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ToggleEm uma era em que o carrasco já não veste uniforme militar nem carrega chicote visível, surgiu um novo tipo de ferramenta repressiva: uma repressão inteligente, silenciosa, que se infiltra pelas telas e se instala nos bolsos. O programa Pegasus não é apenas uma ferramenta de invasão, mas um sistema digital completo, apoiado por inteligência artificial, que permite aos regimes repressivos monitorar, analisar e prever os detalhes da vida cotidiana das pessoas.
Essa transformação não é um roteiro de ficção científica, mas uma realidade que impõe seu domínio sobre povos inteiros – especialmente no mundo árabe, onde a tecnologia se tornou um meio de silenciar vozes críticas e reprimir liberdades.
O jornalista marroquino Omar Radi foi submetido a uma vigilância eletrônica minuciosa, enquanto o assassinato do jornalista saudita Jamal Khashoggi foi precedido por intensa espionagem de seu círculo próximo. Em alguns países do Golfo, a repressão digital se estendeu a ativistas, cidadãos e até pessoas próximas aos círculos de poder.
A inteligência artificial, desenvolvida para servir à humanidade, é hoje empregada para construir listas de ‘inimigos’ e analisar padrões de comportamento individual, numa vigilância preemptiva que julga o ser humano antes mesmo que ele fale.
Gaza: laboratório do assassinato algorítmico
Mas o rosto mais sombrio desse uso revela-se na Faixa de Gaza, onde essa tecnologia é utilizada como parte da guerra de extermínio em curso desde outubro de 2023.
De acordo com relatórios de direitos humanos e vazamentos de organizações como a Anistia Internacional e a Forbidden Stories, os serviços de inteligência israelenses vêm empregando ferramentas digitais avançadas para rastrear líderes da resistência, jornalistas, ativistas – e até civis.
E não se trata apenas do Pegasus, mas também de outros sistemas de inteligência artificial, como o Habsar (Hafer) e o Ghost, que analisam dados pessoais para classificar indivíduos como alvos potenciais, sem provas concretas ou julgamento. São ferramentas que decidem quem será atingido e quando, participando efetivamente das decisões de assassinato, bombardeio de residências e eliminação de alvos.
O celular transformou-se em punhal digital; o muro eletrônico tornou-se parte da máquina de extermínio.
Samsung como exemplo: quando grandes empresas se tornam cúmplices
Esse aparato repressivo não parou nas fronteiras dos Estados. As grandes empresas de tecnologia também entraram em cena. Um relatório da plataforma de direitos digitais Smex revelou que a empresa sul-coreana Samsung assinou, em 2022, um acordo exclusivo com a empresa israelense IronSource, permitindo que esta instalasse um aplicativo chamado AppCloud nos celulares Samsung das linhas A e M (as linhas econômica e intermediária) no Oriente Médio e Norte da África, sem o conhecimento ou consentimento dos usuários.
Esse aplicativo instala um software adicional chamado Aura, que coleta extensos dados pessoais – incluindo o endereço IP, a impressão digital do dispositivo e a localização geográfica –, permitindo rastrear a identidade e os comportamentos digitais do usuário.
O mais grave: o aplicativo continua operando em segundo plano mesmo após ser desativado, e sua remoção não é simples, exigindo ferramentas técnicas avançadas como o Android Debug Tool ou a realização do processo de root no aparelho.
O que ocorre aqui não é apenas uma violação da privacidade digital, mas uma cumplicidade explícita com o projeto colonial de construir uma infraestrutura digital a serviço dos objetivos de inteligência da ocupação.
Colonialismo digital com fachada inteligente
Diante desse cenário, surge a pergunta: onde está o mundo frente a essa violação flagrante?
O silêncio internacional e a participação de alguns países autoproclamados ‘democráticos’ no uso ou exportação dessas ferramentas refletem uma cumplicidade sistemática com os sistemas de vigilância totalitária. Não existem leis rigorosas que limitem a atuação das empresas de espionagem, nem códigos éticos que regulem o uso da inteligência artificial.
A tecnologia tornou-se um mercado de dominação digital, no qual o ser humano é vendido como dado, vigiado como número e eliminado com um clique.
Israel, indústria da guerra e violência de Estado: os elos entre Gaza e a Favela do Moinho
Não somos contra o progresso científico – mas recusamos que a tecnologia se transforme em instrumento de terror e escravização. A inteligência artificial nas mãos da ocupação e dos regimes repressivos não representa um avanço, mas sim um colonialismo digital – ainda mais perigoso por sorrir enquanto mata.
E o que mais tememos é acordar, em breve, em uma realidade onde já não haverá espaço para o humano – apenas para algoritmos que decidem quem vive e quem será apagado.
Edição de texto: Alexandre Rocha