboraram os lineamentos dessa estratégia para ser discutida nas bases do partido. E assim foi. Essa primeira versão punha em discussão o que fazer com as reformas que ficaram para trás, abandonadas após o golpe de 1o de Abril: reforma agrária, política agrícola, política educacional, política de saúde, reforma urbana, reforma tributária e bancária, etc..

Discutidas nos âmbitos distritais, consolidadas as propostas no âmbito das convenções municipais, foram à discussão nas convenções estaduais para finalmente ir à convenção nacional. Esse era o plano. Chegou-se à etapa estadual, havia pilhas e pilhas de papel com contribuições recolhidas nos mais diversos rincões. Theotônio fez uma seleção prévia que resultou em pacotes menores para cada tema. Chamou-me: “Canna, agora é tua vez. Faça o texto final”. Fiz. Gostaria muito de reaver esse documento, que foi impresso e distribuído, creio eu, já durante a campanha eleitoral.

Em 1982, Brizola foi eleito governador do Estado do Rio de Janeiro tendo Darcy Ribeiro como vice. De 1983 a 1987, ambos protagonizaram uma verdadeira revolução ao construírem escolas de tempo integral por todo o território estadual. Escolas em que meninos e meninas entravam de manhã e saíam no final da tarde de banho tomado e bem alimentado com café da manhã, almoço e janta. Uma ofensa inaceitável para a plutocracia que nos governa e, por isso, acabaram com ela. Registre-se, para que não haja olvido, Brizola só venceu porque o Jornal do Brasil denunciou a fraude eletrônica que contava votos dados a Brizola como se fossem dados a seu adversário. Tremenda fraude armada pela Globo. Roberto Marinho, com desfaçatez confessou que fez e faria tudo, até o impossível para evitar a eleição de Brizola.

Nesse mesmo ano, fiel a suas ideias e fiel a Brizola, Theotônio lançou-se candidato a governador do Estado de Minas Gerais. Não deu certo mas ajudou a construir o partido, tarefa insana naquele imenso território com infinitos 700 ou mais municípios. Nesse mesmo ano, Brizola foi eleito governador do Rio de Janeiro. Em 1986, com esse mesmo objetivo, Theotônio foi candidato à Constituinte, também sem conseguir.

A partir da posse de Brizola todos nós nos engajamos na campanha Diretas Já. Com Neiva Moreira lançamos no Rio de Janeiro o Jornal do País, logo País nas Bancas, por causa de uma pendenga sobre a propriedade do título. Foi o primeiro jornal a fazer campanha por eleições diretas. Claro que Theotônio, sendo um militante da causa pelas diretas, colaborou intensamente com o esforço de produzir o jornal.

E foi no Rio de Brizola que se fez o mais empolgante comício pelas Direta, concentrando mais de um milhão de pessoas na Avenida Brasil, de costas às costas da Candelária.

A falência de um projeto editorial

Interessante lembrar que a editora das três revistas criadas por Neiva e Beatriz (Cadernos do Terceiro Mundo, Ecologia e Desenvolvimento e Mercosul) quebrou porque não teve nem o mais mínimo apoio de um governo soi disant de esquerda. Revista de prestígio incontestável, foi perdendo anúncios na medida da expansão do pensamento único sobre a mídia e as escolas. Não teve condições de suportar os enormes custos de produção e de distribuição. Enquanto havia um Fernando Chinaglia a revista chegava a quase todos os Estados. Assimilada à distribuidora pela Abril, e logo por um único monopólio formado pela Abril e a Folha, só com as assinaturas já não era possível suportar o projeto. Quebrou.

Quebrou enquanto o governo do PT sustentava a Globo e a Abril com milhões em publicidade. Não é despeito não. É a pura realidade. O governo petista foi incapaz de criar um projeto de comunicação e também não apoiou o que existia de alternativo. Foi derrubado pelo monstro que ajudou a engordar durante doze anos.

Com o fechamento da editora, foram realizadas algumas reuniões no Rio de Janeiro com a presença de gente que sempre apoiou o projeto de Cadernos do Terceiro Mundo em que se discutia o que fazer para dar continuidade ao projeto. Refundar ou recriar uma revista para ocupar esse lugar não serias tarefa fácil, pois já tínhamos a experiência de dois projetos falidos, o da revista e o do jornal.

Dessas discussões, com participação de Theotônio dos Santos, Monica Bruchmann, Elisa Larkin Nascimento, Abdias Nascimento (in memoria), Beatriz Bissio, Paulo Cannabrava Filho, Vanessa Silva, éramos sempre umas 20 pessoas, me perdoem, não dá pra citar todo mundo, surgir a ideia de lançar a revista Diálogos do Sul. Na era digital em que se impõem o diálogo entre os países do sul, criamos um instrumento digital e bilíngue para continuar com o projeto iniciado em Cadernos do Terceiro Mundo.

As primeiras atividades consistiram em oferecer cursos sobre América Latina, história e integração, processos de libertação nacional. Em todos esses cursos, realizados no Memorial da América Latina, em São Paulo, ou no Espaço Cultural Diálogos do Sul no Rio de Janeiro, tivemos a presença de Theotônio compartilhando suas teorias e seu prazer em viver ensinando.

O acervo das edições em português de Cadernos do Terceiro Mundo já pode ser consultado através deste link.

 

*Jornalista, editor de Diálogos do Sul


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Paulo Cannabrava Filho Iniciou a carreira como repórter no jornal O Tempo, em 1957. Quatro anos depois, integrou a primeira equipe de correspondentes da Agência Prensa Latina. Hoje dirige a revista eletrônica Diálogos do Sul, inspirada no projeto Cadernos do Terceiro Mundo.

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